por Carlos Alberto dos Santos
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É provável que ao ler o título, muitos pensarão que Helene Savic é uma das inúmeras conquistas amorosas atribuídas a Albert Einstein. Não, não é! Helene Savic é uma personagem-chave para desconstruir a extensa rede de desinformações a respeito da suposta colaboração de Mileva Maric com Einstein, durante a elaboração de seus icônicos artigos publicados em 1905. Para o grande público, a fonte primordial da falsa hipótese é o livro da professora de ciências Desanka Trbuhovic-Gjuric, originalmente publicado na Sérvia, em 1969 [1]. Intitulado “À sombra de Albert Einstein: a vida trágica de Mileva Einstein-Maric”, o livro apresenta uma única fonte confiável, e uma série de informações claramente originadas em boatos. A fonte confiável é Abraham Fedorovich Joffe, mas Trbuhovic-Gjuric usa uma informação falsa atribuída a ele. Entre 1902 e 1906, Joffe foi assistente e estudante de doutorado de Wilhelm Conrad Röntgen, o descobridor dos raios-X e ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1901. Trbuhovic-Gjuric afirmou que Joffe havia visto o manuscrito do artigo da relatividade especial assinado por Einstein-Maric.
Joffe não disse isso. O que Joffe disse, em um obituário publicado na Rússia logo depois da morte de Einstein (“Pamyati Alberta Eynshtyna”. Uspekhi fizicheskikh nauk, vol. 57, n. 2, p. 188-192) [2], foi:
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Em 1905, três artigos apareceram no Annalen der Physik, os quais iniciaram três ramos muito importantes da física do século 20. Esses são a teoria do movimento browniano, a teoria do fóton de luz, e a teoria da relatividade. O autor desses artigos – uma pessoa desconhecida naquela época, era um burocrata no Escritório de Patentes de Berna, Einstein-Maric (Maric o nome de solteira de sua esposa, o qual pelo costume suíço é adicionado ao sobrenome do marido).
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Veja que Joffe escreve que o “autor desses artigos – uma pessoa desconhecida . . .”. Ele não diz que o artigo era assinado por Einstein-Maric. A versão usada por Trbuhovic-Gjuric, foi criada em 1962, por Daniil Semenovich Danin, um crítico literário e divulgador da ciência, que publicou um livro em Moscou no qual afirmou que Joffe havia visto o manuscrito da teoria da relatividade na mesa de Röentgen, e que o artigo era assinado por Einstein-Maric. Foi assim que nasceu a lenda de que Mileva havia colaborado com Einstein em seus trabalhos científicos.
O livro de Desanka Trbuhovic-Gjuric teve grande repercussão depois que foi traduzido para o alemão, em 1983, e passou a ser usado por inúmeros autores como se fosse uma fonte confiável. Com o advento da Internet, o processo de desinformação se alastrou, sem que seus promotores dessem atenção aos estudos acadêmicos sistematicamente contrários à hipótese levantada por Trbuhovic-Gjuric, a partir da informação falsa de Danin.
Em 2019, Allen Esterson e David Cassidy, com a colaboração de Ruth Lewin Sime, publicaram o livro Einstein’s wife: the real story of Mileva Einstein-Maric, no qual abordam com profundidade praticamente toda essa literatura baseada em boatos sem o devido cuidado historiográfico [2]. Portanto, dada a existência desse importante trabalho, não considero relevante destacar aqui essa literatura popular sem fundamentação historiográfica. Abordarei aqui uma das principais fontes usadas por Esterson e seus colaboradores para desconstruir a hipótese mundialmente difundida a partir de Trbuhovic-Gjuric. Refiro-me às cartas enviadas por Mileva Maric para uma das suas melhores amigas, Helene Kaufler Savic, e publicadas no livro editado pelo neto de Helene, Milan Popovic [3].
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Embora não haja necessidade de apresentar, neste ensaio, todos os equívocos da literatura, como fizeram Esterson e colaboradores, é importante, pelo menos, destacar o ponto central do surgimento da lenda, que se espalhou feito rastilho de pólvora depois de 1983. O ponto central refere-se à importância de Mileva Maric na produção científica de Einstein, até 1910.
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A lenda e a realidade
O que foi dito acima, é o que consta na literatura mais popular, mas, da literatura historiográfica, sabe-se que o nascimento da lenda teve outro componente, além da distorção das palavras de Joffe. No mesmo ano da publicação do livro de Danin, 1962, o jornalista australiano, Peter Michelmore, publicou, nos EUA, uma curta biografia intitulada Einstein: profile of the man, de onde Desanka Trbuhovic-Gjuric extraiu muitas informações, algumas delas inverossímeis [2]. O livro de Michelmore foi largamente baseado em uma entrevista que ele fez com Hans Albert, filho de Mileva e Einstein, ao longo de dois dias, no ano da publicação do livro. Não se sabe se Michelmore gravou as conversas, ou fez anotações. O fato é que ele não publicou as anotações das entrevistas. Ele apresentou informações atribuídas a Hans Albert a respeito de eventos ocorridos quando ele tinha menos de dois anos de idade. Ou seja, eventos ocorridos há cinquenta e sete anos. É possível que Hans Albert tenha ouvido de Mileva o que declarou a Michelmore. É possível também que Michelmore tenha romantizado a história. Por exemplo, Michelmore diz que “Mileva ajudou Einstein a fazer os cálculos da relatividade especial, mas ninguém poderia ajudá-lo com o trabalho criativo, o fluxo de novas ideias.” Supõe-se que isso tenha sido uma declaração de Hans Albert, mas Michelmore não atribui explicitamente a informação a Hans Albert. Quando Desanka Trbuhovic-Gjuric escreveu seu livro, ela usou essa informação, sugerindo que Michelmore a obtivera diretamente de Einstein, e não de Hans Albert. Desanka Trbuhovic-Gjuric também usou outros fantasiosos e inverossímeis comentários de Michelmore, sende este o que acabou sendo o mais difundido na literatura popular:
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Foi um feliz acidente que os amigos mais próximos de Einstein no instituto estivessem estudando matemática. Um era Marcel Grossmann, que estava genuinamente impressionado com a amplitude da mente de Einstein. Generosamente, Grossmann fazia anotações detalhadas de todas as palestras e as transmitia a Einstein nos fins de semana. Seu outro amigo próximo era Mileva Maric. Ela era tão boa em matemática quanto Marcel e também ajudava nas sessões de treinamento de fim de semana.
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No livro de Desanka Trbuhovic-Gjuric, a informação acima transformou-se em:
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Maric era uma matemática brilhante que ultrapassou Einstein em matemática, senão em física. Além disso, devido à sua importante colaboração, Maric foi uma coautora não reconhecida do famoso artigo de seu marido, sobre a relatividade, publicado em 1905.
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De modo similar à famosa brincadeira do telefone sem fio, essa narrativa foi passando adiante com deturpações cada vez mais graves, como bem relatam Esterson e colaboradores [2].
Além de documentos sobre os quais comentarei a seguir, existem outras fontes que ajudam a desmistificar o enredo iniciado por Michelmore e difundido por inúmeros autores a partir de Desanka Trbuhovic-Gjuric. Refiro-me às cartas de amor, entre Einstein e Mileva [4], e à já mencionada correspondência entre Mileva e Helene Savic. Antes de abordar essa correspondência, considero importante destacar a documentação existente que contradiz a supra-citada afirmação de Desanka.
Existem, no mínimo, três maneiras de se atestar a competência de alguém em relação a alguma matéria. A primeira é por meio da observação direta, a partir da convivência diária. Quando me refiro a observação direta, isso significa observação de alguém que conhece o assunto. Por exemplo, avaliação de uma estudante de medicina sobre a competência em matemática de uma estudante de engenharia, tem pouca chance de ser confiável. A segunda maneira é por meio dos seus escritos, e a terceira é por meio de seus resultados escolares. Essa última é a maneira mais frágil, mas na ausência das duas primeiras, é o único recurso que resta. Não há registro de comentários de contemporâneos de Mileva que atestem seu nível de competência em matemática, como também não há trabalhos publicados de sua autoria. Portanto, só nos resta especular sobre sua proficiência em matemática a partir de seus resultados escolares.
No livro de Esterson e colaboradores são apresentadas as notas de Mileva e Einstein no último ano de seus estudos secundários. Apenas as notas de física e matemática foram colocadas na Tabela 1. Como se vê, Einstein obteve a nota máxima em matemática nos três trimestres em que estudou em Aargau, e onde obteve seu diploma de ensino secundário. Não há surpresa nesses resultados; antes de ir para Aargau, Einstein tinha aprendido, sozinho, elementos de matemática superior, incluindo o cálculo diferencial e integral. Ele também tinha escrito, aos 15 anos de idade, uma pequena monografia sobre o estado do éter num campo magnético.
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Mileva era considerada excelente aluna nas escolas que frequentou no secundário. Por isso seu pai obteve permissão para matriculá-la no Royal Classical Gymnasium, em Zagreb, uma escola exclusivamente masculina. Todavia, ela não obteve ali a excelência que obtivera em anos anteriores na Royal Lower Grammar School, em Sremska Mitrovica, uma cidadezinha às margens do rio Sava, uma afluente do Danúbio.
Se transformarmos a escala 1-6 de Aargau, na escala 1-10, veremos que Einstein obteve nota 10 em matemática e entre 9 e 10 em física.
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Antes de apresentar a correspondência Mileva-Helene, devo fazer um breve comentário ao texto de Michelmore, transcrito acima. Não é verdade que Grossmann transmitia suas anotações a Einstein nos fins de semana. Na Escola Politécnica de Zurique, a famosa ETH, os alunos só tinham que fazer dois exames, o intermediário, na metade do curso, e o exame final. Fora isso, os alunos eram obrigados a frequentar apenas um curso por semestre. O resto do tempo eles podiam fazer o que quisessem, frequentar cursos, ir trabalhar no laboratório ou estudar na biblioteca. Einstein fazia essas duas coisas, principalmente estudar na biblioteca, onde acompanhava a literatura contemporânea, que não era tratada em sala de aula pelos famosos professores da ETH. Algumas semanas antes do exame, Grossmann emprestava seu caderno de anotações para Einstein se preparar. Einstein tinha um talento extraordinário para a matemática, mas não a considerava importante. Sobre a amizade entre Einstein e Grossmann, veja o ensaio Marcel Grossmann, o amigo e protetor de Einstein [6]. Durante os dois primeiros anos, Einstein ainda estava entusiasmado com os professores da ETH e foi um aluno aplicado. Obteve a maior média da turma no exame intermediário, 5,7, enquanto Mileva obteve a menor, 5,05. Depois do exame intermediário, Einstein começou a se decepcionar com as aulas e passou gazeteá-las. Einstein teve a pior média no exame final, 4,91, enquanto Mileva foi reprovada. Portanto, a afirmação de Michelmore, de que Mileva era tão boa em matemática quanto Marcel Grossmann, parece pura fantasia.
Vejamos agora outra ponta da lenda, aquela segundo a qual Mileva teve participação importante nos trabalhos de Einstein. Pelo que foi dito acima, isso não parece verossímil, mas vejamos se podemos inferir algo a partir do que Mileva escrevia para Helene Savic.
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O arquivo Helene Kaufler Savic
A primeira carta de Mileva para Helene foi escrita em 1899, na casa de verão da família, em Kac, e a última foi escrita em 1932. Uma coleção de 71 cartas foi preservada pela família, mas, segundo Highfield e Carter [1] a mãe de Milan Popovic destruiu algumas das cartas de Helene Savic, incluindo aquelas referentes a Lieserl, a filha que Einstein e Mileva tiveram antes do casamento, e cujo destino continua sendo um mistério [5]. Os autores não fornecem as fontes de onde tiraram essa informação. Walter Isaacson [7] também fornece essa informação, que deve ter extraído de Highfield e Carter. O que me interessa nesta coleção são possíveis indicativos de que Mileva ajudara Einstein a desenvolver seus trabalhos científicos. Será que o papel de Mileva no trabalho criativo de Einstein foi amplo e significativo? Será que ela fez os cálculos da teoria da relatividade, como afirmou Desanka?
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Existem vários artigos e livros de estudiosos da biografia de Einstein que descontroem as hipóteses de Desanka Trbuhovic-Gjuric, alguns dos quais citados neste ensaio. O que pretendo é fazer o mesmo a partir das cartas de Mileva para Helene Savic.
Em uma carta escrita no verão de 1899, Mileva está em Kac e informa que está muito ocupada, preparando-se para o exame, que será realizado no início de outubro. Ela não entra em detalhes, mas sabe-se que este é o exame intermediário, que seus colegas de turma fizeram em outubro do ano anterior. Mileva teve o exame adiado porque tinha se afastado para passar um semestre estudando em Heidelberg. Foi nesse exame que Mileva teve a menor nota da turma, fato este que ela não relata a Helene em nenhuma carta.
Das cartas de amor entre Einstein e Mileva [4], sabe-se que entre meados de março e 10 de outubro de 1899, Einstein enviou seis cartas para Mileva, e dela recebeu uma. Não há como saber quais cartas de Einstein chegaram às mãos de Mileva antes da carta de Mileva para Helene. É provável que a carta de março e duas do início de agosto tenham chegado antes. Portanto, é interessante examinar o que disseram Einstein e Mileva nessas cartas para contextualizar a carta de Mileva para Helene. Dessas três cartas de Einstein, a que ele escreveu no início de agosto é extremamente relevante para essa contextualização. Ele diz:
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Estou cada vez mais convencido de que a eletrodinâmica dos corpos em movimento, como é apresentada hoje, não corresponde à realidade, e que será possível apresentá-la de modo mais simples. A introdução do termo “éter” em teorias de eletricidade levou à concepção de um meio cujo movimento pode ser descrito sem ser possível, creio eu, atribuir um sentido físico a ele. Acho que as forças elétricas podem ser diretamente definidas apenas para espaços vazios – algo que Hertz também enfatiza.
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É a primeira vez que Einstein se expressa em termos do que ele vai escrever no seu artigo sobre a relatividade especial, cinco anos depois. Na sua resposta, Mileva não concorda, nem discorda dessas ideias de Einstein. Ela não faz qualquer comentário. Além de seus sentimentos amorosos, candentemente expostos, ela demonstra preocupação com o exame intermediário:
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Os “estudos extenuantes” prosseguem lentamente. Fiedler é minha maior dor-de-cabeça, e o material, o mais difícil de dominar. Talvez pudesse me escrever um pouco sobre o que esperar do exame, mas não pense que isso significa que está dispensado de incluir outros assuntos que não sejam um relatório (se foi o que pensou). Fiedler e Herzog pedem coisas específicas, exemplos, ou perguntam apenas questões gerais? Posso também pedir-lhe para deixar seu caderno sobre teoria térmica com a senhora Markwalder quando voltar a Zurique? Quero consultar alguns pontos.
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Fiedler e Herzog eram os professores responsáveis pelas provas de geometria descritiva e projetiva, e mecânica, respectivamente. O caderno que ela solicita são as anotações de Einstein do curso do prof. Weber, cuja primeira parte ela perdeu porque estava em Heidelberg. A senhora Markwalder era a proprietária da pensão onde Einstein morava em Zurique.
Essas cartas de Einstein sugerem que a carta para Helene, no verão de 1899, não é de quem estaria em pé de igualdade científica com ele. Imagino que se Mileva estivesse participando efetivamente de uma discussão sobre temas desafiadores, com o nível de elaboração como este exposto por Einstein, seu primeiro impulso seria informar a amiga sobre seu avanço científico, e não apenas reclamar que está muito ocupada com a preparação para o exame.
No início de 1900, provavelmente em janeiro ou fevereiro, Mileva escreve de Zurique para Helene. Trata-se de uma carta muito importante no contexto da história imediata de Mileva e de sua participação no trabalho de Einstein. Em julho ela deverá se submeter ao exame final. Como se sabe, será reprovada, e também como se sabe, jamais ela tratou desse fato nas cartas para Helene, que constam na coleção publicada por Milan Popovic. Além das provas, como no exame intermediário, no exame final os alunos devem apresentar uma dissertação sobre algum tema, que poderá ou não ser transformada em tese de doutorado. Para chegar de uma ponta à outra desse processo, é uma longa caminhada. Mileva expõe sua angústia em relação a isso:
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Tive que escrever sobre o tema principal que selecionei para meu diploma e, possivelmente, também para minha tese de doutorado, para que o professor Weber pudesse fazer algumas críticas.
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Por que essa carta é importante no contexto da eventual participação de Mileva nas atividades científicas de Einstein? Dois ou três meses antes dessa carta, Mileva recebeu duas cartas de Einstein apresentando novas ideias científicas que seriam incorporadas na teoria da relatividade. Se Mileva estivesse acompanhando Einstein nessa viagem epistemológica ou se estivesse percebendo que se tratava de algo revolucionário, teria respondido a Einstein com comentários pertinentes. Da mesma forma teria feito comentários animados na carta de Helene. Não há registro de que ela tenha feito isso. Vejamos o que disse Einstein na carta escrita no final de setembro de 1899:
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Escrevi ao professor Wien em Aachen a respeito de meu trabalho sobre o movimento relativo do éter luminífero em relação à matéria ponderável, o mesmo que o “chefe” tratou de modo tão precipitado. Li um trabalho muito interessante de Wien sobre o assunto, escrito em 1898.
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Esse texto tem vários desdobramentos históricos importantes no cenário do presente ensaio. Em primeiro lugar, Einstein acompanhava a literatura contemporânea, coisa que seus professores da ETH não tratavam em sala de aula. Em segundo lugar, Einstein refere-se ao “seu” trabalho sobre o movimento relativo … Se Mileva estivesse participando daquele empreendimento científico, como quer-nos fazer crer Desanka, ele provavelmente diria “nosso” trabalho. Finalmente sabe-se hoje que o “chefe” era Heinrich Friedrich Weber, com quem Einstein teve uma relação de amor e ódio. Foi seu orientador na monografia de fim de curso, assim como de Mileva, mas não aceitou uma proposta de Einstein para construir um aparato para medir com precisão o movimento da Terra em relação ao éter. Tudo indica que Einstein teve essa ideia sem conhecer experimentos anteriores, na mesma linha. Weber deve ter-lhe sugerido a leitura do artigo de Wien, no qual são apresentadas algumas das mais importantes tentativas para esse tipo de medida, incluindo o famoso experimento de Michelson-Morley, que muita gente acha que inspirou Einstein na sua teoria da relatividade especial, o que ele nega.
Sob a orientação de Weber, Einstein e Mileva fizeram suas monografias em temas relacionados à condução do calor. Sabe-se hoje que a proposta de Einstein era mais avançado do que a que Weber o obrigou a realizar. De qualquer modo, Einstein e Mileva ficaram com as notas mais baixas nesse requisito. Ganharam, respectivamente, 4,5 e 4. Só para efeito de comparação, Grossmann ficou 5,5, para um máximo de 6,0. Não há registro na coleção de cartas para Helene, que Mileva tenha transmitido essas vicissitudes. Ao contrário, ela transmitia um clima de satisfação e felicidade em relação aos estudos.
Em 9 de março de 1900, Mileva informa que o Professor Weber aceitou a sua proposta de monografia, e que ele demonstrava estar muito satisfeito com o trabalho. Como foi dito acima, meses depois ela receberia a pior nota da turma na monografia. Tudo isso provocava em Helene uma imagem diferente do que estava ocorrendo na ETH. Por exemplo, em carta de 14 de julho, Helene escreve para sua mãe:
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A Srta. Maric e o Sr. Einstein terminaram o exame escrito. Eles planejaram seus tópicos juntos, mas o Sr. Einstein cedeu o mais agradável para a Srta. Maric. Ele provavelmente será assistente de seu professor e permanecerá aqui. Miss Maric também recebeu uma oferta de assistente na Politécnica, mas por causa dos alunos ela não quis aceitar.
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O final desse texto é absolutamente ilusório. Mileva não recebeu qualquer oferta para ser assistente, até porque não havia sido aprovada no exame final, o que aparentemente Helene não sabia. Sobre as mal sucedidas tentativas de Einstein obter um cargo de assistente, veja o ensaio sobre Grossmann e Einstein [6].
A partir de 1900, Einstein inicia uma corrida frenética, atacando vários assuntos da física, até concluir seus icônicos trabalhos de 1905. Na hipótese defendida por Desanka Trbuhovic-Gjuric, esse deve ter sido o período de intensa colaboração intelectual entre ele e Mileva. Onde estaria essa colaboração registrada? Deveria estar nas cartas de amor [4] ou nas cartas de Mileva para Helene. Vários autores mostraram que as cartas de amor não apresentam indicativo sobre esta colaboração. Mostrarei que o mesmo acontece com as cartas para Helene.
Depois do exame final, em julho de 1900, até 1905, Mileva escreveu quatorze cartas para Helene. Abordarei aqui apenas as cinco nas quais ela se refere a Einstein ou a seus estudos na ETH.
Em 20 de dezembro de 1900, Mileva escreve de Zurique:
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Albert escreveu um artigo que provavelmente será publicado no Annalen der Physik. Você pode imaginar o quanto estou orgulhosa do meu querido. Este não é um tipo de artigo comum, ele é muito importante; trata da teoria dos líquidos. Também enviamos uma cópia para Boltzmann e gostaríamos de saber o que ele pensa a respeito; espero que ele escreva para nós.
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Mileva diz claramente que se trata de um trabalho de Einstein, embora mistifique a história, ao dizer que “enviamos uma cópia para Boltzmann” e finalizar dizendo “espero que ele escreva para nós”. É provável que Einstein tenha mencionado a intenção de enviar a carta para Boltzmann, mas não o fez. Não há registro nos arquivos de Einstein de que isso tenha ocorrido [8]. É provável que esse tipo de informação tenha levado Helene e outros que tiveram acesso a essa correspondência, à suposição de que Mileva estava trabalhando com Einstein nesse problema. Mas, se estava, por que Einstein não incluiu seu nome no artigo? Vejamos essa história de outro ângulo.
Em 3 de outubro, Einstein escreveu para Mileva, da casa de seus pais em Milão. Além dos assuntos pessoais de sempre, ele escreveu:
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Estou bastante versado em química física agora. As realizações nesse campo nos últimos trinta anos me empolgam muito. Também vai gostar quando estudarmos o assunto juntos. Os métodos de investigação física usados também são muito interessantes.
Os resultados sobre capilaridade que obtive recentemente em Zurique parecem ser inteiramente novos, apesar de sua simplicidade. Quando estivermos de volta a Zurique, tentaremos conseguir de Kleiner alguns dados empíricos sobre o assunto. Se isso revelar uma lei da natureza, mandaremos os resultados para os Annalen de Wiedermann.
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Precisamos analisar esse trecho da correspondência com atenção. Estamos em outubro de 1900. Einstein está em Milão e Mileva está em Kac, na casa de verão da família. Entre novembro e dezembro eles chegam a Zurique. Entre 13 e 16 de dezembro, Einstein envia seu primeiro artigo publicado no Annalen der Physik, sobre o fenômeno da capilaridade. Trata-se do artigo mencionado por Mileva. Então, a fala de Einstein “Quando estivermos de volta a Zurique […] mandaremos os resultados para os Annalen de Wiedermann”, não tem muito sentido, uma vez que ele submeteu o artigo em seu nome, e assim foi publicado. Esse tipo de conversa, que ele mantém em outras cartas, entre agosto de 1900 e julho de 1901, tem sido usado como “prova” de que Mileva estava trabalhando com ele. Abraham Pais [9] e outros historiadores defendem a hipótese de que essas frases são afagos que Einstein fazia para levantar o ânimo de Mileva, que havia sido reprovada no exame final em julho de 1900 e estava se preparando para uma segunda oportunidade em 1901, e seria novamente reprovada.
No outono de 1901, Mileva escreve para Helene:
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Terminei meus estudos, embora, graças às críticas de Weber, ainda não tenha conseguido fazer o doutorado. Eu aguentei muito com ele e em hipótese alguma vou voltar para ele novamente.
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Novamente, Mileva mistifica e falseia a história. Ela simplesmente diz que terminou os estudos, provavelmente induzindo Helene a pensar que foi aprovada. Ela reforça esse cenário, ao dizer que fará a tese de doutorado com outro orientador. Ela não podia fazer a tese de doutorado, uma vez que não tinha obtido o título da graduação.
Na última carta de 1901, ela segue a mesma linha de excessivo otimismo em relação ao futuro, e de grande admiração pelo trabalho de Einstein:
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Albert escreveu um estudo magnífico, que apresentou como dissertação. Ele provavelmente obterá seu doutorado em alguns meses. Li esta obra com grande alegria e verdadeira admiração por meu queridinho, que tem uma cabeça tão inteligente. Enviarei uma cópia quando for impresso. Trata da pesquisa das forças moleculares nos gases, usando vários fenômenos conhecidos. Ele é realmente um companheiro esplêndido.
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A otimista avaliação do “doutorado em alguns meses” não se confirmaria. Dias antes dessa carta, Einstein havia submetido sua tese ao Professor Alfred Kleiner, da Universidade de Zurique (Naquela época, a ETH não podia conferir o título de doutor. Então, quase todos os alunos da ETH submetiam suas teses à Universidade de Zurique), mas ele rejeitou a tese. Einstein só conseguiria seu doutorado em 1905. O aspecto mais importante dessa correspondência é que ela indica, mais uma vez, que Mileva não participava do trabalho científico de Einstein, senão a frase “Albert escreveu um estudo magnífico”, teria sido algo assim: “Concluímos um estudo magnífico”.
Finalmente, selecionei duas cartas que contrariam completamente a hipótese da colaboração de Mileva no trabalho de Einstein. Em dezembro de 1906, Mileva escreve: Os artigos que ele tem escrito estão crescendo. No inverno de 1909 ela escreve:
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Meu marido está muito feliz […] ele está trabalhando muito, ele publicou muito e agora está tentando aprender o lado prático da física, para a qual ele não teve muitas oportunidades. Em setembro passado, ele deu uma palestra para uma reunião de físicos e médicos alemães em Salzburgo. Você vê, com esse tipo de fama, ele não tem muito tempo para sua esposa. Li nas entrelinhas um certo tom malicioso quando você escreveu que devo ter ciúme da ciência. Mas o que podemos fazer? Um, pega a pérola, o outro, a caixa.
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Em 1909, Einstein já tinha deixado sua teoria da relatividade especial e estava investindo na sua generalização, para incluir referenciais não inerciais. Não importa aqui saber o que isso significa. O que importa é que essa árdua tarefa levou-o a escrever, em 19015, o artigo sobre a teoria da relatividade geral, ou a teoria da gravitação, como alguns preferem chamar a TRG. As cartas de Mileva, de 1906 e 1909 não sugerem, de modo algum, que ela estava colaborando com ele nessa empreitada. Ao contrário, sugere um sentimento de inveja, como bem percebeu Helene Savic. Mileva parece concordar, ao dizer que “um, pega a pérola, ou outro, a caixa”.
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Comentários finais
Toda essa história pode ser resumida assim. Há uma hipótese, defendida por autores aparentemente sem formação historiográfica, segundo a qual Mileva colaborou com Einstein em seus trabalhos científicos, até pelo menos 1910. Vários historiadores contestam essa hipótese. A única fonte confiável para avaliar a hipótese são cartas de Mileva, para Einstein e para Helene Savic. Tentei mostrar neste ensaio que essa fonte contradiz claramente a hipótese.
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Notas:
[1] R. Highfield and P. Carter, The Private Lives of Albert Einstein (Faber and Faber, Londres, 1993).
[2] A. Esterson and D. C. Cassidy, Einstein’s Wife: The Story of Mileva Einstein-Maric (MIT Press, Cambridge, 2019).
[3] M. Popovic(Ed.), In Albert’s Shadow: The Life and Letters of Mileva Maric, Einstein’s First Wife (Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2003).
[4] J. Renn and R. Schulmann, Albert Einstein-Mileva Maric: Cartas de Amor (Papirus, Campinas, 1992).
[5] M. Zackheim, Einstein’s Daughter: The Search for Lieserl (Riverhead Books, New York, 1999).
[6] C. A. dos Santos, Estado Da Arte / Estadão (2020).
[7] W. Isaacson, Einstein: Sua Vida, Seu Universo (Companhia das Letras, São Paulo, 2007).
[8] J. Stachel, D. C. Cassidy, and R. Schulmann, The Collected Papers of Albert Einsteim, Vol. 1 (Princeton University Press, Princeton, 1987).
[9] A. Pais, “Sutil é o Senhor . . .”. A Ciência e a Vida de Albert Einstein (Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1995).
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Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela leitura do manuscrito.
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