por Carlos Alberto dos Santos
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Até os anos 1980, sabia-se que Einstein era pai de dois filhos do casamento com Mileva Maric-Einstein. Em meados daquela década foram descobertas 54 cartas escritas entre 1897 e 1903, conhecidas na literatura como cartas de amor[1], nas quais fica-se sabendo que Mileva deu à luz uma menina de nome Lieserl. Ela nasceu em fins de janeiro de 1902, e depois disso não há registro do que lhe ocorreu. Tudo indica que por volta de agosto-setembro daquele ano ela teria sido vítima fatal de escarlatina. Uma parte dessa história foi abordada aqui em ensaios anteriores [2]–[4]. Além de Lieserl, há suspeitas de que Einstein teria tido mais dois filhos fora do casamento. Não há documento comprobatório, mas, no caso de Evelyn Einstein, alguns biógrafos respeitáveis chegaram a examinar essa hipótese. É disso que tratarei neste ensaio.
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Einstein e Mileva casaram-se em janeiro de 1903 e tiveram o primeiro filho, Hans Albert, em maio de 1904. Seis anos depois, nasceu o segundo filho do casal, Eduard. Em abril de 1914, o casal separa-se, e depois de uma longa e difícil convivência chegam ao divórcio em fevereiro de 1919. Em junho do mesmo ano Einstein casa-se com a prima, Elsa Löwenthall. Essa atribulada e complexa vida amorosa pontuou toda a vida de Einstein, desde sua primeira namorada, quando ele tinha 16 anos. Suas biografias, sobretudo aquelas destinadas ao grande público, estão sempre recheadas de relatos de alcova, com Einstein desempenhando o papel de sedutor irresistível. É nesse voluptuoso contexto que se insere a personagem deste ensaio.
Nos registros oficiais, Evelyn é filha adotiva de Hans Albert, e foi assim que sempre foi vista pelas fontes históricas que a ela se referiram. Todavia, duas fontes respeitáveis permitiram-se considerar a hipótese de que ela não seria a neta adotiva de Albert Einstein, mas sua filha biológica. Uma fonte é Robert Schulmann, ex-professor da Universidade de Boston, atualmente professor da Universidade Johannes Gutenberg e membro da equipe responsável pela organização dos trabalhos publicados por Einstein, ou, Collected Papers of Albert Einstein, daqui em diante referido apenas como CPAE[5]. A outra fonte é Michele Zackheim, autora de Einstein’s Daughter: the search for Lieserl[6]. Ambos entrevistaram Evelyn, e trechos de seus relatos foram publicados em livros[7], [8] e em dois artigos em meios de comunicação de massa[9], [10]. Em seu livro sobre Lieserl, Michele Zackheim diz que quando telefonou pela primeira vez para Evelyn, solicitando uma entrevista, ela teria dito: Você não precisa se preocupar comigo, Robert Schulmann sabe mais sobre minha família do que eu! De fato, Schulmann é uma das principais fontes atuais sobre a biografia de Einstein. Para escrever seu interessante livro[7], Carolyn Abraham entrevistou Schulmann, cujo relato usarei aqui extensivamente.
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Evelyn e Robert Schulmann
A primeira vez que Schulmann ouviu falar que Evelyn poderia ser filha de Einstein foi em 1985, em um jantar na casa de Hilda e Res Jost, em Zurique. O físico Res Jost havia passado os últimos dez anos da vida de Einstein, trabalhando ao seu lado no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Na ocasião do jantar, encontrava-se também Gina Zangger, filha de Heinrich Zangger, ex-professor de medicina legal na Universidade de Zurique, e fraterno amigo de Einstein. Em determinado momento Gina diz que tinha estudado no mesmo internato suíço onde Evelyn era interna nos anos 1950. Anos depois, Gina ouviu da esposa do diretor da escola algo que poucas pessoas no mundo sabiam. Frieda Knecht, esposa de Hans Albert, teria dito a funcionários do internato, que sua filha adotiva era de fato filha ilegítima do próprio Albert Einstein. Eles adotaram a criança para não comprometer a imagem de Einstein. Naquele jantar, Gina não disse mais nada, deixando Schulmann com a pulga atrás da orelha e louco para descobrir o que havia de verdade naquela história. Alguns dias depois, em conversa privada, Res Jost confirmou a história. E disse mais, Evelyn era fruto de um caso que Einstein tivera com uma jovem dançarina em Nova Iorque, em 1940.
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Assim que retornou aos EUA, Schulmann conseguiu entrar em contato com Evelyn, em Berkeley, que aceitou conversar com ele desde que fosse em um local público. Depois confessaria que tinha ficado com receio de encontrá-lo. Por sua vez, Schulmann estava interessado em ter informações sobre as cartas de amor[1], cuja existência já era de seu conhecimento. Pelo menos naquele primeiro encontro ele não estava interessado na paternidade de Evelyn. Logo se deram bem, e Evelyn prontamente contou o que ela sabia da sua história, começando pelo que ela considerava as disfunções da família, e como tinha sido abandonada e ignorada pela família desde que seu pai adotivo havia falecido, em 1973.
Em outro encontro que tiveram naquele mesmo ano, ela resolveu contar o que sabia. Antes de seus pais a enviarem para o High Alpine Daughters Institute, na província suíça de Ftan, quando ela tinha onze anos, eles contaram que ela era adotada, e sua mãe disse que havia coisas que ela precisaria saber quando fosse mais velha o bastante para compreender. Infelizmente sua mãe não viveu o suficiente para lhe contar essas coisas. Frieda Knecht faleceu em 1958, quando Evelyn tinha dezessete anos. Evelyn ficou com a dúvida e passou a elaborar teorias sobre o que seriam essas coisas. Quem seriam seus pais biológicos? Por que Hans Albert e Frieda resolveram adotá-la? De oficial, o único documento que Evelyn conheceu foram aqueles referentes à adoção, que chegaram depois da morte de Hans Albert. Os documentos indicavam que ela havia nascido em Chicago, filha biológica de Joan Hire, mãe solteira aos 16 anos. Certo dia, depois de localizar Joan, Evelyn telefonou-lhe. Quando se identificou, ouviu unicamente uma frase, antes do telefone ser desligado: Sugiro que você não tente me chantagear. Você vai se arrepender.
Por que, pensou Evelyn, ela haveria de querer chantagear Joan Hire? Será que ela escondia algum segredo importante sobre sua paternidade? Evelyn começou a desenhar um roteiro da sua adoção. Naquela virada de década, no início da Segunda Guerra Mundial, Hans Albert e Frieda estavam passando por uma tragédia familiar. Klaus, o segundo filho do casal, havia falecido, em 1938, aos seis anos de idade, vítima de difteria. David, o terceiro filho, nasceu com uma válvula estomacal defeituosa, levando-o à morte logo após o nascimento. Para completar o estado desesperador, Frieda permaneceu hospitalizada por seis meses e as finanças da família não eram das melhores. Precisaram da ajuda financeira de Einstein para a sobrevivência. Com todo esse preocupante cenário, Evelyn se perguntou: por que Hans Albert saiu lá da Carolina do Sul, onde residia, e foi até Chicago adotar uma recém-nascida, que precisou ficar aos cuidados do irmão Bernhard, de 11 anos de idade, enquanto sua mãe convalescia em um hospital? Para preencher a perda de David, ou teria outra razão?
Evelyn relatou a Schulmann um curioso incidente, ocorrido um pouco antes de seu batismo no internato suíço. Evelyn optou por ser batizada na religião cristã, para se ver livre das aulas de religião. Na viagem até o internato, Frieda contou ao pai do padrinho de Evelyn, que Einstein teria ficado muito irritado quando soube que Mileva batizara Hans Albert e Eduard como cristãos ortodoxos, e arrematou: É bom que Einstein esteja morto, ou veria outro de seus filhos batizado. Aparentemente, essa possibilidade da sua paternidade consolou Evelyn, uma vez que poderia explicar o relacionamento frio que tivera com seu pai adotivo. Também poderia explicar porque fora praticamente abandonada naquele internato suíço. Evelyn confessou que tinha a impressão que Hans Albert não a queria. Não entendia porque ele a adotou. A conclusão lógica para ela era que Einstein o obrigara a adotar sua filha bastarda. Por outro lado, este jamais demonstrou interesse nela. Quando ela escrevia para ele, era sempre Helen Dukas, a secretária, quem respondia, dizendo que Einstein estava muito ocupado para escrever para ela.
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Evelyn e Michele Zackheim
Inicialmente, Evelyn concedeu uma entrevista a Michele Zackheim por recomendação de Schulmann. No primeiro encontro, em 1994, Evelyn foi clara: você deve a Robert Schulmann por deixá-la entrar em minha casa. Mas, logo depois tornaram-se boas amigas, e em junho de 1995, Evelyn deu permissão para que Michele fosse sua única biógrafa. No final, talvez Michele tenha se encontrado com Evelyn mais vezes do que Schulmann, mas jamais escreveu a biografia desejada por Evelyn. Michele tinha uma justificativa. Para escrever a biografia teria que incluir a família de Evelyn, mas ela estava cansada deles. Pior do que isso ela tinha muita raiva dos descendentes de Einstein pela forma cruel como eles tratavam Evelyn. Michele diz que jamais se imaginou crescendo com raiva de Einstein, mas, confessa, é assim que ela se sentiu depois de conhecer Evelyn. Portanto, não é de se estranhar que em 2008 ela tenha escrito um artigo para a Discover Magazine, sobre os filhos de Einstein, com o sugestivo título Filhos de um Deus menor[9].
Naquele primeiro encontro, Evelyn já se locomovia numa cadeira de rodas, consequência de seus vários problemas de saúde e seu alto grau de obesidade. Mal podia caminhar. A casa era a imagem de terra arrasada. A sala de estar inundada por causa do rompimento de um cano d’água, papéis úmidos espalhados por toda a sala, e o sofá cheio de caixas de papelão despedaçadas. Aquele cenário depressivo se coadunava com as primeiras palavras de Evelyn:
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Não se preocupe; minha casa está sempre um pouco de cabeça para baixo. Eu tenho que me desculpar por não me vestir para sua visita. Veja, minha mãe não me ensinou a se vestir. E, como você pode ver, eu herdei o comportamento desleixado da minha família. Eu não sou elegante.
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Na opinião de Michele Zackheim, Evelyn era uma mulher muito inteligente, mas sua vida como uma Einstein era terrível. Desde criança se sentia próxima da mãe adotiva e distante do pai. Foi casada durante 13 anos com Grover Krantz, professor de antropologia da Universidade Estadual de Washington. Não teve filhos nem boas recordações do casamento. Jamais teve um emprego à altura da sua capacidade intelectual e da sua formação acadêmica; dominava quatro idiomas e era mestre em literatura medieval pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Trabalhou como apanhadora de cães, voluntária como policial da reserva, e como cult de-programmer, auxiliou pessoas que tinham passado por lavagem cerebral, sobretudo da seita Moon.
Quando se referiu à suspeita de que era filha biológica de Einstein, comentou:
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Eu percebi que esse grande segredo sombrio sobre meu nascimento era um livro aberto para muitas pessoas. Como não tinha provas, pensei que se abordasse esse assunto com as pessoas, elas pensariam que eu era louca. Então, eu nunca falei sobre isso. Hesitei até em contar a Robert Schulmann. Eu estava com medo que ele pensasse que eu era uma idiota!
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Quando mencionou a história que Schulmann ouvira em Zurique, na casa de Res Jost, Evelyn relembrou de outros fatos não mencionados por Schulmann em seus relatos, como a história de que um dia sua cunhada, Aude Einstein, casada com Bernhard, filho de Hans Albert, lhe confidenciara que ela era um membro sanguíneo da família.
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O teste de paternidade
Quando Einstein faleceu, em 18 de abril de 1955, o patologista Thomas Stoltz Harvey, encarregado de fazer a autópsia, seguiu os procedimentos usuais que aprendera na faculdade e que repetira em centenas de corpos autopsiados, e retirou o cérebro daquele que décadas depois seria eleito a personalidade do século 20. Mas, ao contrário do que fizera com outros, Harvey preservou o cérebro famoso para estudos futuros. Não era um cérebro pesado. Com 1.230 quilos, pesava menos do que o cérebro do filósofo alemão Immanuel Kant, por quem Einstein nutria grande admiração. Cuidadosamente, Harvey embalsamou o cérebro de Einstein para preservá-lo em boas condições para os estudos que imaginava realizar. Ao longo dos anos seguintes Harvey distribuiu partes do cérebro para alguns médicos, entre os quais o geneticista Charles Boyd, que recebeu seu brinde 38 anos depois da morte de Einstein. Imediatamente ele fez saber a Schulmann que estava de posse de pedaços do cérebro de Einstein, sem ter ideia de que era tudo que o historiador queria para chegar a uma conclusão segura da paternidade de Evelyn. Em princípio, nada complicado; algum material orgânico de Evelyn era tudo que o geneticista precisaria para comparar os DNAs. A simplicidade aparente transformou-se em impossibilidade nas mãos de Boyd. O DNA de Einstein parecia estar completamente fragmentado, o que impedia a comparação. O outro pedaço foi entregue aos geneticistas do National Institutes of Health, em Maryland, que obtiveram o mesmo resultado; aquelas amostras eram imprestáveis para uma análise de DNA. Anos mais tarde, Boyd encontrou-se com Harvey em Princeton, e descobriu outra razão para a deterioração do DNA. O cérebro tinha sido coberto com um fixador à temperatura ambiente. É provável que o DNA de Einstein tenha se derretido naquela quentura da primavera de 1955.
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Epílogo
Abandonada pela família, Evelyn faleceu em 2011, aos 70 anos de idade, depois de lutar contra um câncer e doenças hepáticas. Teve uma vida miserável depois da morte de seu pai adotivo, em 1973. Chegou a morar em seu carro e se alimentar de restos de comida das lixeiras de Berkeley. Em 1995, quando já acumulava diversas doenças, Evelyn entrou na justiça para participar do rateio que adviria da venda das cartas de Einstein, estimada na época em torno de 15 milhões de dólares, mas ela perdeu a causa.
Evelyn casou-se em meados dos anos 1960 e divorciou-se antes do final da década, quando passou a viver na rua, sem teto, dormindo em seu carro. Sua mãe já havia morrido, e seu pai estava casado com Elizabeth Roboz, que Evelyn chamava de a bruxa do oeste. Foi quando Hans Albert recusou-se a lhe oferecer qualquer assistência. Todo esse cenário, um verdadeiro pântano de depressão, não impedia que em muitos momentos eclodisse o senso de humor de Evelyn, que deixava Michele Zackheim boquiaberta.
Um dia próximo ao aniversário de Evelyn, Michele lhe perguntou o que ela mais desejava na vida. Me encontrar com Robin Williams, respondeu prontamente, e emendou: Ele é a pessoa mais inteligente, engraçada e intuitiva que já vi. Por intermédio de amigos, Michele conseguiu falar com ele, e em duas semanas ele foi à casa de Evelyn e tiveram um encontro de duas horas. Michele relatou que nunca tinha visto Evelyn tão feliz como no dia que lhe telefonou para agradecer o presente:
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Não me lembro de ter conhecido uma pessoa famosa tão especial. As que conheci, como Robert Oppenheimer, a filha de Churchill, o sobrinho de Edward Teller, meu avô, são comuns. Ele é especial.
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Notas:
[1] J. Renn and R. Schulmann, Albert Einstein-Mileva Maric: cartas de amor. Campinas: Papirus, 1992.
[2] C. A. dos Santos, “Einstein, Mileva e Helene Savic,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 18-Sep-2020.
[3] C. A. dos Santos, “Einstein e Mileva: amor, ódio e paz,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 12-Mar-2021.
[4] C. A. dos Santos, “Mitos sobre Einstein,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 23-Mar-2021.
[5] CPAE, “The Collected Papers of Albert Einstein,” Einstein Papers – Princeton University, 1987. [Online]. Available: https://einsteinpapers.press.princeton.edu. [Accessed: 03-Mar-2021].
[6] M. Zackheim, Einstein’s Daughter: The Search for Lieserl. New York: Riverhead Books, 1999.
[7] C. Abraham, Viajando com o cérebro de Einstein. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.
[8] R. Highfield and P. Carter, The private lives of Albert Einstein. Londres: Faber and Faber, 1993.
[9] M. Zackheim, “Children of a Lesser God,” Discover Magazine, Dec-2008.
[10] M. Zackheim, “My friend Evelyn Einstein,” Guernica Magazine, Los Angeles, Oct-2013.
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Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
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