por Eros Carvalho
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Muitas autoridades públicas têm manifestado a preocupação de justificar as suas medidas e propostas de combate à pandemia de Covid-19 com base na ciência. Ainda está na memória de muitos de nós a reiterada expressão de comprometimento do ex-Ministro Mandetta com a ciência. Esse é um bom sinal, pois mostra que a ciência goza de alguma autoridade em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, chama a atenção que diferentes e mesmo antagônicas decisões foram justificadas com base na ciência. João Doria, por exemplo, decidiu “com base na ciência” manter o isolamento horizontal no Estado de São Paulo de modo linear, enquanto Eduardo Leite também “com base na ciência” decidiu implementar no Rio Grande do Sul o distanciamento controlado que autoriza graus diferenciados de flexibilização das atividades econômicas para diferentes cidades. Parece que é possível justificar qualquer decisão em nome da ciência. Lembremos que inicialmente o governo do Reino Unido tentou justificar a decisão de praticamente não fazer nada para conter a propagação do novo coronavírus apelando para a estratégia de imunidade de grupo, supostamente também “com base na ciência”. Estariam todos certos? Neste cenário, surgem vozes sugerindo que talvez a ciência goze de excesso de autoridade a ponto de se tornar um fetiche. Uma consequência da fetichização da ciência seria dispor as autoridades públicas a fazer um uso retórico da ciência apenas para não se responsabilizar por suas decisões.
Não nego que deva haver casos de apelo meramente retórico à ciência em decisões sobre políticas públicas, mas não penso que a causa disso seja um suposto excesso de autoridade da ciência, o que de qualquer forma não parece se verificar. Além disso, temo que uma ênfase muito acentuada na tal fetichização da ciência nos leve para outro extremo igualmente indesejável, que é o de recusar à ciência o lugar que lhe é devido nas decisões sobre políticas públicas, como se essas decisões fossem então apenas políticas. Em cada uma dessas decisões é preciso distinguir o que cabe à ciência e o que cabe a considerações de valores ou de outra natureza. Penso também que é preciso entender um pouco melhor o processo de produção do conhecimento científico para vislumbrar melhor as dificuldades que estão envolvidas no uso adequado da ciência em políticas públicas. Só então ficará mais claro como ciência e valores podem ser combinados na proposta de políticas públicas e o que podemos e devemos esperar e exigir de nossas autoridades públicas em relação ao uso do conhecimento científico.
De modo não exaustivo, eu vou discutir algumas características do conhecimento científico que devem ser levadas em consideração quando aplicamos a ciência na solução de problemas sociais e no final vou esboçar algumas considerações sobre o uso adequado do conhecimento científico.
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1 Ciência e incerteza
Uma teoria científica pode ser compreendida como um conjunto de suposições, leis e modelos que nos permite explicar e prever fenômenos de um certo domínio, por exemplo, o domínio dos fenômenos físicos, químicos, sociais ou psicológicos. Almejamos boas teorias científicas porque queremos compreender, prever e mesmo intervir de modo bem sucedido no mundo que nos rodeia. Quando uma teoria abarca bem os fenômenos conhecidos de um domínio e faz novas predições que se verificam corretas por observações e experimentos controlados, dizemos que ela está bem confirmada. Isso não significa que ela foi provada verdadeira ou que não há mais a possibilidade de que ela se revele falsa. As observações e experimentações realizadas são sempre limitadas, mas o domínio dos fenômenos investigados é potencialmente infinito. Novas observações e experimentos podem falsear ou pelo menos colocar dificuldades para uma teoria que até então mostrou-se bem apoiada pela observação e experimentação. Essas considerações são importantes para explicitar o fato de que dificilmente estaremos em uma situação em que conseguimos eliminar toda e qualquer incerteza quanto à verdade de uma teoria empírica. Mas desse fato não se pode concluir que todas as teorias científicas são igualmente incertas. Algumas estão tão bem apoiadas em observações e experimentos acumulados ao longo de décadas que a incerteza residual é irrisória, outras nem tanto. Ao aplicar uma teoria para guiar ações, temos de levar essas diferenças em consideração.
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2 Risco Indutivo e valores
A incerteza associada às teorias científicas é chamada na literatura de “risco indutivo”. A filósofa da ciência Heather Douglas chamou a atenção para algumas consequências do risco indutivo, em especial para a relação entre ciência e valores. É inegável que valores sociais e morais atuem em algumas fases da atividade científica: na seleção de problemas para investigação e na imposição de restrições às metodologias de pesquisa. No atual momento, dada a urgência colocada pela pandemia, é razoável que se aumente ou se redirecione recursos para pesquisas sobre o Sars-CoV-2, tratamentos para a Covid-19, manejo sanitário e hospitalar, impactos socioeconômicos da pandemia etc. A sociedade tem urgência de respostas para questões nessas áreas. Quanto às restrições metodológicas, pesquisas que envolvam seres humanos estão submetidas a protocolos específicos para assegurar o bem-estar dessas pessoas. Em ambas as situações, a ciência interage com valores sociais e morais. A alegação mais ousada de Heather Douglas é a de que valores estão e devem estar presentes também na própria aceitação ou rejeição de teorias em virtude do risco indutivo.
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O risco indutivo nos leva a considerar as consequências do erro ao aceitar ou rejeitar uma teoria científica. Diante das observações e experimentações realizadas para testar uma teoria científica, o(a) cientista deve ponderar se aceita ou rejeita essa teoria. Quatro possibilidades se abrem: ele pode aceitar uma teoria e ela é correta, pode aceitar uma teoria e ela é incorreta, pode rejeitar uma teoria e ela é incorreta e pode rejeitar uma teoria e ela é correta. O primeiro e o terceiro caso são desejáveis, o segundo e o quarto não. Falsos positivos ou falsos negativos são erros que o(a) cientista busca evitar. Como a observação e a experimentação são sempre limitadas, o(a) cientista tem de decidir se elas são suficientes para aceitar ou rejeitar uma teoria. Como tomar essa decisão? Heather Douglas alega que é preciso ponderar com base em valores sociais e morais as consequências de se errar ao tomar essa decisão, isto é, as consequências de se aceitar uma teoria falsa e as consequências de se rejeitar uma teoria verdadeira. É importante observar que a filósofa não está dizendo que valores morais e sociais podem confirmar ou servir de razões para uma teoria. Esse papel continua reservado à observação e à experimentação. Valores morais e sociais apenas auxiliam o juízo de se a evidência acumulada é suficiente para aceitar ou rejeitar uma teoria.
Por exemplo, para testar a hipótese de que a dioxina causa câncer, o(a) cientista submete grupos de ratos de laboratório a diferentes concentrações de dioxina e compara as taxas de incidência de câncer nesses grupos com a taxa de um grupo controle. Em seguida o(a) cientista deverá ponderar em que ponto a diferença é estatisticamente relevante. E o problema aqui é que não há um número mágico. Segundo a Heather Douglas, é nesse momento que valores veem ao auxílio. Uma diferença muito pequena poderá significar, em termos de políticas públicas, regulamentação mais rigorosa, onerando a indústria. Uma diferença maior poderá significar uma regulamentação mais branda, prejudicando a saúde da população. Sem pesar essas consequências com base em valores não há como determinar em que ponto a diferença é estatisticamente relevante. Alguns filósofos da ciência rejeitam a posição da Douglas afirmando que é preciso distinguir o(a) cientista preocupado com a verdade da sua teoria no laboratório e o(a) cientista preocupado em usar ou aplicar uma teoria fora do laboratório. Valores devem ser relevantes só para os últimos, não para os primeiros. É controverso se essa distinção se mantém. Para os meus propósitos, ela não importa, já que estou preocupado aqui apenas com o uso da ciência.
Os relatos de casos de pessoas que contraíram a Covid-19 pela segunda vez na Coreia do Sul não se mantêm, segundo uma pesquisa recente, porque o teste aplicado a essas pessoas não discrimina entre material genético do Sars-CoV-2 ativo e fragmentos do vírus “morto”. Essa informação traz algum alento, mas ela é ainda insuficiente para concluir que não há como contrair a Covid-19 pela segunda vez. As consequências de se aceitar tal hipótese e ela for falsa são desastrosas. Pessoas que contraíram a Covid-19 e se recuperaram podem se expor a riscos desnecessários e ainda se tornar transmissores insuspeitos do Sars-CoV-2. Governos podem também se sentir mais autorizados a adotar a controversa estratégia de imunidade de grupo, como é o caso da Suécia. Assim, por razões morais e sociais, é razoável exigir evidência mais robusta para aceitar essa hipótese, especialmente em tomadas de decisões sobre políticas públicas.
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3 Modelos
Modelos são abstrações e simplificações da realidade, eles não devem ser confundidos com os fenômenos que representam. Como os mapas, os modelos seriam inúteis e impraticáveis se representassem todas as características da realidade. Quando estudamos um fenômeno, temos de focar apenas nos fatores que afetam ou são afetados por esse fenômeno. O risco aqui é que ao abstrair ou simplificar pode-se deixar de fora fatores que são relevantes para o fenômeno estudado ou incorporar outros que são absolutamente irrelevantes. Nesse caso, teremos um modelo distorcido que não nos ajudará a entender e muito menos a intervir na realidade. É difícil saber se um modelo representa todos e apenas os fatores que são relevantes para o fenômeno estudado. Deste modo, há sempre também alguma incerteza associada à correção dos modelos que compõem as teorias científicas.
O modelo epidemiológico apresentado pelo Imperial College em março desse ano foi crucial para mover o governo britânico da sua letargia diante da pandemia do novo coronavírus ao prever que 250 mil britânicos poderiam morrer de Covid-19. Esse estudo também cita o Brasil, que poderia chegar a ter, no cenário em que nenhuma intervenção é feita, perto de 1,15 milhões de mortes. Contudo, estudos subsequentes revelaram que esse modelo contém suposições que foram elaboradas treze anos antes e que não foram ajustadas para a Covid-19, além de ignorar fatores relevantes para a dinâmica de transmissão da doença. A estratégia de testar, rastrear e isolar, que pode ser combinada com várias políticas de isolamento e que se mostrou eficaz em vários países, como Alemanha, Coreia do Sul e Cingapura, é simplesmente ignorada pelo modelo do Imperial College. Um modelo com muitas lacunas perde credibilidade e torna-se muito incerto para guiar ações e decisões. Além disso, em um momento de extrema polarização política, a própria ciência pode ser alvo de politização se começa a circular modelos precários e pouco credíveis. Isso não é bom para a ciência.
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4 Aplicando uma teoria
Transpor uma teoria científica para a vida real é sempre um processo delicado. A dificuldade aqui não se deve apenas às simplificações feitas pelos modelos teóricos face a riqueza de detalhes da realidade, mas sobretudo ao ambiente controlado em que as teorias científicas são submetidas a testes. O ambiente controlado do laboratório é fundamental para isolar variáveis e investigar o que causa o quê. Mas no mundo real as coisas estão misturadas, e o que ocorre no laboratório nem sempre ocorre da mesma forma no mundo real em virtude da interação de uma grande quantidade de fatores. Essa é a razão pela qual o teste in vitro bem sucedido de um medicamento contra um patogênico não significa que esse medicamento será eficaz ao ser aplicado a um organismo infectado por esse patogênico. Assim, quando o ministro Marcos Pontes anuncia que testes iniciais relevaram um remédio eficaz no combate à Covid-19, ele presta um desserviço.
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A aplicação de uma teoria sempre encerra alguma incerteza, pois a princípio não há garantias de que a transposição será bem sucedida, mesmo quando outras similares foram. Fatores locais que não estavam presentes no laboratório ou mesmo nos ambientes de outras transposições bem sucedidas podem frustrar uma nova aplicação. A filósofa da ciência Nancy Cartwright defende que não deveríamos assumir que as teorias científicas são universais de partida, o seu escopo inicial é restrito ao laboratório onde elas ganham plausibilidade ao enfrentar os primeiros testes e vai sendo ampliado na medida em que são transpostas, frequentemente não sem ajustes e modificações, para situações mais concretas. Nesse sentido, ciência, aplicações e tecnologia são inseparáveis.
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5 Ciência sim, palpite e pseudociência não
Apesar de todas as incertezas associadas ao empreendimento científico, a ciência é a nossa melhor aposta. Quando aplicamos uma teoria para solucionar um problema social ou prático, é fundamental que façamos previsões corretas das consequências das nossas intervenções no mundo, de outro modo a aplicação pode ter resultados desastrosos. O caso Lysenko ilustra isso muito bem. Com base no que na época já eram consideradas ideias pseudocientíficas, o lamarckismo, toda a agricultura da ex-URSS foi reformada, levando-a ao colapso nos anos seguintes. A compra de respiradores inadequados é um desperdício de recursos públicos que poderiam ser utilizados para salvar vidas e é difícil imaginar que ela tenha sido acompanhada por técnicos da área. Em contrapartida, estratégias de distanciamento físico são adotadas em praticamente todos os países porque temos evidência de que são intervenções que se mostraram bem sucedidas. Teorias bem testadas e confirmadas têm chances maiores de fazer previsões corretas do que teorias não testadas ou ideias movidas por boas intenções mas sem nenhum amparo ainda na observação e experimentação. Portanto, é com base na ciência que decisões sobre políticas públicas têm de ser tomadas, em qualquer caso, pois, ainda que envolvam alguma incerteza, são mais seguras.
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6 O uso adequado da ciência e o papel das humanidades
Em princípio, propostas diferentes e aparentemente antagônicas com base na ciência não deveriam nos alarmar. Situações e contextos distintos podem exigir respostas distintas para problemas similares. Ainda que a pandemia seja a mesma, as circunstâncias locais nem sempre são idênticas em muitos aspectos relevantes e, portando, podem ensejar respostas particularizadas.
O risco, no entanto, de que se possa usar a ciência como uma desculpa para não assumir responsabilidades não é infundado. É preciso observar também que decidir com base na ciência em si mesmo pode não significar muita coisa. Alguém pode tomar uma decisão levando em consideração o resultado de uma pesquisa científica, mas ignorando outras que são relevantes para a sua decisão. Embora tenha, em certo sentido, decidido com base na ciência, não fez o melhor uso da ciência. Essa pessoa estaria decidindo como o peru indutivista de Russell que, por ter sido alimentado todos os dias às 9 da manhã, aguarda a comida na manhã da ceia de natal, quando, para a sua surpresa, é degolado. Se o peru indutivista tivesse notado que outros perus igualmente alimentados às 9 da manhã sumiram em feriados passados, ele talvez pudesse ter tomado uma decisão diferente e feito um uso mais adequado da evidência disponível. Alguns filósofos da ciência sustentaram que o melhor a se fazer é usar a evidência total disponível, mas isso é impraticável dado o vasto corpo de informações e resultados de investigações que a ciência acumula. Uma posição mais razoável seria a de que é desejável levar em consideração os resultados científicos que se julga relevantes para uma decisão sobre o que fazer, por exemplo, em termos de políticas públicas, sem perder de vista ao mesmo tempo o impacto das consequências dessa decisão.
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Essa posição tem a vantagem de explicitar o que afirmei desde o início: qualquer decisão sobre políticas públicas envolve tanto um componente técnico e científico quanto político ou valorativo. Seguindo a filósofa Heather Douglas podemos dizer que qualquer que seja a política pública proposta para enfrentar a pandemia de Covid-19—qualquer que seja a variação de distanciamento físico, lockdown ou quarentena—, é preciso que se esteja em condições de prever corretamente as consequências dessa política, o que exige competência técnica e científica, e que se pondere se a evidência disponível para essas previsões é suficiente com base em valores sociais e morais, o que envolve as preocupações de toda a sociedade civil. Como já está claro no debate público, espera-se, qualquer proposta precisa preservar o máximo de vidas possíveis e a segurança das pessoas, o que envolve no mínimo segurança física, de moradia e alimentar. Esses dois valores já são suficientes para nos fazer ver que as consequências sanitárias e para o sistema da saúde pública precisam ser consideradas em conjunto com as consequências econômicas, e que talvez um plano sanitário não possa ser pensado e proposto independentemente de um plano econômico. Mas não para aí, consequências sociais e psicológicas são relevantes para o bem-estar de toda a população e também devem ser consideradas.
Respondendo então de modo mais direito à inquietação expressa no início deste texto, o que devemos esperar e exigir das autoridades públicas é o uso adequado ou ponderado da ciência. Nenhuma autoridade poderia, portanto, eximir-se de suas responsabilidades por ter usado mal ou de modo imponderado a ciência. Claro que, como acabamos de ver, usar a ciência em políticas públicas é sempre uma questão complexa e não é de se esperar que as autoridades públicas detenham o conhecimento e as habilidades necessárias para fazer o bom uso da ciência. É por essa razão que as autoridades precisam ser bem assessoradas por técnicos e cientistas capazes de avaliar as incertezas envolvidas nos conhecimentos científicos mobilizados, prever as consequências de aplicá-los a situações concretas e particulares e frequentemente intermediar junto às instituições de pesquisa a transposição da ciência de laboratório para a ciência em ação. Idealmente, as autoridades públicas se valeriam também de representantes da sociedade civil para que a ponderação moral e social das consequências de uma proposta reflita melhor os anseios morais e políticos da sociedade.
Por fim, visto que não basta usar a ciência mas que é preciso usá-la bem, isto é, adequada e ponderadamente, somos levados à questão de como podemos avaliar e melhorar esse uso. A esse respeito, o reconhecimento da importância das humanidades para a sociedade é inevitável, pois a pergunta “Como as ciências podem e devem informar e assessorar governos na elaboração de políticas públicas?” é uma que só as humanidades em conjunto pode responder. É uma questão difícil e complexa e para a qual há uma vasta literatura nas ciências das políticas públicas, sociologia, história e filosofia da ciência. Para respondê-la, precisamos conhecer a história de episódios bem sucedidos de assessoramento científico, da institucionalização desse assessoramento nos governos modernos, conhecer as teorias sobre organizações e processos de decisões públicas e políticas, entender o processo de produção de conhecimento científico e por fim precisamos saber como avaliar e melhorar a qualidade e a confiabilidade desse assessoramento. Assim, nenhuma sociedade que almeje ser iluminada pela ciência pode se privar das humanidades.
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