por Rogério Passos Severo
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Antigamente, os metafísicos formavam todos uma só espécie. Hoje, são ao menos duas. À mais nova pertence o psiquiatra escocês Iain McGilchrist, cuja obra recente figura entre as mais notáveis contribuições ao que podemos chamar de “metafísica naturalizada”. Diferentemente da metafísica tradicional, esse novo tipo de metafísica descreve os traços mais gerais do mundo a partir de uma sistematização dos resultados empíricos das ciências naturais. Ela difere da metafísica no sentido clássico por não justificar suas afirmações de modo a priori. Na filosofia recente, pode-se dizer que o pai das metafísicas naturalizadas é o filósofo americano Willard Quine. Um aspecto saliente de sua obra foi a defesa — a partir do que ele via como a melhor sistematização possível dos resultados das ciências naturais — de uma ontologia materialista, ou “fisicalista”. Esse é um dos desfechos de sua obra principal, Palavra e Objeto, originalmente publicada em 1960. Nos últimos anos, alguns esforços de sistematização dos resultados gerais das ciências naturais têm levado a caminhos diferentes. Os produtos de alguns desses empreendimentos são metafísicas (isto é, ontologias e cosmologias) claramente anti-materialistas. A filosofia da mente do australiano David J. Chalmers, por exemplo, pode ser incluída nessa categoria. No caso de McGilchrist, temos uma metafísica que a um só tempo está mais diretamente fundada em resultados empíricos — proveniente de estudos sobre os hemisférios cerebrais — e que é mais ampla e geral em seu escopo. O fato de ele próprio não ser um filósofo profissional é irrelevante. Filosofia é uma atividade que pode em princípio ser exercida por qualquer um. O fato de a maior parte da filosofia contemporânea ter sido produzida por professores de filosofia é uma peculiaridade do último século. Em tempos mais remotos não era assim. Nos últimos anos parece ter havido um retorno a essa prática mais antiga, em que a filosofia extrapolava os limites departamentais e dela participavam pessoas provenientes das mais diversas áreas de formação. O livro A inconstância da alma selvagem, do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, as obras do biólogo Edward O. Wilson e do linguista Steven Pinker sobre natureza humana, o trabalho do psicólogo Jonathan Haidt sobre os fundamentos da moralidade e as obras do economista Amartya Sen são exemplos desse tipo. Essa sobreposição e confluência nos objetivos e métodos de filosofia e ciência é um dos traços do naturalismo em filosofia.
O ponto de partida de McGilchrist é a psiquiatria e a neurociência dos hemisférios cerebrais. Nos últimos quarenta anos, houve uma evolução significativa do entendimento que se tem do modo como os hemisférios funcionam e interagem. Inicialmente supunha-se que havia algo como uma diferenciação de tarefas: a linguagem e o raciocínio seriam processados primariamente no hemisfério esquerdo enquanto emoções e processamento visual seriam executados pelo hemisfério direito, na maioria das pessoas (essa é uma regularidade estatística apenas, que comumente encontra exceções em pessoas canhotas ou ambidestras). Essa divisão de tarefas parecia ser sugerida pelo comportamento de pessoas que nas décadas de 1960 e 1970 foram submetidas a cirurgias de cisão do corpo caloso, que une os hemisférios no centro do cérebro — uma técnica empregada à época para tratar casos excepcionalmente graves de epilepsia. Mais tarde, descobriu-se que não há essa divisão de tarefas entre os hemisférios. A linguagem e as emoções são processadas por ambos hemisférios, do mesmo modo que os raciocínios abstratos e o processamento visual. Isso trouxe uma espécie de enigma para os estudiosos do assunto: então por que temos dois hemisférios cerebrais? (Não apenas nós, humanos, mas todos os mamíferos e também os peixes, aves e répteis.) E o que explicaria o fato de que a divisão entre os hemisférios tornou-se mais acentuada ao longo da evolução humana?
Na primeira parte de um livro publicado em 2009, The master and his emissary, e novamente na primeira parte do livro The matter with things, publicado em 2021, McGilchrist apresenta a sua hipótese para a evolução dos hemisférios cerebrais. Há duas atividades essenciais à sobrevivência dos animais que precisam ser realizadas concomitantemente. Uma consiste monitorar os perigos e potenciais que um ambiente fornece (alimentos, predadores, parceiros sexuais, abrigo, localização e orientação espacial etc.), outra consiste em, uma vez identificado um risco ou potencial particular nesse ambiente, focar a atenção especificamente nele, isolando-o ou destacando-o do contexto mais geral em que se encontra. Essas duas atividades exigem dois tipos de atenção. Uma é mais geral e ampla, aberta ao ambiente como um todo e ao que ele tem de desconhecido. A outra é focada em algo particular, que é destacado do seu contexto, identificado e catalogado. Um exemplo usado por McGilchrist é o de um passarinho que passa os olhos por um gramado e vê no chão uma semente. Como os olhos das aves geralmente localizam-se nos lados da cabeça, o uso específico de um ou outro olho exige que a cabeça vire para um lado ou outro. Para contemplar o gramado e o ambiente circundante, as aves usam primariamente o olho esquerdo, que é comandado pelo hemisfério cerebral direito. Ao vislumbrar o alimento potencial, a ave então volta o seu olho direito (comandado pelo hemisfério esquerdo) para a semente, que então é identificada e destacada do contexto (das pedrinhas que estão no chão ao lado da semente, por exemplo). Temos aí dois tipos de atenção: uma mais holística, que situa o indivíduo no seu contexto geral e permanece aberta a riscos e potenciais, e outra mais focada que abstrai do contexto mais geral e que permite a classificação e manipulação de coisas particulares. Há, nesse sentido, uma assimetria entre os hemisférios. O tipo de atenção produzida pelo hemisfério esquerdo, mais focada e descontextualizada, adequada para representar, mapear e esquematizar, só pode funcionar adequadamente quando integrada à atenção mais holística e contextualizada produzida pelo hemisfério direito, que efetivamente apresenta o que é representado pelo hemisfério esquerdo. O hemisfério direito é o mestre, o esquerdo, o seu emissário, para usar a metáfora que serve de título de um dos livros de McGilchrist.
No caso dos seres humanos, a lateralização cerebral adquiriu novos contornos. Nossas capacidades de imaginação, reflexão, raciocínio e fala, muito superiores às de outras espécies, também são lateralizadas. Do mesmo modo que a atenção visual, essas capacidades podem ser exercidas de modo mais focado e descontextualizado, ou de modo mais holístico e aberto. No caso da linguagem, por exemplo, palavras podem ser usadas de modo mais preciso e técnico, para identificar, catalogar, descrever e mapear coisas já conhecidas, ou podem ser usadas de modo mais ambíguo, metafórico e aberto — por exemplo, no humor, na poesia, na expressão de sentimentos e possibilidades espirituais. O primeiro tipo de uso da linguagem, típico da linguagem abstrata das ciências e da linguagem impessoal da burocracia, tende a ser um uso não contextual, não ligado especificamente à uma realidade ou pessoa particular. O segundo uso, ao contrário, tende a apresentar situações concretas, a enfatizar o aspecto relacional de um contexto, e reconhecer o que é único e pessoal tudo que se apresenta. Segundo McGilchrist, os usos mais técnicos e abstratos da linguagem servem funções importantes, mas só fazem sentido no contexto mais geral da linguagem metafórica que liga conceitos abstratos às particularidades de nosso corpo e de nosso contexto. Nesse ponto, vale lembrar, McGilchrist retoma uma tese já defendida pelo linguista George Lakoff, segundo o qual metáforas não são meros recursos adicionais ou suplementares à linguagem literal, que seria mais básica. Ao contrário, a linguagem metafórica é que seria mais básica, pois apenas ela permite que conceitos abstratos conectem-se com nosso contexto particular. A linguagem literal é uma espécie de emissária da linguagem mestre, que é metafórica.
De modo mais geral, os tipos de atenção produzidos pelos hemisférios induzem perspectivas ou visões de mundo bastante distintas, mas complementares. Assim, o hemisfério direito tende a ver o mundo como sendo mais fluído, inconstante, paradoxal, formado não por coisas e máquinas mas por processos e organismos. Tende a considerar realidades implícitas ou ocultas, bem como perigos e potenciais como sendo relevantes, tende a ter mais apreço estético e espiritual e ser mais melancólico e pessimista. O hemisfério esquerdo, por outro lado, tende a ver o mundo como uma representação ou fotografia, concebendo o mundo como sendo mais estático e composto por objetos isolados, tende a prestar mais atenção às realidades aparentes e desconsiderar o que pode estar implícito, tende a ter mais apreço por mecanismos e a ser mais confiante e otimista sobre as suas próprias capacidades, uma vez que tende a desconsiderar o desconhecido e a possibilidade do erro ou da ambiguidade.
Esses dois tipos gerais de atenção complementam-se um ao outro e são importantes tanto para a nossa integração com o ambiente e para dar sentido ao que vemos e fazemos (hemisfério direito) quanto para a manipulação e apreensão de coisas particulares (hemisfério esquerdo). Indivíduos com lesões em um dos hemisférios revelam deficiências de um ou outro tipo, em conformidade com o hemisfério onde a lesão ocorreu. Assim também no que diz respeito à assimetria entre os hemisférios. Pessoas cujos hemisférios têm um funcionamento excessivamente simétrico, como é o caso de esquizofrênicos, revelam comportamentos típicos de pessoas que têm uma lesão no hemisfério esquerdo — revelando assim que o funcionamento normal dos hemisférios é assimétrico e guiado pelo hemisfério direito. É este que dá sentido e compreende, e produz o senso de inserção no contexto como um todo. O mundo de um esquizofrênico é fragmentado, carece de continuidade e fluidez, sua linguagem é mais literal, os objetos e acontecimentos são mais isolados uns dos outros. Isso tudo mostra, segundo McGilchrist, que o equilíbrio e funcionamento saudável do cérebro precisa ser assimétrico, com o hemisfério direito tendo, digamos assim, a primeira e última palavra. O hemisfério esquerdo é uma espécie de funcionário, útil para atividades específicas mas inadequado para a compreensão do todo.
Segundo McGilchrist, do mesmo modo que pode haver lesões, deficiências e distúrbios no funcionamento de um hemisfério cerebral de uma pessoa particular, assim também pode haver coletivamente uma preponderância das perspectivas ou visões de mundo induzidas por um ou outro hemisfério em períodos históricos distintos. A segunda parte do seu livro de 2009 apresenta hipóteses sobre períodos culturais da história do ocidente em que parece ter havido uma tendência para concepções mais induzidas por um ou outro hemisfério. Na antiguidade grega clássica teria havido uma predominância de visões de mundo tipicamente induzidas pelo hemisfério direito, do mesmo modo que no Renascimento. Na Europa dos séculos onze e doze, bem como em nossa época atual, ocorre o contrário. Boa parte da cultura contemporânea (arte, filosofia, ciência, relações sociais, burocracias) tende em nossa época a conceber o mundo em termos técnicos, abstratos, mecânicos e impessoais. McGilchrist chama a atenção, por exemplo, para a grande semelhança que há entre boa parte da arte conceitual contemporânea ou das abstrações geométricas na pintura e o tipo de desenho e descrição que pacientes com lesões no hemisfério direito produzem — que tende a ser esquemática, bidimensional, geométrica. Isso contrasta com o tipo de desenho e descrição que pacientes com lesões no hemisfério esquerdo tendem a fazer, que é mais orgânica, fluída, tridimensional e não esquemática. Ele menciona, em apoio a essa tese, a obra de Louis Sass, Madness and modernism: insanity in the light of modern art, literature and thought (1992) e diversos estudos recentes. Mas o mesmo pode ser dito de boa parte da filosofia analítica produzida no século vinte, que deliberadamente afastou-se de ambiguidades, metáforas e tudo aquilo que é implícito e metafórico. Aqui temos uma indicação das motivações pessoais de McGilchrist para empreender esse projeto intelectual: amante da poesia e das artes, ele pessoalmente considera uma espécie de insanidade a cultura materialista que se tornou hegemônica entre nós.
Se no seu livro de 2009 McGilchrist inferiu de sua sistematização empírica sobre os tipos de atenção uma tese em filosofia da história, ou filosofia das culturas, em seu livro mais recente, The matter with things (2021), faz algo mais ambicioso. Essa é uma obra que impressiona pelo seu tamanho (mais de 1500 páginas), erudição (a seção de referências bibliográficas contém mais de 100 páginas) e alcance intelectual — como dissemos, a pretensão é metafísica: compreender os traços mais gerais da realidade. As linhas gerais do seu raciocínio podem ser articuladas do seguinte modo: aquilo que concebemos como real varia conforme o tipo de atenção que predomina em nós em dado momento. Não temos um acesso ao mundo que não seja mediado por algum tipo de consciência do mundo, e esta varia conforme o tipo de atenção. Quando predomina o tipo de atenção gerada pelo hemisfério esquerdo, tendemos a dar mais relevo ao que é estático, discreto, mecânico e geométrico: que coisas existem e como elas funcionam. Assim, as metafísicas materialistas abundantemente produzidas no século vinte (das quais a filosofia de Quine citada acima é um exemplo) são decorrências típicas da atenção focada que abstrai do contexto mais amplo e busca categorizar a realidade. O hemisfério direito, ao contrário, tende a conceber o mundo em termos de processos contínuos, orgânicos e holísticos, tende a estar ciente do que é desconhecido e permanece aberto ao que é paradoxal e oculto, põe em relevo as relações e o sentido do que se apresenta, e nesse sentido é capaz de compreender a realidade mapeada esquematicamente pelo hemisfério esquerdo.
Será que o mundo em que vivemos é feito de coisas particulares ou de processos? Mecanismos ou organismos? Valores são traços da realidade ou construções culturais? O impulso religioso é um mecanismo de compensação psicológica ou um aspecto da natureza humana? A sugestão feita por McGilchrist é que essas questões fundamentais não têm como ser respondidas desde um ponto de vista neutro e externo a quem nós somos. Não temos como ver “a vida como ela é”, para falar como Nelson Rodrigues, a não ser sendo quem somos. Podemos mudar quem somos, mas para fazer isso precisamos partir de onde estamos. E podemos imaginar as coisas desde outros pontos de vista, mas enquanto imaginamos usamos os recursos mentais que atualmente temos — “não há exílio cósmico”, escreveu Quine (em Palavra e objeto). Não há um ponto de vista externo a nós mesmos a partir do qual poderíamos filosofar de modo neutro, sub specie aeternitatis. Mas podemos nos apoiar reflexivamente sobre o que já sabemos sobre nós mesmos e sobre o mundo e desse modo corrigir nossas próprias concepções. Considerando, então, o que sabemos sobre os tipos de atenção produzidas pelos hemisférios cerebrais e os tipos de perspectivas e visões de mundo induzidas por um e outro, temos indícios e razões que nos levam em um caminho contrário ao do materialismo metafísico. Esses indícios e razões são apenas isto: indícios e razões, e não provas ou demonstrações. A incerteza, afinal, é ela própria uma característica da visão de mundo induzida pelo hemisfério direito.
Que o mundo seja primariamente feito de objetos físicos, desprovidos de valor intrínseco ou propósito, que tudo que sabemos sobre o valor ou a beleza ou a espiritualidade seja redutível à interação de partículas e forças físicas — a metafísica fisicalista —, segundo McGilchrist, só faz sentido para alguém cujo hemisfério direito foi positivamente anulado. Em indivíduos cujos hemisférios cerebrais cooperam de modo assimétrico e saudável, em que o hemisfério direito desempenha o papel de “mestre”, há algo de absurdo nessas metafísicas, embora possam ser úteis para determinados propósitos. O argumento sugerido não é o de que as coisas são de um certo modo porque as concebemos assim (algo como um idealismo filosófico), mas o de que podemos conceber as coisas de vários modos e que algumas dessas concepções são adequadas para os propósitos mais restritos de manipulação, controle e explicação daquilo que já conhecemos e catalogamos, e outras são mais adequadas à compreensão do mundo e da vida como um todo, sempre parcialmente desconhecido e seguidamente paradoxal, mas cheio de beleza e valor e sentido nas suas singularidades únicas. McGilchrist sustenta que se quisermos levar a sério o que já sabemos sobre os tipos de atenção produzidos pelos hemisférios cerebrais, então a nossa metafísica mais geral e básica tenderá a ser uma metafísica de processos, valores e espiritualidade, e não uma metafísica de objetos, causas e esquemas geométricos. Mas ele também sustenta que isso não tem como ser compreendido literalmente, pois a linguagem literal não é a mais básica. Temos todos, em graus diversos, intuições e sentimentos da realidade que se apresenta e que apenas secundariamente é representada em esquemas, mapas e conceitos, mas temos também indícios indiretos que corroboram essas intuições e sentimentos nos estudos do cérebro. Partindo, portanto, de observações e achados estritamente científicos e empíricos, McGilchrist nos conduz, ainda por considerações também científicas e empíricas (junto com intuições e imaginação reflexiva — algo que também inerente à qualquer investigação, inclusive as científicas), a concluir que as metafísicas cientificistas que predominaram no século vinte estão equivocadas em suas conclusões mais fundamentais. Em outras palavras, temos nas obras de McGilchrist uma espécie de fundamento empírico (mas algo mais do que isso também) para a verdade destas Linhas compostas algumas milhas acima da Abadia Tintern:
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— E senti
Uma presença que me perturba com a alegria
De pensamentos elevados; um senso sublime
De algo bem mais profundamente infundido,
Cuja morada é a luz de sóis poentes,
E o oceano circular e o ar vivente,
E o céu azul, e mente do homem:
Um movimento e um espírito, que impele
Todas as coisas pensantes, todos os objetos de todos os pensamentos,
E perpassa todas as coisas.
…………………………………………………………………………………..(William Wordsworth)
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Referências
McGilchrist, Iain. The master and his emissary: the divided brain and the making of the Western world. New Haven: Yale University Press, 2009.
_____. The matter with things: our brains, our delusions, and the unmaking of the world. London: Perspectiva Press, 2021.
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