(Not) born this way

Há mais de duas décadas, a ciência tenta apontar a possível origem da homossexualidade. Nos últimos anos, de modo especial, lemos e ouvimos muitas notícias sobre o assunto. Habitualmente, as chamadas são interessantes e bombásticas: “Cientistas descobrem marca genética da homossexualidade” ou “Pesquisadores dizem que não existe um gene gay”.

por Flávio Romero

Há mais de duas décadas, a ciência tenta apontar a possível origem da homossexualidade. Nos últimos anos, de modo especial, lemos e ouvimos muitas notícias sobre o assunto. Habitualmente, as chamadas são interessantes e bombásticas: “Cientistas descobrem marca genética da homossexualidade” ou “Pesquisadores dizem que não existe um gene gay”. E assim por diante. A realidade, porém, não é tão simples como somos levados a acreditar; ciência não é ficção científica e não se faz com chamadas tendenciosas, mas com experimentos.

Biologia e Ideologia

O comportamento sexual humano, como se sabe, é complexo. Por isso mesmo, iremos restringir nossa reflexão àquilo que sabemos, até o momento, a respeito da biologia da atração pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo, da heterossexualidade ou homossexualidade. E o que já se sabe a respeito da origem biológica do comportamento sexual? Muito, pouco ou nada – a depender da visão de quem avalia. A interpretação dos dados científicos pode sofrer vieses por opiniões pessoais e não está protegida de ideologia. Basta lembrar do que se diz – e que pode ser bastante real – a respeito de manipulações estatísticas. E isto acontece.

“Não é uma escolha” – se diz a respeito da homossexualidade. De fato, é difícil imaginar a atração sexual como um mecanismo sobre o qual haja controle. A partir disso, foi-se criando uma ideia – conveniente, interessante e possível – de que, se esta é uma característica sobre a qual não se tem escolha, deve ter acompanhado a pessoa desde o seu nascimento. I was born this way – diz a música da Lady Gaga, num dos refrões mais cantados desta década.

É importante perceber que existe um salto quando se pensa que, por não haver faculdade sobre a atração sexual, já se nasce determinado por esta característica. E, apesar de ser uma ideia que atende e fortalece – ou pelo menos parece fazer isso – as demandas da comunidade LGBT acerca da aceitação e da luta contra o preconceito e homofobia, a confiança cega em um determinismo biológico acerca da sexualidade não parece adequada. O “born-this-wayismo” pode oferecer algum conforto, mas não pode ser creditado como uma verdade. Não com o que se sabe, pois os dados disponíveis sobre as causas biológicas da hetero ou da homossexualidade são, ainda, incipientes. Por enquanto, o “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim…” só serve para a Gabriela.

Examinando o pensamento contrário: afirmar que a atração sexual não envolve genética é, também, incorrer no mesmo erro – dar um veredicto acerca do que ainda é discutível. O “not-born-this-wayismo” tende a dizer mais: se não há mecanismos genéticos envolvidos, a homossexualidade deve ser apenas comportamental e, portanto, é, sim, uma questão de escolha.

Seria uma grande simplificação tratar as coisas desta maneira. Obviamente a manifestação do comportamento sexual – os atos sexuais em si – passam pelo crivo da vontade e inteligência humanas sendo, eles mesmos, resultados de uma escolha; mas a atração e o desejo não são regidos da mesma forma. Se a inteligência permite cultivar uma atração ou recusá-la, isto não acontece senão depois de a atração ter sido sentida e identificada. Ou seja, no ser humano, há diferentes níveis de controle desde a simples atração até o ato sexual. Assim, questões sobre sexualidade são mais complexas do que os pensamentos reducionistas que ambos os lados têm defendido. O assunto, que mereceria ser tratado com delicadeza e seriedade, é, para prejuízo de toda a sociedade, amplamente debatido com informações pouco esclarecedoras e imbuídas de ideologias e “achismos” de defensores e opositores desta questão.

Associação de genes

A primeira associação genética à homossexualidade foi feita em 1993 pelo geneticista Dean Hamer[1]. Neste estudo, Hamer verificou que um ou mais genes no cromossomo X poderiam estar relacionados à homossexualidade. Em homens, o cromossomo X é proveniente só da mãe e, em mulheres, de ambos, pai e mãe. A proposição surgiu após Hamer observar 114 famílias de homens homossexuais e verificar maiores taxas de homossexualidade em tios e primos do lado materno desses homens, quando em comparação com parentes do lado paterno. A posterior análise de marcadores genéticos no cromossomo X mostrou um mesmo padrão na região q28 deste cromossomo em 33 de 40 irmãos homossexuais. O geneticista sugeriu, então, que a homossexualidade em homens poderia ser influenciada por fatores genéticos.

Em 1995, Stella Hu, Hamer e outros pesquisadores repetiram a avaliação dos marcadores genéticos na região q28 do cromossomo X em homens e mulheres homossexuais e seus irmãos heterossexuais[2]. Para homens o resultado foi semelhante: aproximadamente 70% dos irmãos homossexuais (22 de 32 irmãos) apresentaram concordâncias nos padrões desta região, enquanto a associação entre irmãos homossexuais e heterossexuais foi de 25% (3 de 12 irmãos). Para mulheres, homossexuais ou heterossexuais, não houve qualquer associação possível.  Assim, o grupo reforçou a ideia da influência genética na homossexualidade em homens.

Ambos os estudos, porém, foram amplamente questionados a respeito de fatores externos que pudessem influenciar a característica e sobre o número de participantes – baixo para avaliações deste tipo, o que poderia gerar dados estatisticamente débeis. Além disso, estudos do geneticista George Rice, em 1999, não apontaram a presença de marcadores genéticos na mesma região analisada por Hamer[3]. Brian Mustanski e colaboradores, em 2005, também não verificaram genes no Xq28 que influenciassem a homossexualidade, apesar de terem identificado outras regiões de interesse nos cromossomos 7, 8 e 10 em homens[4]. O estudo de Mustanski foi a primeira análise genômica em larga escala com a finalidade de buscar genes relacionados com a homossexualidade. O resultado é interessante, mas também sofreu críticas por não avaliar mulheres e sobre o seu grau de confiabilidade estatística – o que foi questionado, também, pelo próprio grupo.

Assim, existem hipóteses para regiões que contenham genes que possam estar relacionados com o homossexualismo, mas não um “gene gay”. Na verdade, não é esperado encontrar um único gene que controle esta característica (herança monogênica). Uma hipótese possível é que uma predisposição à homossexualidade aconteça por um mecanismo multifatorial, onde há uma combinação de fatores ambientais com múltiplos genes. É o que ocorre, por exemplo, com a herança da estatura: há vários genes envolvidos nesta característica e o fenótipo observado depende, também, de fatores externos, como a nutrição.

Um exemplo conhecido de associação de genes com comportamento foi o trabalho de Brunner e colaboradores[5]. O grupo associou uma diminuição na expressão do gene MAOA, que codifica uma enzima que inativa neurotransmissores, a um comportamento impulsivo, perturbações no humor, tendência para comportamentos violentos, entre outras características comportamentais. Estudos posteriores também observaram maior tendência de comportamento violento em jovens vítimas de maus tratos e com o gene MAOA mutante quando comparado com jovens portando a versão não mutante deste gene[6]. Apesar de se tratar de uma associação que apenas favoreceria uma tendência a comportamento violento, ficou conhecido o controverso caso de Abdelmalek Bayout, que foi condenado por assassinato, mas teve sua pena reduzida pela justiça italiana por, dentre outros fatores, portar a referida mutação no gene MAOA. O que se sabe e se nota é que a maior parte das pessoas que apresentam esta mutação não irá apresentar comportamento excessivamente agressivo e cometer crimes. Ou seja, não há um mecanismo biológico determinante para comportamentos violentos.

Estudo de gêmeos

O estudo de gêmeos é uma poderosa ferramenta para determinar as influências genéticas e/ou ambientais em uma determinada característica: traços comportamentais, físicos e até doenças.

A ideia é bem simples. Gêmeos monozigóticos, ou idênticos, compartilham uma mesma composição genética, e gêmeos dizigóticos, ou fraternos, são tão semelhantes entre si quanto quaisquer irmãos. Assim, quando comparamos gêmeos idênticos e fraternos para uma mesma característica e observamos maior concordância entre os gêmeos monozigóticos, diz-se que há fatores genéticos envolvidos.

Obviamente este tipo de estudo seria excelente para apoiar ou rechaçar uma possível origem genética para a homossexualidade. E, é claro, já foram realizados vários experimentos com esta abordagem. Um dos pioneiros no estudo de gêmeos a respeito da homossexualidade, Franz Kallmann, em 1952, reportou uma concordância de 100% na homossexualidade entre gêmeos monozigóticos e de 11,5% entre gêmeos dizigóticos[7]. Tamanha concordância nunca foi reproduzida e, por isso mesmo, amplamente questionada. Outros estudos apontaram 52% e 22% de concordância para homossexualidade em gêmeos idênticos e fraternos, respectivamente, no estudo de Bailey e Pillard em 1991[8]. Há vários outros resultados na literatura genética recente, mas, de maneira geral, sempre se observou o dobro de concordância quando havia compartilhamento da mesma informação genética.

E o que se tira dessas informações? Que a Genética não determina comportamento. Na verdade, não se tem defendido um determinismo na comunidade científica. O que se sugere – como já falamos antes – é que possa haver alguma influência, uma predisposição. Haverá outros fatores (ambientais, culturais etc.) que irão compor a equação do fenótipo. Caso contrário, tenderíamos a ver gêmeos idênticos sempre homossexuais ou heterossexuais concordantes. E não vemos.

Semelhante situação já foi observada em características como o tabagismo. Estudos com gêmeos avaliaram o papel da constituição genética a respeito da persistência ou abandono do uso de cigarros. Gêmeos idênticos apresentam maior concordância na propensão em manter o uso de cigarro e no sucesso em parar de fumar, o que indica relevância da Genética[9]. Apesar de haver genes candidatos para uma propensão ao tabagismo – como o CHRNA5, que, a depender de sua variante, pode aumentar a vulnerabilidade ao tabagismo –, fatores não relacionados à Genética possuem peso grande o suficiente para favorecer ou não o início, manutenção e cessação do hábito.

Epigenética: “ligando e desligando” genes

Uma última ideia que busca relacionar genética e homossexualidade envolve alterações que favorecem ou reprimem a expressão de genes. Este campo de estudo – a Epigenética – mostra que alterações químicas no DNA “liga” ou “desliga” um gene. Estas alterações podem ser, por exemplo, a metilação (adição de um radical metila), mas nunca mutações na sequência dos nucleotídeos do DNA. E este padrão epigenético pode ser herdado e modificado de acordo com fatores ambientais.

O trabalho mais interessante de epigenética e homossexualidade até o momento foi realizado por Eric Vilain e seu grupo, na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Foi feito um screening epigenômico a partir do DNA extraído da saliva de 37 pares de gêmeos monozigóticos discordantes para homossexualidade e 10 pares de gêmeos monozigóticos concordantes. Este screening, que nada mais é do que uma varredura nos genes a fim de identificar modificações, mostrou cinco marcadores epigenéticos mais comuns entre os irmãos homossexuais (cerca de 70% dos casos).

Apesar de interessante, o trabalho apresenta uma fraqueza real reconhecida pelo próprio grupo: marcações epigenéticas variam grandemente com o tecido analisado. O ideal seria fazer um estudo com células do cérebro, cujo padrão de expressão de genes pode ser bastante diferente das células da mucosa oral e muito mais informativo para a questão da homossexualidade. Em outras palavras: o padrão de marcação e os genes que estão marcados podem diferir grandemente de um tipo celular para outro. O que está “ligado” em um, pode estar “desligado” em outro.

A verdade é que estudos em Epigenética estão ainda no início. Associá-los ao estudo da homossexualidade pode ser interessante, mas talvez não traga respostas tão rápido.

O que esperar?

É grande a quantidade de informações a respeito da homossexualidade e possíveis fatores biológicos envolvidos. Também são inúmeras as associações com fatores ambientais — biológicos ou não. Estas questões estarão mais claras no futuro com o desenvolvimento da técnica e com abordagens multidisciplinares, sem exclusão a priori de hipóteses que desagradem a um ou a outro grupo. Afinal, quanto menos ideologia, mais facilmente se chega à verdade. Sejamos céticos tanto a respeito do born this way quanto do not born this way. É mais seguro.

[1] Hammer, D. H.; Hu, S.; Magnuson, V. L.; Hu, N.; Pattattucii, A. M. (1993). A linkage between DNA markers on the X chromosome and male sexual orientation. Science 261, 321-327. 2

[2] Hu, S.; Pattatucci, A. M. L.; Patterson, C.; Li, L.; Fulker, D.; Cherny, S.; et al. (1995). Linkage between sexual orientation and chromosome Xq28 in males but not females. Nature Genetics 11, 248–256.

[3] Rice, G.; Anderson, C.; Risch, N.; Ebers, G. (1999). Male homosexuality: absence of linkage to micro satellite markers at Xq28. Science 284, 665–667.

[4] Mustanski, B. S.; Dupree, M. G.; Nievergelt, C. M.; Bocklandt, S.; Schork, N. J.; Hamer, D. H. (2005). A genomewide scan of male sexual orientation. Human Genetics 116, 272–278.

[5] Brunner, H. G.; Nelen, M.; Breakefield, X. O.; Ropers, H. H.; van Oost, B. A. (1993). Abnormal behaviour associated with a point mutation in the structural gene for monoamine oxidase A. Science 262, 578–580.

[6] Caspi, A.; McClay, J.; Moffitt, T. E.; et al. (2002). Role of genotype in the cycle of violence in maltreated children. Science 297, 851–854.

[7] Kallmann, F. J. (1952). Twin and sibship study of overt male homosexuality. American Journal of Human Genetics 4, 136–146.

[8] Bailey, J. M.; Pillard, R. C. (1991). A genetic study of male sexual orientation. Archives of General Psychiatry 48, 1089–1096.

[9] Munafò, M. R.; Johnstone, E. C. (2008). Genes and cigarette smoking. Addiction 03(6), 893–904.

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