Dentre as mudanças comentadas anteriormente, sofridas pelo Festival de Cinema de Berlim, esqueci de mencionar uma das mais visíveis. Alteraram a data, e a Berlinale encostou no mês de março. A proposta trouxe mais folga no calendário, mas colocou os filmes no meio de uma chuva incessante. Tem sido uma semana de muita água na capital alemã. Dias inteiros de frio e chuva ou, quando com sorte, pancadas esporádicas. Se os filmes estão tendo altos e baixos, pelo menos a umidade é uma constante.
No desafio de seguir a mostra competitiva após agrupar obras tão distintas como Él Prófugo, de Natalia Meta, e Le Sel des Larmes, de Philippe Garrel (sobre o qual ainda falarei), a Berlinale trouxe a co-produção franco-germânica Undine, de Cristian Petzold. Gosto muito do cinema do alemão e a expectativa era igualmente grande no Palast lotado, afinal todos gostariam de ver o autor do arrojado Em Trânsito retrabalhar essa figura mitológica de inúmeros desdobramentos. Desde as Nereides, na tradição grega, as ninfas marítimas tem causado problemas aos homens que se aventuram mar adentro. No caso da versão de Petzold, Paula Beer assume esse posto, como a historiadora que, logo no início do longa, tentará dissuadir o homem que ama a não deixá-la. Entre a incredulidade e alguns argumentos, o mais sintomático é a frase de que caso ele realmente resolva deixá-la, então a protagonista não terá outra possibilidade senão a de matá-lo. O comentário não surtirá efeito, mas serve para dar o tom de uma narrativa novamente original e corajosa do diretor. Tendo a prerrogativa de uma figura de ares mitológicos, Petzold zomba da realidade como tem feito em vários momentos da sua carreira. Undine, que trabalha explicando a história da cidade de Berlim em um museu, se envolverá com o mergulhador Christoph (Franz Rogowski), responsável por reparos subaquáticos. Entre as duas profissões aparentemente racionais, o filme molda a oposição singela entre a superfície de Undine e a profundidade de Christoph; a racionalidade dos prédio concebidos de antemão e o mistério daquilo que necessita ser explorado. Petzold sabe que evocar um registro aparentemente realista para então deturpá-lo é sempre um risco. Por isso, talvez, um humor plano seja mais facilmente identificável aqui do que em longas anteriores. Dono de um projeto que demonstra consistência e convicção do início ao fim, não é difícil imaginar que o diretor e roteirista alemão venha a repetir o Urso de Prata de 2012, tendo em Undine a sua nova Barbara.
Se a manhã iniciou com a releitura mitológica, nada mais justo do que seguir para a releitura histórica do aguardado concorrente brasileiro ao prêmio da Berlinale. Todos os Mortos, da dupla Caetano Gotardo e Marco Dutra, assume a tela tocando em um ponto nevrálgico da nossa sociedade. Tem ficado mais e mais claro, nos últimos anos, como o período após a abolição da escravatura deu os contornos do país que conhecemos hoje. A partir de um processo de alforria constituído de maneira burocrática, tardia e imposto por desejos mais externos do que internos, a grande massa de escravos que aqui viviam não tornara-se, como deveria ter acontecido, parte integrante da comunidade local. Pelo contrário, assumiram o posto de uma nova categoria, vista exclusivamente como servil. A não integração – ou a eterna refração dessas pessoas – é um dos pilares fundadores da desigualdade brasileira. Mas voltemos ao cinema.
Em Todos os Mortos, acompanhamos os meandros dos Soares, uma família aristocrática em decadência. O tempo da bonança, da abundância oriunda do café – que ainda os orgulha muitíssimo – ficou para trás, e quem antes usufruía dos privilégios prestados pelos escravos, agora tem de se limitar a uma vida calcada mais nas aparências do que no poder financeiro. As figuras masculinas estarão constantemente ausentes, e parece um indício de que o filme tem algo a dizer a respeito do abandono parental, mas este é apenas um dos núcleos temáticos que escapam ao desenvolvimento do enredo. Com a mãe doente, Maria (Clarissa Kiste) faz de tudo para recuperar a sanidade da irmã mais nova, Ana (Carolina Bianchi), inclusive trazendo para dentro de casa, em um ato quase iconoclasticamente irônico, a negra e ex-escrava Iná (Mawusi Tulani em atuação destacada), para realizar, dentro da Casa Grande, por assim dizer, ritual de matriz africana. A personagem de Bianchi é bastante interessante. Presa ao passado, sofre com a visão dos escravos que viu açoitados e hoje voltam a lhe turvar a visão. O final – que guardarei ao leitor – nos revela o quanto Ana é metáfora da nossa realidade, desse passado que segue incólume no dia a dia do país. Contudo, a passagem é menos catártica do que o roteiro imaginaria impor, tornando-se um entre tantos momentos excessivamente expositivos de Todos os Mortos. Aliás, é bem comum que filmes que buscam dar conta de uma quantidade alargada de período histórico, tenham, por um lado, o receio de não apresentar tamanho conteúdo e, por outro, a preocupação de não expor com clareza as suas ideias. O que fragiliza o contundente revisionismo de Gotardo e Dutra passa pelo pecado do didatismo da trama, imaginando que ele dará ao público mais compreensão dos temas abordados – que são vários -, quanto, na verdade, tornam o longa artificial no seu tom e arrastado no seu ritmo. Para além dos deslizes, que não são meros detalhes, há no trabalho da dupla um filme bastante importante, disposto a reorganizar um conflitos que a sociedade brasileira há muito deu, em sua completa miopia e tomada por enorme dissimulação, por solucionado.
A cobertura da Berlinale é uma parceria Goethe-Institut e Estado da Arte