por Willian Silveira
“Quem seria eu sem conhecer os olhos daqueles que vieram antes de mim?” A reflexão do narrador de “Francofonia”, um diretor em busca de inspiração para concluir seu filme, é o ponto de partida para uma viagem errante pela identidade da civilização ocidental. Passada a impressão inicial, de uma premissa metaficcional pouco original, o filme assumirá contornos nada óbvios. Afinal, tudo o que nos chega do diretor Alexandr Sokurov (Sibéria, 1951), discípulo de Andrei Tarkovski (1932 – 1986) no Instituto de Cinema da União Soviética, acaba por se revelar peculiar e autoral. Do recente épico fundador “Fausto” (2011) ao marcante “Arca-Russa” (2002), um trabalho de fôlego que perpassa a história da Rússia a partir das obras do museu Hermitage, em São Petersburgo. Idealizado por mais de uma década e filmado em plano-sequência, ou seja, sem cortes, o projeto envolveu três mil figurantes durante anos de ensaio para construir um monumento visual definidor da personalidade da gente de Tolstói – extravagante e corajoso.
Em “Francofonia”, Sokurov retoma a experiência histórica do trabalho que o revelou. Isolado em um apartamento, o narrador mantém contato com o capitão Dirk, comandante de um navio prestes a naufragar em algum mar do norte, levando consigo inúmeras obras de arte. A iminência do desastre repercute de maneira íntima. A perda de um Leonardo Da Vinci não se limita a manchar a imagem de uma tripulação. Significa deixar para trás um mundo do qual somos parte e que acessamos unicamente por meio do contato artístico. Sem este, colocamos um borrão na memória coletiva, esquecemos parcialmente de onde viemos e, consequentemente, de quem somos. Pelas tintas, conhecemos o desespero de O Grito (Munch, 1893) e a alegria do Baile de la Galette (Renoir, 1876); percebemos os homens como são, volúveis, ora comungando em A Última Ceia (Tintoretto, 1591) ora divididos em A Batalha de Isso (Altdorfer, 1529). Testemunhamos o milagre do chamado, na Vocação de São Mateus (Caravaggio, 1599), e a serenidade do profano, em A Primavera (Botticelli, 1482). Tudo isso com o objetivo de que constatemos, ao contrário de Narciso que acreditou no próprio reflexo, de que não somos únicos e sequer os primeiros.
Filmes devem acrescentar algo à nossa experiência, costuma dizer o dramaturgo Domingos de Oliveira. Por isso, “Francofonia” nos leva a meditar sobre a atemporalidade da arte, vista através do seu maior ícone: o museu do Louvre. No centro da trama, a França ocupada pelas tropas nazistas na Segunda Guerra, e a relação entre o diretor do museu Jacques Jaujard (Louis-Do de Lencquesaing) e o conde alemão Wolff-Metternich (Benjamin Utzerath), responsável pela ‘Kunstschutz’, a política de preservação das obras de arte após a invasão. Recuperar o esforço daqueles que se empenharam para que a herança artística sobrevivesse aos tempos sombrios é o ato de resistência da obra de Sokurov.
Cada diretor se movimenta interiormente através de uma força criativa. Woody Allen dirige pelo deleite da literatura, Stanley Kubrick, pela obsessão com a luz e Wes Anderson, pela vaidade da direção de arte. O russo, por sua vez, se movimenta pela necessidade da consciência. O cinema de Sokurov é a vontade da História, sendo possível imaginá-lo como um intérprete visual de uma concepção frouxamente hegeliana, certamente não-marxista, da filosofia histórica. Ainda que pouco afeito a parentescos, podemos pensar “Francofonia”como um encontro inusitado entre Ettore Scola (“O Baile”, 1983) e Alejandro Jodorovski (“A Dança da Realidade”, 2013).
Para contar uma história que remonta ao século XII, quando as fundações do museu surgiram como castelo às margens do rio para abrigar os franceses dos ataques vikings, o longa se vale de uma aparência singular. Ficção, documentário ou filme-ensaio, Sokurov não se deixa seduzir por limites claros. A narrativa não é criada para obedecer às regras dos gêneros cinematográficos. Antes, prefere subvertê-los e embaralhá-los, obtendo um resultado híbrido, cuja diálogo serve justamente para complementá-los. O que impulsiona o diretor é a especulação multifacetada da forma, essa expressão da estrutura. Empregando um desenvolvimento de mise-en-scène mais identificado com o teatro, Sokurov faz conviver o improvável. Estão ali o tempo presente do narrador-diretor, o passado ficcional de Jaujard e Metternich, as imagens de arquivo, os espíritos franceses de Marianne (a musa de Delacroix em A Liberdade Guiada pelo Povo) e Napoleão. Ao Louvre, o diretor entrega um protagonismo de admiração. Como guia, a consciência da História flana entre as galerias e pela arquitetura do museu, rompendo a quarta parede quando lhe parece ironicamente conveniente.
Não à toa, o começo do passeio cultural por que passamos durante o filme tem início com a imagem do autor de Guerra e Paz. Sisudo, Tolstói fita o espectador. O silêncio impera na tela, no aguardo de um semblante que jamais se expressará. O escritor dá lugar a Tchekhov, o contista insuperável. Não me diga que ele vai ficar calado também?, pergunta o narrador aflito. Ou seria, por que já não fala? – ou ainda, por que não já não te escutam? Na imagem de Cesare Pavese, a morte chegará e se parecerá com teus olhos. Ali, sozinho mas amparado pelos seus heróis, Sokurov constrói “Francofonia” como a reunião de seus maiores medos – o esquecimento da arte e o silêncio entre os homens.