por Willian Silveira
É assim desde o primeiro festival. Faço uma grande programação para o primeiro dia, agendo vários filmes (que a experiência me ensinou que não conseguirei ver, que é impossível trocar de sala em cinco minutos, que há atrasos mesmo em festival alemão, etc.) e ao fim o dia passa mais rápido do que deveria. A programação fica pela metade. E na Berlinale não seria diferente, claro. Talvez a sensação de que é possível se desdobrar venha da expectativa pelo filme de abertura, o que aqui em Berlim significa falar de The Kindness of Strangers, essa obra peculiar da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, a mesma do ótimo – e igualmente autoral – Educação (2009).
Como esperado, as duas salas reservadas para o filme, no complexo CinemaxX, lotaram. Ninguém perde a abertura, que é para ter o que comentar, mas depois cada jornalista segue um rumo. Alguns preferem os filmes em competição, outros apostam nas obras experimentais e outros, ainda, assistem ao que é permitido encaixar entre tantos títulos, salas e horários.
No caso do filme que todos assistiram, The Kindness of Strangers deixou um tom de estranhamento no ar. No centro do longa está o que o título sugere, a história de uma generosidade que emana somente dos estranhos. Talvez esteja aí o recado singelo, para seguir o tom fabular do filme de Scherfig, de uma curadoria que aposta no viés político no contexto de uma Europa que procura o tom – e a Alemanha mais ainda – para integrar quem aqui chega.
Na tela temos a história de Clara (Zoe Kazan), mãe de duas crianças, que se desvencilha do marido em uma manhã qualquer, busca os filhos no quarto ao lado e foge de casa. A justificativa para o ato serve aos pequenos: conhecer Manhattan. O que veremos, no entanto, é um artifício que o cinema conhece bem (Ladrões de Bicicleta e A Vida é Bela), em que o adulto encobre a realidade para torná-la suportável aos olhos infantis. O verdadeiro motivo para deixar a casa é o marido de Clara, um policial violento que a impede de denunciá-lo por maus tratos.
A partir da fuga, o filme começa a estabelecer o vínculo com os desconhecidos por meio de outro artifício narrativo: o de que todos os personagens frequentam os mesmos lugares. A música de Andrew Lockington cria uma ambientação que colabora com o humor dos personagens. Em uma tentativa de descolar da realidade para gerar reflexão, por vezes a direção de Lore se mostra excessivamente confiante em um solipsismo artístico. Nem sempre com o melhor resultado.
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Da Dinamarca direto para o Brasil. Troquei de sala e peguei fila para conferir Querência, de Helvécio Marins, o primeiro entre os 12 filmes brasileiros que passarão pelos cinemas do festival. Na estreia, o mineiro Helvécio assinou a direção com Clarissa Campolina no ótimo Girimunho (2011), que desconfio ter feito mais sucesso junto à crítica do que ao público brasileiro.
Coprodução Brasil e Alemanha, o segundo longa de Marins foi exibido na seção Fórum, dedicada a filmes experimentais e que buscam novas formas de pensar a imagem. Foi na tela do CinemaxX 6 que o Brasil rural deu as caras ao apresentar o cotidiano de Marcelo, um vaqueiro do sertão de Minas Gerais que tem o sonho de tornar-se narrador de rodeio. Mas a paixão pelo campo é abalada depois que o protagonista presencia o assalto à fazenda em que trabalha.
Ao privilegiar a dinâmica do tempo e a força das imagens (e a fotografia de Arauco Holz é um ponto central para tal), a direção de Marins proporciona o contraste melancólico que ilustra a dura realidade dos espaços brasileiros. Seja na cidade ou no campo, já não importa. A violência corrompe tudo.
A cobertura da Berlinale 2019 é uma parceria entre o Goethe-Institut e o Estado da Arte. Acompanhe também o Berlinale Blogger.