Berlinale 01 – Salinger merecia mais, argentino causa espanto e Elio Germano de olho no Urso de Prata

My Salinger Year, de Philippe Falardeau

A edição de 70 anos do Festival de Cinema de Berlim – a Berlinale – já é realidade. Era sabido que algumas mudanças estavam a caminho. O festival anunciou, ainda durante o ano passado, que o ciclo do quarto diretor da sua história, Dieter Kosslick, havia terminado. Os nomes de Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, diretora executiva e diretor artístico, respectivamente, assumem o trabalho que antes era do alemão. Kosslick deixa um legado extremamente respeitável. Em seus braços, o festival encontrou o formato que resultou na internacionalização da marca e no protagonismo no cenário europeu, ficando atrás apenas dos imbatíveis Cannes e Veneza. Respeitar essa conquista e avançar. Em tese, muito simples, mas o que e como isso seria colocado em prática tornou-se uma incógnita geral.

Pois bem. Estamos vendo as mudanças não aos poucos, mas de uma vez só. Seja em parte pela data comemorativa, seja por uma nova forma de pensar, a questão é que a estrutura clássica da Berlinale está visivelmente alterada. As mudanças iniciaram ainda ante do dia 20. Os famosos cartazes de divulgação, nos quais um urso figurava em vários pontos da capital alemã, deram lugar a uma arte colorida – colorida porém contida, bem ao estilo local – com a inicial “B” em várias posições. Novo porém sem graça, convenhamos. Dessa “inovação” passamos para modificações substanciais. Horários de exibição foram alterados, seções novas foram criadas, a mostra principal agora é exibida em cinemas diferentes, há uma nova sala de imprensa, o espaço destinado à alimentação – “street food” – foi levado para o outro lado da Potsdamer Platz, etc. Ainda é preciso tempo para entender o impacto das novidades.

Érica Rivas, em Él Profugo, filme de abertura da mostra competitiva

Dentro dos cinemas, no entanto, temos o contrário. Não é preciso muito tempo para estranhar o filme escolhido para a abertura da mostra competitiva. O argentino Él Prófugo, de Natalia Meta, encheu de perplexidade a imprensa do Berlinale Palast ao aportar uma história simples, desenhada de forma pouquíssimo convencional. Após sofrer uma experiência traumática durante uma viagem, a protagonista passa a não distinguir realidade e imaginação. Inês (Érica Rivas) vê o seu distúrbio de sono se intensificar, fazendo com que a dubladora e cantora lírica tenha ainda mais dificuldade em borrar a distinção entre o que acontece unicamente a ela e o que acontece aos demais. Construído como um thriller psicológico fantástico de bastante originalidade – no qual ecoam referências à tradição da literatura fantástica argentina, como Bioy Casares -, e mesmo que seja vistosa a forma como o segundo longa de Meta encaixa mistério e humor num trabalho de gênero, Él Prófugo não consegue  – ainda que conte com a presença ilustre de Cecília Roth como mãe da protagonista – justificar a sua presença na mostra principal.

My Salinger Year, de Philippe Falardeau.

Algumas horas antes do filme de abertura, a Berlinale Special – seção nova, que vem supostamente para complementar a mostra principal -, apresentou o canadense My Salinger Year. O filme de Philippe Falardeau chamou atenção não só pelo horário de exibição privilegiado, mas também pelas duas salas reservadas no CinemaxX, além da intensa divulgação. O filme conta a história de uma garota que chega a Nova York com o sonho de ser escritora. Larga o namorado e a vida em outra cidade para perseguir o objetivo, agarrando-se, para isso, no trabalho em uma agência literária de prestígio. Sua ocupação? Responder às inúmeras cartas que o autor de O Apanhador no Campo de Centeio recebe diariamente. O trabalho é burocrático e a impede de desenvolver a sua escrita, mas é o que permite à protagonista continuar na cidade grande e encarar a vida adulta. Inspirado no livro de memórias de Joanna Rakoff, My Salinger Year é um filme de formação raso. Falardeau escorrega ao tentar equilibrar um trabalho com tons que flertam ao mesmo tempo com o cinema independente e a produção de estúdio, deixando perceber os truques que o levariam a angariar público, fazer bilheteria e – quem sabe – conseguir uma continuação. Sabemos o desfecho da maioria dos longas que apostam nessa dobradinha raríssima. No meio termo, os clichês tornam-se mais evidentes do que os acertos e o longa acaba sendo inofensivo.

Elio Germano em Volevo Nasconderme

Por fim, somos apresentados ao italiano Volevo Nasconderme. Pode ser cedo para qualquer previsão, mas é possível que tenhamos conhecido no primeiro dia o dono do prêmio de Melhor Ator. Elio Germano está em grande forma para interpretar a excêntrica figura do pintor naïf Antônio Ligabue, uma dessas biografias para a qual a vida não poupou dificuldades. Após perder a mãe, viu-se abandonado pela família que o adotou. Sua condição física e psicológica o tornam um menino problema. Acaba vivendo na pobreza, precisando sobreviver a qualquer custo. Torna-se cada vez mais recluso, com pouquíssima capacidade social. Para além dessa perspectiva desalentadora, o que sobrevive em Toni é uma certeza: a de que ele é um artista. Na gigante sala dos artistas rebaixados, o diretor Giorgio Diritti consegue emoldurar um novo retrato, pouquíssimo conhecido, entregando-lhe contexto e profundidade. Paralelamente, fotografia e direção de arte reconstroem com competência os tons da Itália instável do século XX. O resultado é um filme que busca redimensionar a figura de Ligabue, explorando a qualidade da sua arte diante da incompreensão – e a injustiça – do seu tempo.


A cobertura da Berlinale é uma parceria Goethe-Institut e Estado da Arte

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