por Willian Silveira
Depois de um começo morno, sem conseguir empolgar, a Berlinale toma a forma prometida pelo seu diretor, Dieter Kosslick em ano de despedida: “the personal is political”, ou seja, assuntos privadas são questões políticas, pois estão no mundo e moldam – e são moldados – pela nossa sociedade. O Festival de Berlim sempre foi, antes de tudo, uma festa engajada.
System Crasher abriu a manhã para o segundo dia da competitiva no palácio do festival. Por tratar-se de um filme de diretora estreante, com plot genérico, havia pouca expectativa para o que Nora Fingscheidt pudesse realmente apresentar em uma seção com tantos nomes de respeito. Mas bastou o filme surgir na tela para engolir a sala escura. Estrondoso e potente, tomado por uma rebeldia que se desdobrou esteticamente em música alta e cores agressivas, System Crasher impressionou com a história de Bennie (a incrível Helena Zengel), uma criança de 9 anos que após sofrer um trauma na infância não consegue se adaptar a normas e comportamentos. Ela destrói tudo o que cruza seu caminho. Ama apenas os irmãos e a mãe, que, dividida entre o namorado e a complexidade de lidar com a pequena problemática, escolhe ficar com o lar mais fácil, digamos assim.
Propositadamente vestida de rosa, esse símbolo do que esperariam que ela fosse – feminina – Bennie é uma criança loira e de olhos azuis que agride e desrespeita todos. Os professores tem medo dela e os colegas a detestam. Ela parece um caso sem solução até a chegada de um novo tutor, que criará um vínculo verdadeiro com a menina pela primeira vez. Combinar drama psicológico e estrutura de ação é uma tarefa árdua, a qual System Crasher consegue êxito completo, não apenas no domínio do enredo mas principalmente por deixá-lo vibrante do começo ao fim do filme.
Da rebeldia de Bennie fomos levados ao diretor do momento. François Ozon tem produzido como poucos. É um filme por ano, como Woody Allen. Claro, nem todos no mesmo nível, isso é impossível. Grâce à Dieu causou o primeiro desconforto da Berlinale 2019. O tema é sempre e inevitavelmente polêmico. Centrado na história real de três homens abusados por um mesmo padre durante a infância, as vítimas decidem levá-lo a responder na justiça. Pedofilia não pode ficar a cargo somente do julgamento divino. A lei não colabora, pois prescreve crimes após 25 anos. As provas apresentadas são contundentes, mas a Igreja se posicina de maneira decepcionante, ora fingindo desinteresse ora lamentando de forma protocolar.
Um dos mais esperados durante a seção competitiva, Grâce à Dieu é um bom filme. O impacto do assunto ameniza alguns deslizes, é verdade. Há excesso do recurso expositivo e o ato do desenvolvimento torna-se algo mais longo do que o necessário. É possível ainda acreditar em Deus?, pergunta o filho de uma das vítimas. Ainda que O Caso Spotlight possa fazer o tema parecer datado, há muito a ser dito. A recepção calorosa da crítica indica mais uma bilheteria generosa para outro dos filmes do diretor francês.
Um dos grandes nomes da sua geração, o diretor alemão de ascendência turca Fatih Akin estreou em casa. The Golden Glove remonta à impressionante história do serial killer Fritz Honka (Jonas Dassler), que chocou a Alemanha com os crimes praticados em Hamburgo, cidade natal do diretor, durante os anos 70.
The Golden Glove é o filme mais diferente da filmografia de Akin. Acostumado a trabalhar em um registro visivelmente realista, aqui o cineasta demonstra uma clara preocupação em reformular-se formalmente a fim de que o tratamento de um tema tão pesado mantenha-se fiel em densidade, mas evite entregar ao público um documentário bárbaro. A reconstrução estética passa por aprofundar a violência e marcar exageradamente os trejeitos dos personagens, algo no estilo exploitation e com um pé no gênero farsesco. Sim, pois o longa de Akin caminha de mãos dadas com o brutal e o cômico, como que para este amenizar aquele.
A opção à la Tarantino recria de maneira contundente os aspectos de uma vida cultural que perpassa personagens como o de Honka, que, se não matadores em série, mas personagens que habitam de maneira moribunda os espaços sociais. Afinal, os assassinatos do protagonista são o desenlace cruel de uma existência inóspita, justificada pela bebida e erigida pela total indiferença. Uma peça curiosa na excelente filmografia do alemão.
Outro que estava igualmente em casa, mas por motivos diferentes, claro, Wang Quan’an apresentou Öndög, o seu sétimo filme e o quarto a estrear na Berlinale. Vencedor do Leão de Ouro, em 2006, com O Casamento de Tuya, o diretor chinês vai para um segundo urso ao retornar para o grande vazio que é a paisagem da Mongólia. O filme começa quando a câmera nos leva, em meio à escuridão, ao encontro do corpo nu de uma mulher morta.
A polícia inicia, então, uma investigação para decifrar o ocorrido. A morte é ainda mais estranha quando em um fim de mundo como esse. Para proteger o caso, um jovem policial é designado para cuidar do corpo. Ali, onde era impossível esperar qualquer outra coisa exceto o nada, ele conhece uma mulher e o que antes era morte dá lugar à vida. Wang não tem qualquer receio de arriscar. O seu cinema escolhe os caminhos menos óbvios, preenchendo o vazio com momentos de energia e beleza.
A cobertura da Berlinale 2019 é uma parceria entre o Goethe-Institut e o Estado da Arte. Acompanhe também o Berlinale Blogger.