por Willian Silveira
A temperatura, que nunca foi alta e o forte de Berlim, baixou bastante desde ontem. Bastou uns amigos comentarem que esse era um inverno quente para o tempo fechar, literalmente. Depois de uns dias de sol – vejam só – a chuva chegou de forma tímida e foi marcando presença. Aos poucos a Berlinale passou a ter mais guarda-chuvas para lá e para cá do que filmes em exibição. Faz parte.
Para bem ou para mal, quem acompanhou a mudança de clima foi The Ground Beneath My Feet, de Marie Kreutzer. O quinto filme da diretora austríaca é um retrato focado nas demandas da nossa época. Em especial, no que diz respeito à relação com o trabalho e como lidamos com a vida pessoal. O que sobra para os nossos afetos em meio a tanta meta, exigência e ambição? A protagonista poderia ter se feito essa pergunta, mas aí o filme não existiria.
Lola (Valeria Pachner) é uma executiva bem sucedida, que está prestes a finalizar um grande projeto e receber uma promoção. O trabalho é a sua vida, pois o escritório é a vida sob controle. A competência faz com que seja fácil substituir a contingência do mundo real pelo mundo controlado das demandas profissionais. Movida a segurança e autocontrole, Lola transparece uma tranquilidade que esconde tanto a relação amorosa pouco saudável com a sua chefe quanto a irmã esquizofrênica. Não deixar transparecer as fragilidades é uma virtude do nosso tempo. Em tela, quanto mais aparenta segurança, mais descobrimos que Lola tem algo a esconde. Nesse sentido, The Ground Beneath My Feet é um estudo da personalidade contemporânea, um castelos de cartaz preste a desmoronar.
Se há lugar certamente mais frio do que esta Berlim é a Noruega, de onde a competição recebe Out Stealing Horses. Obra do diretor Hans Petter Moland inspirada no best-seller homônimo de Per Petterson, Horses traz um drama alicerçado na reflexão que nasce a partir da passagem do tempo. Estão ali contrapostos passado e presente, 1948 e 1999. Desenhado como um conto de formação, em que a memória tem papel fundamental como ferramenta de reflexão, o filme de Moland aposta na narração imponente de Trond (Stellan Skarsgard), isolado em uma cabana para passar os últimos anos de vida, para marcar o ritmo da história. Acompanham a narrativa uma fotografia de enquadramentos precisos e uma direção de arte que, ao tentar reconstituir as lembranças de maneira afetiva, dourada e perfeita, por vezes peca ao flertar excessivamente com a plasticidade da cenografia. É exatamente o contraste gerado entre a forma e o conteúdo que deveria preocupar Horses, uma vez que bonito é um adjetivo que dura pouco quando desacompanhado.
A grande surpresa desses primeiros dias de festival veio da Macedônia, com God Exists, Her Name is Petrunya. O filme tem como pano de fundo uma tensão social que o cinema romeno, muito premiado nos últimos anos, explorou muito bem: as contradições do Estado.
No caso de Petrunya, estamos em um país dividido entre a lei do Estado e a religiosa, no qual uma mulher acaba por colocar as duas esferas de poder em contradição, levando-as a ficar frente a frente. O título antecipa o que a produção se propõe: uma sagaz crítica à desigualdade de gênero. Historiadora formada e sem perspectivas em sua terra natal, Petrunya participa de um ritual essencialmente masculino e vence a competição. O resultado mexe com os brios da sociedade patriarcal e revela como, apesar das aparências, ainda há muito a avançar para a verdadeira igualdade de direitos.
O quinto longa-metragem de Teona Mitevska chegou escancarando o atraso na sociedade da Macedônia para lembrar-nos que, na própria Berlinale, o diretor Dieter Kosslick assinou a ação de comprometimento para a igualdade de oportunidades no cinema até 2020, o 5050 by 2020. Ao abordar um tema tão essencial com tamanha desenvoltura, coragem e humor fica difícil imaginar que o longa de Mitevska vá deixar a Alemanha sem o devido reconhecimento.
Aos poucos vai ficando cada vez mais difícil a vida dos jurados. Os filmes vão incorporando o grande debate proposto pela curadoria e as abordagens diferentes não facilitam qualquer decisão. Foi para colaborar com a indefinição que Mr. Jones, um filme polonês inspirado em fatos reais – mais um! -, chegou na competitiva.
James Norton é o protagonista do novo filme de Agnieszka Holland, a mesma de Na Escuridão (2011) e Rastros (2017), e cabe ao ator o mérito de dar forma a Gareth Jones, o jornalista galês responsável por denunciar ao ocidente a farsa do regime soviético nos anos 30. Antes de Jones rasgar a cortina de ferro, o que se sabia do governo de Stalin passava pelo acobertamento de Walter Duranty (Peter Sasgaard), correspondente do New York Times em Moscou e escritor premiado com o Pullitzer. Ou seja, bastava comprar o prestígio de um homem para ter todo o mundo aos seus pés.
Mr. Jones tem um personagem muito interessante, movido pela busca interna da verdade, e uma boa história para contar. É atrás dela que acompanhamos Norton para todos os lugares, principalmente nos impressionantes vilarejos ucranianos, onde o que não desaparece pela neve acaba consumido pela fome. No entanto, a boa produção se ressente de dar um passo a mais. Sem conseguir aprofundar os fatos históricos ou apresentar um contorno mais substancial dos feitos do protagonista, o que fica do longa de Holland é o impacto diante da cegueira histórica. Espanto que é preciso trazer constantemente para o presente. Por que demoramos tanto para enxergar o óbvio?
A cobertura da Berlinale 2019 é uma parceria entre o Goethe-Institut e o Estado da Arte. Acompanhe também o Berlinale Blogger