Delete History (Effacer l’historique) abriu mais um dia da mostra principal e lá fomos nós sem saber muito o que esperar da produção franco-belga. A princípio, pelo que nos entregava a sinopse, uma crítica cômica do nosso envolvimento com a modernidade tecnológica. O assunto é importante, mas as perguntas de sempre não são boas, pelo contrário. Os aplicativos e celulares nos deixam mais isolados? A solidão aumenta ou diminui. Precisamos urgentemente melhorar essas perguntas, ou as respostas serão eternamente parciais, incompletas. Mas o filme pega outro caminho, felizmente. Delete History ganhou o público da Berlinale em um das sessões mais divertidas em muito tempo. A aposta é em um humor muito simples, composto de cenas corriqueiras e que pode passar a qualquer um. No centro da narrativa, nos deparamos com o trio composto por Bertrand (Denis Podalydès), Christine (Corinne Masiero), Marie (Blanche Gardin). O pai separado, a motorista de aplicativo e a dona de casa passam dificuldades para encaixar-se no mundo de hoje, não porque estão em meio a uma crise de identidade, mas porque fazem parte de uma geração que acabou presa entre ser analógico e nascer digital. O roteiro da dupla Benoît Delépine e Gustave Kervern desenvolve um olhar carinhoso – e por isso verdadeira cômico – por esse trio, que acabou por torna-se uma geração de transição. Ela precisa estar conectada, ao mesmo tempo que o seu modo de pensar e agir ainda seja essencialmente analógico. Com uma facilidade para moldar e se aproveitar de cenas comuns, como a dificuldade para encontrar uma das tantas senhas que nos fazem criar, ou pressão por performar bem, recebendo estrelas nos aplicativos de transporte, o roteiro encontra constrói um filme extremamente bem sucedido, engraçado e crítico. Quando Marie é chantageada a ter um vídeo seu exposto na internet, o trio sai em busca de tirar satisfação com os responsáveis, sejam eleso Google, os serviços de nuvem ou quem assumir a culpa – pois, no fundo, é isso: o mundo digital é um mundo ainda sem direitos e deveres definidos. É muito difícil conseguir articular um projeto que seja ao mesmo tempo inofensivo, atraente e perspicaz. Por sorte, Delete History nos permite vislumbrar essas três características combinadas como qualidades. É pouco provável que o filme consiga os prêmios principais, mas certamente cairá no gosto da crítico e do público.
Em seguida, rumamos para My Little Sister, o segundo dos três filmes em que Berlim surge como pano de fundo (os outros são Undine, do qual falamos anteriormente, e o esperado pois longo Berlin Alexanderplatz). Em mais uma direção compartilhada, Stephanie Chuat e Véronique Reymond, guiam o público para o drama vivido por Lisa (Nina Ross), que abriu mão das suas aspirações artísticas na capital alemão para seguir o marido bem-sucedido na Suíça. A figura de Ross entra em cena quando o irmão e ator de teatro Sven (Lars Eidinger) surge sofrendo de leucemia. A doença será o elemento de movimentação do filme. À medidade que passa a doar-se cada vez mais para apoiar o irmão, mais delicada será a sua relação com o marido, que pensa unicamente em ascender ainda mais. O fato de traçar movimentos bem calculados torna o longa bastante sólido, mas exatamente por isso excessivamente previsível e sem grandes momentos para além das boas atuações dos personagens centrais. É um filme seguro, mas que apoia-se demais em paralelos interessantes mas pouco explorados. Sven permanece apegado à vida enquanto pode imaginar que voltará aos palcos como Hamlet. A força de representar, seja na vida ou no teatro, é outra desses suportes ao qual o filme busca agarrar-se. Por sua vez, Lisa retoma o seu modus operandi de criação justamente por estar próximo ao irmão. Quando finalmente o afastam dos palcos, ela escreve uma peça para que ele a interprete. Tudo muito estruturado, seguro e bem realizado. Em uma das cenas, Sven está no auge dos efeitos colaterais, da doença e dos remédios. Mesmo assim, decide saltar de skydive. É isso. A coragem que sobrou ao personagem, faltou ao enredo e à direção.
O mesmo não pode ser dito, porém, de Siberia, de Abel Ferrara, que chegou para fechar mais um dia da mostra principal. Aqui a coragem, o salto no abismo parece não ter fim. Tem sido assim, aliás, na versão remodelada do festival. O filme da competitiva que passa à tarde acaba escalado para exibição em duas das salas no CinemaxX. Aliás, nessa nova configuração, descobri que todos as salas do CineStar, que ficavam no complexo do Sony Center, fecharam. Fiquei perplexo. Justificaram dizendo-me que parece que essa espaço gigante dedicado ao cinema, na área da Potsdamer Platz, não vingou. Parece que quando não há Berlinale, não há nada. Os alemão não compraram a proposta dos prédios futuristas e imponentes e não frequentam a região. Preferem os cinemas de bairro, me pergunto. Se sim, que exemplo robusto de uma Berlim que sobrevive às avessas do capital. Muitos lugares na região não aceitam cartão de crédito, por exemplo. Fiquei surpreso com a notícia mas jamais incrédulo. Mesmo com a Filarmônica de Berlim ao lado, trazendo público do mundo todo como símbolo de excelência em música clássica, precisão repensar o local. Enfim, voltemos ao Ferrara.
Meu prólogo talvez tenha a ver, inconscientemente, com a jornada radical que o diretor apresentou. Willem Dafoe não cessa de somar grandes momentos à carreira. Depois de O Farol (Robert Eggers), agora o ator guia a aventura onírico-metafísica que a tela nos apresenta. Apostando em um caminho narrativo único, forjado na completa desconstrução do pensamento, na ebulição da razão, vemos um homem solitário, que vaga em um mundo suspenso – a sua própria Siberia, que como os círculos de Dante, pode ser ora quente, ora frio, conforme avança. Ali, depara-se com o que há de mais horrível. Desconfiamos que é o interior projetado no exterior. A realidade existe, certamente, mas não somos nós que a preenchemos com conteúdo, ao final? Dafoe apresenta um personagem em depuração existencial. Quando se locomove inverno adentro, movido pelo treno de cães, não deixa de ser um ser movimentado pelo seu interior animalesco. Existir, mover-se ao acaso e por instinto, presenciar e cometer o horror. Sofrer com a lembrança. Nesse sentido, Ferrara constrói um filme exemplar, amoral, em que o julgamento é objeto nulo quando exposto a seres imperfeitos. Em tempos de muita hipocrisia, é um chamado de atenção – a de que encontremos a Siberia que está inevitavelmente presente em cada um.