Chegou do oriente, mais exatamente da Coréia do Sul, o primeiro filme a empolgar verdadeiramente na Berlinale 2020. The woman who ran é o mais recente projeto de Hong Sang-soo, que mantém o registro de trabalhar temas cotidianos, focado na simplicidade e nos diálogos. Confesso que tenho algumas ressalvas ao cinema de Sang-soo. É visível a sua capacidade de dominar a direção cinematográfica e moldar a linguagem para conseguir um resultado que passa ao lado das narrativas clássicas. No entanto, esse processo tem um custo, e no caso de Sang-soo é a imagem. Os seus filmes são imagéticos, claro, mas no sentido da sugestão e não da criação visual. Por isso, longos diálogos tomam conta da história da nossa protagonista (Kim Minhee), que passa a encontrar outras mulheres em Seoul durante o período que o seu marido está em viagem. Entre tantos temas, o amor. A protagonista está em um relacionamento há cinco anos, mas não tem certeza do que sente. Nesse período, nunca se separaram. Ela não está certa de que o que sente é amor, mas quem sabe o que o amor é, ao fundo? Nunca enxergaremos esse marido, assim como muitas das personagens e situações descritas pelos diálogos. As ações estarão sempre presente, claro, mas ao, nesse outro mundo que é o da imaginação. A tela de Sang-soo não é o grande quadro, mas o espaço inicial, propulsor das histórias. Espaço que nos entrega um cotidiano interessante, mas – como todo cotidiano – não necessariamente rico É nesse aspecto que a tela de Hong Sang-soo parece se negar a avançar – e em The woman who ran facilmente percebemos como o diretor poderia nos entregar mais.
A contenção oriental é o prólogo para o calor do verão sufocante do italiano Favolacce. Em tela, acompanhamos a história, segundo nos conta o narrador, de um diário encontrado. O recurso evoca – e o decorrer do longa nos deixará isso mais claro – a estreia de Sofia Coppola na direção, com As Virgens Suicídas, tanto por conta da bengala narrativa, quanto pela estetização em tela. No filme da dupla Damiano e Fabio d’Innocenzo acompanhamos uma série de histórias que se conectam, passadas no mesmo período de tempo e na mesma vila italiana. Os protagonistas são crianças em clara rota de colisão com os adultos. Em um tom crescente, o longa busca retratar um grupo de filhos e filhas que sofrem os efeitos dos pais e mães desequilibrados que os acompanham. A proposta do projeto é interessante e rende uma ou outra cena interessante. Mas é visível a falta de amadurecimento narrativo. Favolacce sofre por sua falta de coesão, dinâmica e rumo. Mesmo o final, definitivamente construído para causar impacto, deixa a desejar diante do sua chegada mal preparada. Para um longa que se esforçou tanto esteticamente, é uma pena que o resultado seja tão confuso.
Em seguida, era chegado o momento de uma das grandes incógnitas do festival. Never rarely sometimes always vinha dos Estados Unidos com esse título estranho, que indicava que seria preciso assisti-lo para recuperar algo do contexto. É uma aposta na curiosidade que foi muito acertada. O filme de Eliza Hittman carrega consigo um selo Sundance, muito marcado pela produção de cunho mais independente, câmera na mão, centrada em roteiro e atuações acima da média. Nele, acompanhamos a jovem de 17 anos, Autumn (Sidney Flanigan) em uma epopeia para conseguir realizar um aborto. Oriunda de uma cidade no interior norte-americano, de família pouco estrutura e com recurso financeiros limitados, a protagonista é uma personagem que não nos entrega outro caminho como opção. Talvez, especialmente porque ela não o enxerga para si própria. Ainda com idade para ser adolescente, Autumn é uma mulher que faz o que precisa ser feito, seja qual for o custo dessa ação. Tendo por única companhia a prima, viajam até Nova York para realizar os procedimentos. Nos caminhos, seja o de Autumn em direção à clínica, seja no do espectador em direção à expectativa de encontrar uma adolescente frágil e desarmada, Never é um dessas filmes de grande potência, verdadeiros e autorais, que levam ao cinema não tanto a magia para o qual ele foi imaginado, mas as inúmeras realidades que inevitavelmente nos escapam. Seguramente uma bela opção para o Urso de Ouro.
A cobertura da Berlinale é uma parceria Goethe-Institut e Estado da Arte