A Biblioteca Pública de Nova York e as vantagens de ser invisível

Documentário do premiado diretor Frederick Wiseman sobre a Biblioteca Pública de Nova York tem sessões no Instituto Moreira Salles em São Paulo. O crítico Willian Silveira analisa a obra para o Estado da Arte.
A Sala de Leitura Milstein

por Willian Silveira

A grande virtude de um documentarista é fazer-se invisível. Cada vez mais rara, porém, a qualidade tem sido aplicada com determinação por Frederick Wiseman durante cinco décadas, nas quais produziu mais de 40 filmes dedicados a retratar as principais instituições culturais ao redor do mundo. Depois de passar pela Comédie-Française (1996), em Paris, e pela National Gallery (2014), em Londres, o diretor nascido em Boston retorna à casa. Para dar seguimento ao vasto repertório de ícones norte-americanos – cuja última incursão registrou o importante cenário acadêmico de Berkeley (2013) -, Wiseman incorpora outro símbolo nacional em Ex Libris: A Biblioteca Pública de Nova York. O documentário tem sessões no Instituto Moreira Salles neste sábado, 27, e na quarta-feira, 31.

É espantoso perceber que o cineasta de 87 anos mantém a  mesma vitalidade cinematográfica de quando adentrou ao Instituto Correcional de Massachussets, na estreia como diretor. Em 1967, o pungente Titicut Follies revelaria não apenas um realizador destemido, pouco atrelado à gramática visual tradicional, como denunciar também as entranhas do sistema manicomial. Por arranhar feridas não cicatrizadas na esfera de um debate ainda atual sobre a população carcerária, o documentário desapareceu silenciosamente da televisão após a primeira e única exibição.

De modo geral, Wiseman não se distingue de outros documentaristas por sua temática. Aliás, convenhamos que o interesse em registrar os mais distintos aspectos da vida cotidiana é um traço bastante apreciado entre os seus compatriotas. De Edward Hopper a Paul Auster – afinal, o que pode ser mais trivial do que True Tales of American Life? -, poucas culturas olham com tanto interesse para si próprias quanto a americana. No caso do cineasta, o que chama atenção para a sua obra é a abordagem empregada e os resultados dos seus filmes, sempre tão particulares.

Ao contrário do esperado, a paisagem norte-americana construída por Wiseman desvia do óbvio. Nela, cenas relevantes, pessoas importantes e fatos marcantes não são protagonistas. A estes cabe apenas a função de substrato cultural para um horizonte que tem nas instituições a figura central. Ao dispensar o apoio de recursos clássicos da narrativa, como entrevistas, narrações em off e prólogo histórico, o processo do diretor vai na contramão do documentário tradicional.  O percurso alternativo, por sua vez, apresenta resultado extremamente significativo se atentarmos para a sutil diferença – e o imenso valor –  entre conhecer algo através de um depoimento e conhecer esse algo por aquilo que ele é. Ao abrir mão da inevitável literalidade da descrição e apostar em um essencialismo visual, colunas, galerias e prédios ganham vida, em uma proposta algo semelhante aos anos iniciais de Alain Resnais (1922 – 2014), quando o jovem francês se interessou pelos desdobramentos do Tempo e da História.

Rotulado ora como mais um entre os “cineastas de observação” ora como retardatário do movimento Cinéma verité, esta sim denominação a qual rejeitava completamente, Wiseman teve as suas convicções estéticas peculiares e corajosas recompensadas em 2014, ao receber o Leão de Ouro pelo conjunto da obra, no Festival de Veneza. Reconhecimento reiterado dois anos mais tarde pela Academia do Oscar, confirmando a tendência de Hollywood para a vanguarda – do atraso.

Em 197 minutos, algo a mais do que o necessário, Ex Libris é a obra mais recente do diretor, fiel ao seu estilo e digna de despertar o fascínio de Émile Zola (1840 – 1902),  pai do naturalismo literário. O autor de Germinal certamente invejaria não apenas o recurso de Wiseman, a câmera, e o domínio do equipamento, mas principalmente a forma como o ambiente é registrado sem afetação ou manipulação. Diante de um filme desprovido de clímax e conclusão, advertência séria a ser feita a nove entre dez cineastas, o documentário evolui sem dificuldades por meio da conexão dos atos temáticos, em um andamento que busca transmitir a gigantesca estrutura da Biblioteca e captar o elã que a anima.

Neste processo, acompanhamos vários momentos distintos, de leituras compenetradas a senhores dormindo. E muitas reuniões. As mais recorrentes contam com a presença do comando da instituição, na presença do diretor-executivo Anthony Marx e seus coordenadores. Em um primeiro momento, a impressão é de que, sim, Wiseman parece gostar de reuniões mais do que qualquer um de nós. Mas a paciência desvenda o tempo empregado nos gabinetes. Está ali a forma de saudar o empreendimento público bem-sucedido – mesmo no caso da NYPL, mantida por esforço público-privado – por meio de valorizar a dedicação e a competência das figuras que estão no coração desse projeto. Sem elas, os mais de noventa braços da Biblioteca, que engloba desde o prestigiado espaço Lincoln Center à desconhecida sede no Queens, não seriam possíveis.

O mergulho na intimidade da Biblioteca traz à luz um número inimaginável de atividades a ocupar as salas. Possibilidades que despertariam o interesse de qualquer gestor público, em especial os brasileiros, se a cultura de centros de cultura não fosse algo tão distante quanto o fim da corrupção. Desde o simples empréstimo de aparelhos para conexão com a internet até aulas de braile, passando por uma conversa com Elvis Costello e a oferta de empregos para quem tem como qualificação apenas a vontade de trabalhar,  a Biblioteca de Nova York assume assim a função de mediadora do sociedade norte-americana. Um objetivo essencial e mais adequado do que querer entrar no século XXI sendo vista como um espaço para armazenar livros.

No instante em que a Biblioteca se apresenta como pilar da sociedade americana, atuando como espaço de convivência e informação, o documentário nos entrega a face da NYPL moldada sob valores que Tocqueville, em A Democracia na América, diagnosticou melhor do que ninguém dois séculos atrás. Enviado do governo francês com a missão de estudar os mecanismos da democracia, o aristocrata percebeu de pronto que as estruturas americanas não eram originadas de uma criação artificial, como fora suspeito. Portanto, o futuro da França não dependia da invenção de mais um ministério, com burocratas, papeis e carimbos. Mas de preparar a população para assimilar o espírito democrático a ponto de imbuí-lo em cada ação e em cada lei. Leis e ações que fazem a Biblioteca de Nova York pulsar desde 1895.

COMPARTILHE: