Arthur Penn e a elegia do meio oeste norte-americano

Arthur Penn conta uma história sobre o meio oeste norte-americano, repleta de densidade moral. Por Rafael Dornellas, um ensaio sobre Bonnie and Clyde.

por Rafael Dornellas

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My brothers and my sisters are stranded on this road,

A hot and dusty road that a million feet have trod;

Rich man took my home and drove me from my door

And I ain’t got no home in this world anymore.

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Was a-farmin’ on the shares, and always I was poor;

My crops I lay into the banker’s store.

My wife took down and died upon the cabin floor,

And I ain’t got no home in this world anymore.

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Woody Guthrie

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Em muitas de suas melhores histórias, Ernest Hemingway desenvolvia por trás das ações e dos diálogos de seus personagens um profundo, e aparentemente oculto, subtexto. Em seu romance O sol também se levanta (The Sun Also Rises, 1926), a escrita não revela muitos detalhes dos traumas de Jake Barnes na guerra, de seus sentimentos ou de sua relação com Lady Brett Ashley. Suas camadas se desenvolvem nas brechas da superfície da narrativa, como se duas histórias, uma delas mais densa, fossem dispostas em conjunto. A chamada “teoria do iceberg” (na qual através de uma escrita minimalista o verdadeiro significado da narrativa se revela implícito, subjacente às ações do primeiro plano), perfeitamente aplicável às lacunas propositais de seu primeiro romance, também se enquadra em muitos de seus contos. Em Indian Camp (1924), por exemplo, o garoto Nick Adams testemunha junto de seu pai, nascimento e morte (em um acampamento, uma mulher dá à luz e seu marido suicida-se): no final do conto, o breve diálogo entre pai e filho em um barco revela o questionamento existencial de uma vida inteira.

O imaginário em torno de Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, 1967, Arthur Penn) foi construído principalmente a partir de sua camada mais aparente: suas imagens violentas, sua edição ágil e sua perspectiva satírica. Penn, contudo, parece contar uma outra história através das brechas deixadas em sua superfície, uma história mais densa, inserida no corpo narrativo como pequenos desvios inevitáveis da rota principal.

Hemingway procurava omitir informações e sintetizar ao máximo suas ações e seus diálogos. Nesses hiatos jamais expostos o leitor atento captaria suas profundezas, seu enredamento. Em Bonnie e Clyde há um movimento semelhante, mas a partir daquilo que nos mostra quando filma as margens dos Estados Unidos e seu povo, retratando frontalmente os proscritos de uma de suas crises mais agudas como se constatasse em seu interior um novo filme a ser visto. Atrás de uma vivacidade aparente daquele cotidiano de crimes, Penn investiga a história de seu país e empreende sua representação através de imagens revisitadas: o efeito desse pano de fundo como subtexto que quebra a trama principal indica uma profunda reflexão sobre passado e presente.

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Retratos na abertura do filme

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As fotografias enfileiradas durante os letreiros da abertura possuem uma narrativa. Além da própria história de seus personagens, aquelas imagens contam a história daquele território, do meio oeste norte-americano e de todos que sofriam nos detritos da crise de 29. As fotografias do cotidiano daquelas famílias são cruas, rudimentares, distribuídas em um ritmo acelerado que retoma o passado sob o ponto de vista de um estado, violento e miserável, a ser reconstruído.

O choque entre ritmo da montagem, decupagem da cena e organização espacial do plano será repetido a exaustão, marcando principalmente o início do filme até o instante em que Bonnie Parker (Faye Dunaway) e Clyde Barrow (Warren Beatty) se apresentam formalmente depois do primeiro roubo. Somente após algumas provocações e insinuações sexuais é estabelecido um plano geral. Com ele, uma primeira suspensão, uma possibilidade maior de observarmos aquele ambiente inóspito de West Texas no início dos anos 30. A melancolia presente nos cenários — que não se limitam apenas à reconstituição fidedigna do passado mas são ressignificados principalmente a partir de seu registro — se alastra pela narrativa e colide, progressivamente, com os demais elementos e personagens do filme. Se na performance do grupo — Bonnie, Clyde, C. W. Moss (Michael J. Pollard), Buck (Gene Hackman) e Blanche (Estelle Parsons) — o elenco reitera um glamour aspirado na vida bandida através dos excessos, um caminho oposto é tomado na representação dos habitantes locais mais velhos que também atravessavam a grande depressão. Sua presença constante no filme compõe esse painel de entorno que pesa sobre os personagens como um elegíaco cenário de finitude: Penn filma um mundo em pedaços, fraturado, muito mais grave do que o entusiasmo aparente dos jovens ladrões de banco.

Algumas sequências saltam aos olhos. A primeira delas é quando o casal principal invade uma casa abandonada ainda no início. Eles são surpreendidos pelos antigos moradores da casa. A família é pobre, foi despejada, a casa virou propriedade do banco local. Com um peso semelhante ao das fotografias na abertura do filme, aquele grupo familiar é registrado com distanciamento, evidenciando sua alteridade, reintegrando-os aos mitos daquela terra em um aceno melancólico às narrativas de fundação — como se saídos de um plano de algum western tardio de John Ford — atravessadas pela modernidade, pelas marcas da guerra e pelas crises econômicas e morais do século XX.

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(Reprodução)

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Penn procura ressaltar quase sempre uma placidez prosaica do homem comum como se, através de um documento mais cru de sua derrota, remontasse os seus folclores. Do plano da família estática no carro um outro personagem se junta ao grupo e se aproxima de longe tal qual um fantasma, canalizando sua revolta: com a arma emprestada de Clyde e localizando o verdadeiro inimigo, todos disparam tiros nas janelas da casa e na placa do banco que se apossara da propriedade.

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(Reprodução)

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(Reprodução)

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Bonnie, assim como o próprio filme, é tomada progressivamente por um tom de consternação. A personagem possui uma pulsão de morte, um desejo suicida de caminhar na fronteira entre o sentimento mais excitante e o mais deprimido possível, retirando o máximo deles, compreendendo mais que todos a sua própria ruína. É ela, também, que pede ao grupo para desviarem sua rota e visitarem sua mãe. Em tonalidades de sonho, a cena da visita é descolada do filme como um interlúdio, um corpo estranho. Penn organiza a sequência em pequenas interações, gestos, poucas falas, dividindo o grupo de pessoas e o amplo espaço rural em quadros independentes, localizando-nos a partir de uma sucessão de tableaux vivants.

O plano aberto que nos estabelece no local parece construído a partir de um filtro esfumaçado. Cada personagem é erguido pela encenação em sua acrópole particular. Do plano geral um corte seco nos leva diretamente para o rosto da mãe de Bonnie (Mabel Cavitt): a expressão da senhora é dura, circunspecta, mais próxima de Olivia Carvey em Renegando meu sangue (Run of the arrow, 1957, Samuel Fuller) e em Rastros de ódio (The Searchers, 1956, John Ford), do que de Dunaway. Ela observa toda a excitação dos jovens carregando no semblante um estado permanente de luto: travestida de piquenique no campo, a reunião familiar é filmada como um funeral, como se estivéssemos inseridos nos dust bowls do meio oeste norte-americano cantados por Woody Guthrie enquanto peregrinava pelo local.

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(Reprodução)

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Mrs. Parker (Mabel Cavitt)

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Bonnie, sorridente, interage com a família. Buck brinca com uma criança em um descampado. C. W. Moss faz a guarda do alto de um morro de areia. A velha senhora permanece impassível. Clyde é bruto, verborrágico, envergonha a companheira. Ambos tentam animar Mrs. Parker. Clyde cogita viverem todos juntos no futuro, mas ela os frustra. “Se você tentar viver perto de mim você não irá durar muito, querida”, diz para a filha com uma honestidade cortante. Tudo é envolto em mistérios e silêncios: a trilha musical é interrompida em seu primeiro plano e a conexão dos instantes esparsos da reunião familiar se dá apenas através do ruído do vento e das vozes dos personagens.

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C. W. Moss (Michael J. Pollard)

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A partir dessa sequência a gangue dos Barrow sucumbirá: Buck morre em uma emboscada, Blanche é presa e o pai de C. W. entrega o casal à polícia. Da famosa cena final (o corpo de Bonnie varado por balas na sequência compartimentada em fragmentos, estilhaços de planos evidenciando sua violência) o que parece permanecer com mais força são os momentos que emolduram o tiroteio. O instante que o antecede: a hesitação de Clyde, que tenta, sem sucesso, voltar ao carro; a resignação de Bonnie, que se apavora, consente, olha para o companheiro e sorri aceitando o seu fim. E o insólito plano que encerra o filme: derivando de um travelling iniciado na beira da estrada, a câmera, por trás do carro, acompanha os policiais. Não vemos mais Bonnie nem Clyde. Não vemos também a estrada, nem a amplitude daquela locação. Penn realiza um último curto-circuito sufocando seu plano em uma sucessão de camadas que contém o reflexo das árvores e o estilhaço das balas no vidro do carro, as ferragens do automóvel e os homens reenquadrados em sua estrutura metálica. Ao estabilizar essa imagem o filme é encerrado em silêncio, antes do banjo bluegrass retornar aos poucos nos créditos finais tocando uma melodia mais triste do que havia apresentado durante toda a narrativa.

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Bonnie e Clyde, plano final

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Assim como Sem Destino (Easy Rider, 1969, Dennis Hopper), Bonnie e Clyde termina com um ato de violência perpetrado na estrada. E assim como o filme de Hopper, o filme de Penn estabelece um marco possível para uma série de obras que seriam realizadas no seio da indústria norte-americana durante os anos 1970. Diversos filmes do período utilizariam a estrada como como ponto de fuga, como representação de uma compreensão teleológica acidentada. A estrada também vem dos filmes basilares, dos westerns que abriram um caminho e fundaram uma experiência que passou a acompanhar o próprio projeto de nação. Há também uma estrada no final de O Último Golpe (Thunderbolt and Lightfoot, 1974, Michael Cimino), de Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971, Monte Hellman), de Cada um Vive como Quer (Five Easy Pieces, 1970, Bob Rafelson) e em diversas outras cenas de diversos outros filmes que partiam dessas buscas e arquitetavam suas narrativas assinalando um horizonte possível.

Se alguns cineastas filmavam partindo de uma vocação mítica inerente à lição apreendida em Griffith, Dwan, Ford, Walsh, em narrativas telúricas de fundação, edificando lendas, construindo ferrovias, erguendo novas cidades (como Michael Cimino, John Milius, Clint Eastwood), e outros procuravam nas mesmas histórias uma vazão mais estilizada (como Sam Peckinpah, John Carpenter), Penn sintetizava um conjunto de possibilidades em seu filme: permitindo que suas lacunas superficiais fossem absorvidas por um painel das profundezas do país, unindo o retrato moderno dos jovens gângsteres à melancolia estoica dos enjeitados.

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