Três conversas filmadas de Rita Azevedo Gomes

Por Giovanni Comodo, em parceria com À Pala de Walsh, Três conversas filmadas de Rita Azevedo Gomes.

por Giovanni Comodo, em parceria com À Pala de Walsh

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— Como é que se representa a vida? — pergunta João Bénard da Costa para iniciar a conversa do filme de Rita Azevedo Gomes; natural que inicie também este texto do Dossiê Diálogos entre Estado da Arte e À Pala de Walsh, o qual pretende abordar os três longas metragens de não-ficção de Rita Azevedo Gomes dedicados a conversas.

A pergunta de Bénard é destinada a ninguém menos que Manoel de Oliveira, o início do diálogo de “A 15ª pedra” (2007) de Rita Azevedo Gomes, um filme cuja cartela inicial completa diz “A 15ª pedra: Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa em uma conversa filmada por Rita Azevedo Gomes”. Justo, como todos os filmes da realizadora: por um par de horas acompanhamos uma conversa filmada entre dois grandes nomes do cinema. Falam de cinema e falam de vida, pois são a mesma coisa, como declara Oliveira.

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Manoel de Oliveira (esq.) e João Bénard da Costa (dir.) em “A 15ª pedra” (2007)

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Amigos de longa data e repletos de vida (e cinema) — a saber: Oliveira 96 anos e então o mais velho cineasta em atividade, Bénard já passado dos 70 anos, sempre jovial em sua curiosidade —, os dois trocam opiniões sobre arte desde os tempos egípcios até o próximo filme de Oliveira, dos conceitos da arquitetura (“não há finalidade na arte, arquitetura tem uma finalidade”, diz Oliveira, após parafrasear Godard) às possibilidades oníricas do cinema (“o cinema [mudo] era onírico. Quando veio o som e a palavra, tornou-se muito mais realista”), passando por Murnau, Da Vinci, Dreyer, Rothko e tantos outros. Trata-se de um filme que, através da conversa, aborda “a ação mais importante do homem”, nas palavras de Bénard: ver.

Os dois estão em uma sala no Museu de Arte Antiga de Lisboa; Oliveira, em frente a um tríptico da crucificação, Bénard, a uma madona com bebê: morte e nascimento, o velho e o novo — seria este uma espécie de “O dinossauro e o bebê” (1967) português [1]? A câmera está em um tripé e pouco se move — no máximo, há alguns zooms que formam planos mais fechados sobre seus rostos e o enquadramento vai, sem cortes, de um para o outro. Como diz o próprio Oliveira, “a fixidez é concentrativa, o movimento distrativo”. É a fixidez que nos permite mergulhar mais e mais nas conversas, nas vozes e suas pausas, nos pequenos gestos dos e entre os dois amigos (Oliveira acudindo Bénard para desdobrar um papel, levando como resposta “deixe-me lá ser desajeitado”).

Entretanto, tal como a 15ª pedra de um jardim em Quioto citada no título, que lá está, mas não é possível de ser vista ao mesmo tempo que as outras, “só se vê com o coração”, há mais alguém que não vemos, mas sentimos: a realizadora Rita Azevedo Gomes. É possível senti-la parte da conversa como muito mais que um ouvinte: é a nossa intermediadora. Está lá nos cortes discretos ou quando suprimem as cores do filme ou mesmo no princípio de tudo: é a voz de Gomes que abre o filme para dar início ao diálogo (“quando quiserem”).

Ao discutirem o milagre no cinema, especialmente “Gertrud” de Dreyer, Oliveira faz uma análise dos momentos finais do filme, de que os sons de relógios e sinos são uma manifestação do tempo e, portanto, da criação divina — no que Bénard, para nossa surpresa, afirma que nunca havia pensado no final daquela maneira. Oliveira prossegue, contudo Rita Azevedo Gomes faz desaparecer as imagens, deixando somente a tela escura para ouvirmos o realizador dizer: “Deus, é um nome que a gente aplica a coisa nenhuma porque nunca o viu, nunca sabe”. Fim da frase. Voltam as imagens, os dois amigos, a conversa, os quadros, Jesus e Maria. Permanece o Mistério (ou seria a Revelação?), graças à realizadora.

Pois Rita Azevedo Gomes é um dos grandes nomes do cinema a não apenas respeitar, mas potencializar as palavras. Em sua obra, uma conversa é compromisso. Seus filmes são calcados nas palavras como os edifícios em alicerces. E logo nós estamos banhados pelas luzes de seus filmes, imersos nas interlocuções constantes que perfazem suas histórias. Do ato prosaico e banal de dialogar ela realiza seu cinema — repleto de repostas extraordinárias para a pergunta de Bénard, “como é que se representa a vida?”.

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Pierre León (no chão), Rita Azevedo Gomes e Jean Louis Schefer (nas cadeiras) em “Danses macabres, squelettes et autres fantaisies” (2019)

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Se em “A 15ª pedra” estamos em concentração total com a conversa de dois dos maiores nomes do cinema em português, em sua obra posterior o diálogo serve para outros saltos e fraternidades — porque é através de ouvir e falar com o outro que estabelecemos as nossas relações e também os seus filmes conversam com outros nomes.

Em “Correspondências” (2016), assume o desafio de transformar em filme o diálogo epistolar de Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena. Décadas, países e línguas se somam, em um compilado de encontros com tantos amigos da realizadora e da plateia. Quase todos os planos fixos, “concentrativos” para usar o termo de Oliveira, que nos permitem focar nas palavras dos poetas. Elas ganham corpo, voz e vida. E Rita Azevedo Gomes consegue, assim, dar a Sophia e Jorge a proximidade tête-à-tête que lhes foi privada pelo tempo.

É preciso ver demoradamente para perder-se na imagem, para ouvir todas as sílabas e silêncios do que é dito e capturar suas belezas — para o prazer de quem vê e ouve na plateia. Rita Azevedo Gomes pode ser considerada excelente aluna de Oliveira [2] mas seu mestre maior está em Sophia de Mello. “Estabelece, a Poesia, a Transparência”, escreve Sophia em uma das cartas a Jorge, primeiro verso de um poema não publicado que é resgatado em “Correspondências”. Seu cinema traz uma busca pela claridade e pela verdade, pela procura da presença de uma poesia a se tornar visível — a própria realizadora se autodeclara uma “pintora da luz”.
Tal se prova a cada obra, como em “Danses macabres, squelettes et autres fantaisies” (2019). O filme se constitui de uma longa conversa com o escritor Jean Louis Schefer, o realizador Pierre León e ela mesma, explorando a partir das pinturas medievais de Danse Macabre questões de história da arte e do olhar em interlocuções com outras obras — tal como em “A 15ª pedra”. Schefer revela-se um performer nato e León passa a maior parte do tempo como seu interlocutor, enquanto vemos menos de Rita Azevedo Gomes (às vezes, ela surge para ajeitar uma cadeira vermelha no enquadramento, por exemplo) porém sentimo-la — tal como a 15ª pedra.

Neste filme, contudo, pouco ficamos em museus, estamos quase sempre ao ar livre. O contato com o vento, com a maresia, as conversas ao pé da mesa de jantar, provam outra capacidade central da realizadora: Rita Azevedo Gomes é hoje a maior lepidopterista do cinema português. Empresto esta longa palavra, usada para descrever os especialistas em borboletas, por um motivo simples: a realizadora é uma exímia caçadora de borboletas de Griffith [3], como se observa em todos os seus filmes, em seu respeito pela natureza das coisas e na entrada de pequenos acidentes que iluminam o quadro, como os animais na abertura do “Danses…” que distraem e divertem até os participantes da conversa — vale destacar, em completo desacordo com o que o próprio Oliveira defende na conversa com Bénard (“eu quando vejo uma coisa muito bonita [nas rodagens] penso ‘ai que bonito isso, mas está fora do contexto, que pena’, andamos […] este é um ponto de referência muito forte para meus filmes”). Tal como Sophia de Mello, Rita Azevedo Gomes persegue o real e faz disso sua arte poética.

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Schefer (esq.) e León (dir.) em “Danses macabres, squelettes et autres fantaisies” (2019)

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“Danses macabres, squelettes et autres fantaisies” [4] é assinado a seis mãos: Azevedo Gomes, Léon e Schefer. Se o filme é ele próprio uma conversa filmada entre os três, nada mais natural. Retoma-se e aprofunda-se aqui um gesto da realizadora em “A 15ª pedra”: os últimos momentos do filme trazem as assinaturas de Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa — de certa maneira também eles assinavam esse trabalho. Afinal, ninguém conversa sozinho e no cinema ninguém está de fato sozinho.

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Notas:

[1] “O dinossauro e o bebê” (1967, FRA, Le dinosaure et le bébé: Dialogue en huit parties entre Fritz Lang et Jean-Luc Godard) de André S. Labarthe.

[2] Manoel de Oliveira e também João César Monteiro: “A Vingança de uma mulher” (2012), outro filme firmado em diálogos, tem muito a conversar com “Silvestre” (1981).

[3] Refiro-me ao texto “A borboleta de Griffith”, de Jean-Claude Biette, no qual Biette, a partir do filme “Le Rayon Vert” de Éric Rohmer, distingue os cineastas naqueles que deixam passar uma borboleta pelo seu plano e os que optam por não utilizar esta tomada. Disponível em https://dicionariosdecinema.blogspot.com/2011/03/borboleta-de-griffith-por-jean-claude.html.

[4] O novo filme de Rita Azevedo Gomes, “O Trio em Mi Bemol” (2022), inspirado em uma peça teatral de Éric Rohmer — outro lepidopterista —, terá sua estreia no Brasil no Festival Olhar de Cinema nos próximos dias (05 de junho).

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