FOCO – O Cinema de Vincent Gallo (Parte 2)

Valeska G. Silva analisa o cinema de Vincent Gallo para o Estado da Arte. Uma parceria com a FOCO - Revista de Cinema.

por Valeska G. Silva

uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

Toda criança no fundo possui uma solidão.

Billy Brown nasceu em um bairro popular na cidade de Buffalo, em uma residência que se destaca das demais pela fachada com excesso de motivos inspirados na bandeira do time de futebol americano da cidade. A mãe (Anjelica Huston) é uma fanática torcedora futebolística que culpa o nascimento do filho pelo fato do time nunca mais ter pontuado em uma competição. Sentada à mesa de jantar chega a dizer, olhando para Billy, que desejava que ele nunca tivesse nascido. Ninguém reage; é só mais uma afirmação da matriarca pronunciada pela milésima vez. Vincent Gallo poderia ter feito de Buffalo’66 um melodrama, mas é a farsa como recurso satírico que, mesmo em face da autocomiseração da personagem, obscurece o drama. Os eventos são engraçados e tristes ao mesmo tempo, e não se consegue perceber a tristeza sem antes encontrar a comicidade em cada cena.

O absurdo exige suicídio? Não! Exige revolta.

Albert Camus, O Mito de Sísifo

Como antecipei na primeira parte deste texto, Layla (Christina Ricci) é raptada por Billy para ser apresentada aos seus pais como sua esposa apaixonada. Não se revelando contrariada, predispõe-se a colaborar, atuar e arquitetar junto ao sequestrador. Billy esteve preso por cinco anos, não ficamos sabendo se a família soube (se soube não revela por não se importar; se não soube, não soube por que não se importa). O leitmotiv de Billy é a relação com seus pais. Por causa dessa malfadada relação, Billy apostou muito alto no time de futebol do coração da sua mãe. Uma atitude impensada, solitária, sabidamente infrutífera, suicida.

Durante a visita, a impressão de extremo desconforto e longo tempo transcorrido, mesmo que quase nada aconteça além da troca de olhares, é dada pela montagem esquemática e lúdica: ao posicionar as personagens à mesa de jantar como em uma ciranda alucinada, somos arremessados ora para uma cabeceira, ora para a outra, num jogo que transforma as personagens em peças de tabuleiro. Layla demonstra interesse em ver uma foto de Billy quando criança. Os pais têm uma, mas não se encontra entre todas as outras, no álbum familiar: ficou esquecida em um fundo de gaveta de criado mudo, ao que parece. O pai (Ben Gazzara) traz a foto infantil enquanto inserts em uma montagem estilizada – na forma de retalhos de imagens atiradas umas sobre as outras, as quais se avolumam na tela – terminam por nos revelar o universo da memória de Billy, servindo como um álbum de imagens particular da solidão da personagem. A contextura é permeável, abismos de teatralidade que nos permitem intuir a ebulição moral e a revolta do protagonista. Descobrimos que o pai de Billy, além de ser um excelente cantor frustrado (em um dos momentos mais belos e lúdicos do filme; o outro é sempre que Layla dança), é possivelmente também o assassino de Tobby, o cãozinho da infância do filho. O teatro, quando trouxe ao centro dos interesses aquilo que os bobos da corte, os clowns, os rufiões em Shakespeare e os arlequins na Commedia dell’arte sempre lidaram, obrigou-nos a encarar as atrocidades que permanecem escamoteadas nos silêncios da nossa alma pela linguagem do Absurdo.

A bela e a fera

 Buffalo ’66, antes de ser a história de Billy Brown, é uma história de amor. O ser humano sai de alguns enfrentamentos, erodido, desgastado; Layla não. O mito fundamental do monstro que quer ser um homem bom se apresenta. Layla desempenha o papel da mulher que ajuda o monstro a se transformar em homem.

Essa história começa a ser contada quando a personagem ultrapassa os portões do presídio em que esteve nos últimos cinco anos. A neve é impiedosa; seus trajes são inadequados; sua cabeça está ainda como que presa às lembranças do que sofrera desde antes de atravessar aqueles portões; como se não bastasse, ele precisa urinar e não encontra lugar adequado. Billy conhece o anjo Layla em uma das inúmeras tentativas malogradas de encontrar um banheiro. Em pouco menos de 24h a personagem desembaraça-se de uma vida para começar uma nova. Billy parece presumir que possui uma espécie de poder demoníaco ou divino, age como se fosse invulnerável. Sua insolência o conduzirá à destruição ou à graça.

Buffalo’66 é uma semi-autobriografia de Vincent Gallo. O artista traz sua própria estranheza pessoal à criação. A característica mais singular, mais íntima de um indivíduo inspira o coletivo porque o ser humano atirado no mundo é sempre igual a outro ser humano e “se o mundo fosse claro, a arte não existiria”.

É muito complicado um tempo em que a opinião pública oscila tão rapidamente e contraditoriamente, chegando às conclusões mais definitivas quanto à maneira como devemos encarar ideias tão díspares em um relativo curto espaço de tempo. O século da modernidade pavimentou um caminho de ousadia e liberdade nas artes, mas o que se seguiu, no que se refere à criação artística, foi uma verdadeira guinada inesperada: na ânsia em contribuir para a melhoria do mundo muitos artistas se apoiaram na crença de que o caminho correto a ser seguido seria a submissão ao voluntarismo, transformando-se assim em verdadeiros ativistas.

E tem sido visto como um estranho e sempre mal recebido o artista que, ignorando tal tendência, apresenta-nos um cinema inspirado na importância das personagens, e o que elas são guiando o que acontece com elas, não o contrário. Estudos do comportamento humano e suas interdependências podem instrumentalizar os filmes, mas não os salvam garantindo que se tornem bons filmes. Godard, admirador confesso de The Brown Bunny, tem recebido seguidamente do mais importante festival de cinema francês, Cannes, prêmios que parecem mais uma forma de introduzir Godard – um corpo estranho, que não pode ser ignorado – nesse contexto que não deseja nada que não possa ser encarado como bê-a-bá de lição moral e cívica. A busca particular do artista, nesse tempo de exigências apriorísticas, tem feito com que artistas como Godard e Vincent Gallo se tornem proscritos, sem lugar institucional, sem função edificante. Contanto que consigam continuar filmando… Torcemos.

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