por Valeska G. Silva, em uma parceria com a Foco – Revista de Cinema
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Neste texto inédito da nova edição da Foco – Revista de Cinema — cujo lançamento será nas próximas semanas —, Valeska G. Silva escreve sobre Desafiando o Assassino, de Richard Fleischer:
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“O filme cria em você uma sensação de violência, sobretudo porque ele não é verdadeiramente violento. Se você reparar bem, não há sangue na tela, exceto quando Kirk Douglas leva sua mão ao seu olho e o sangue escorre entre seus dedos. Quando Tony Curtis tem sua mão cortada nós não vemos a amputação, mas todos gritam na plateia. Isso se passa fora de campo e, portanto, sentimos a amputação. Hoje tudo é mostrado, não se deixa nada para a imaginação do espectador.”
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Richard Fleischer a propósito de Vikings, os conquistadores (The Vikings, 1958)[1]
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A necessidade que possuímos de entender a natureza das coisas está na origem das narrativas ficcionais de caráter mítico. As coisas do mundo, do homem, das relações, do bem e do mal, do destino, da doença inspiraram os mitos de formação que mediam desde então a nossa busca infinita por autorrepresentação. Richard Fleischer foi um notório diretor de filmes mitológicos ou aparentados ao mítico e não se cansou de confrontar a nossa posição (no tempo) em relação aos nossos mitos mais representativos no esforço de renová-los. Em Mandingo – O Fruto da Vingança (Mandingo, 1975), ele localiza o nascimento de uma nação não na Guerra Civil, mas no registro de um outro tipo de violência, ainda pouco afrontada, ao mesmo tempo afetiva e sexual, mais perversa que a das grandes guerras. Em Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972), somos apresentados às regras desumanas de uma metrópole pelo olhar de dois policiais que acabam aniquilados por ela. Em A Última Fuga (The Last Run, 1971), Fleischer retoma a forma odisseica: o herói consciente da sua marcha em direção ao seu destino derradeiro ? a morte ? tem como antagonista todo um universo.
Desafiando o Assassino (Mr. Majestyk, 1974) pertence a esse conjunto de filmes que apresentam as violências pouco representadas e discutidas de determinados tempos e lugares. Contudo, ele retoma uma forma que encontramos em alguns filmes pertencentes ao início da carreira do cineasta, como Alma em Sombras (The Clay Pigeon, 1949) e Rumo ao Inferno (The Narrow Margin, 1950). Estes filmes possuem a economia do conto: um único eixo narrativo, tempo consequente, foco no presente, o passado das personagens chega a ser no máximo indicado. Eça de Queiróz caracterizou o conto como um gênero no qual “tudo precisa ser apontado num risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos, apenas o que caiba num olhar, ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser”. Desafiando o Assassino cabe tão bem nessas definições, é tão conciso que não raro é visto como um mero filme de perseguições, explosões e tiroteios. Não se trata de um filme mitológico, nem lida com mitos, mas sim com ideias de representação aparentadas ao mítico. Masculino, implacável, justo e vulnerável no âmbito familiar, o seu herói é um verdadeiro arquétipo encarnado numa situação realista.
Vincent Majestyk (Charles Bronson) é um agricultor envolvido com a produção e a colheita de melancias que reage à tentativa de segregação imposta a um grupo de imigrantes, proibidos de usar o banheiro de um posto de gasolina. As dificuldades mais básicas dos imigrantes latinos, como obter um trabalho e não serem explorados em meio à chamada “cisma californiana”, são tópicos contemporâneos ao filme ? que retrata as adversidades políticas encontradas naquele território até meados dos anos 1970 ? e estabelecidos como tema de fundo.
A imigração no Sul do país sempre foi vista por uma parcela dos americanos como um problema econômico. O Texas é o território de uma disputa histórica: pertenceu ao México até 1836, foi uma República até 1845 e só então passou a integrar os Estados Unidos. Através da visão de mundo de Fleischer, o ícone do cinema de entretenimento é transformado em símbolo da indignação frente à discriminação étnica. Quando o agricultor americano reage à tentativa de segregação dos imigrantes, é devido à reconhecida dureza e inflexibilidade do rosto do ator que uma fenda surpreendente se abre no universo ficcional. Majestyk se alia a uma das mulheres do grupo de imigrantes, e unidos conquistam, frente ao subserviente funcionário, as chaves dos banheiros. É quando ele oferece um sorriso à imigrante, num desses gestos que “escapam e revelam todo o ser”. Enquanto crianças, mulheres e homens latinos fazem fila para utilizarem os banheiros, Majestyk se recosta no batente da porta, cruza despreocupadamente os seus braços e sorri mostrando os dentes. Bronson emprestou um único olhar para grande parte de suas personagens, grave como o olhar dos que sobrevivem carregando a imagem da injustiça na memória, e quando ele sorri às personagens reais, a estrela do cinema de ação e a atriz latina atingem um significado mítico no interior da ficção. Nancy Chávez (Linda Cristal) o olha interrogativamente, sublinhando o fato inusitado de um americano, em seu território, defender os interesses de um grupo estrangeiro, provavelmente ilegal. O evento de base (as condições dos imigrantes) revela um mistério do comportamento humano na estrutura do real (a beleza na solidariedade inesperada) e abre a possibilidade para que um filme, um aparente pequeno filme, faça parte da nossa existência.
Na caminhonete de Majestyk, a caminho da plantação, Nancy revela como se tornou uma líder sindical e menciona uma figura histórica da luta pelos direitos dos trabalhadores rurais nos EUA[2]. A personagem ganha o sobrenome dessa personagem histórica, bem como as atitudes de coragem e enfrentamento características de uma heroína, além de ser a única personagem da qual dispomos de algumas informações sobre o seu passado, narrado por ela mesma. Fleischer esboça um mito feminino ao lhe atribuir uma aura do universo dos quadrinhos, algo que fica evidente nos enquadramentos destinados à personagem: enquanto dirige a caminhonete de maneira espetacular durante uma fuga, salvando Majestyk das garras dos bandidos; durante a colheita, num contre-plongée que deixa de fundo apenas o azul artificial de um céu absolutamente limpo; ou ainda, contra o negro da noite, num fundo irreal que poderia ser o de um abismo, em frente ao galpão que armazena a colheita de melancias, segurando as mãos de Majestyk cerradas pelo ódio.
É dessa forma que o interesse social de Fleischer se alia ao universo do romancista Elmore Leonard, autor tanto da novela que deu origem a Desafiando o Assassino quanto do seu roteiro. Elmore é responsável pela descrição minuciosa de um tipo moderno de vilania: a dos sem-talentos, os perigosamente insatisfeitos, os plenamente adaptáveis às condições babélicas de um tempo. Encontramos essa personagem em um de seus romances, Rum Punch, na personagem de Louis Gara, interpretada por Robert De Niro na adaptação cinematográfica de Quentin Tarantino (Jackie Brown, 1997), um delinquente autodestrutivo, de olhos aborrecidos e sem vida. Também a encontramos, ainda mais bem acabada, em Bobby Kopas, o vilão pouco ilustre de Desafiando o Assassino que se apresenta como um bajulador típico, insistente e estúpido, incapaz de responder diretamente a uma pergunta, por mais simples que ela seja. Coadjuvante em todos os eventos mais importantes, sempre em busca de um protagonismo impossível, rende, junto às cenas de perseguição, os melhores momentos de um tipo de violência que não encontramos em muitos filmes de Fleischer. Em seus outros filmes a violência mantém-se submersa, enquanto neste estamos em contato com uma violência explosiva como um pavio aceso cuja chama consome até o fim. Kopas é responsável por acender o pavio.
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O homem que estampa o próprio nome na carroceria do veículo de negócios, e não o de um filho ou o da mulher, é um solitário. Após ser abandonado pela esposa e a filha, Majestyk plantou 160 hectares de melancias. Pelo modo como dá a nota de cinco dólares a um frentista compreendemos a sua tranquilidade, a satisfação e o orgulho que procedem de um trabalho bem feito e da vida que escolheu. É uma bela manhã quando seu amigo Larry Mendoza apresenta os trabalhadores selecionados a dedo para a colheita.
Majestyk é um homem comum, preocupado apenas consigo mesmo enquanto a injustiça não ocorre sob os seus olhos. Podemos apenas entrever, mas está lá: um homem educado para acatar as ideias alheias, respeitar hierarquias, seguir na profissão paterna; e que, no entanto, se torna um rebelde na juventude, rouba, trai e mente sem necessidade, simplesmente por ter consciência da própria insignificância. Um homem comum expurga tudo isso a cada dia, enquanto envelhece, mas Majestyk esteve na Segunda Guerra ? fato mencionado por outra personagem, em momento algum por Majestyk ? e, possivelmente, começa a ser capaz de sustentar uma coerência ética após o choque de guerra. Como tantas outras personagens com o mesmo perfil, acaba como um forasteiro em seu próprio universo, visto como um ingênuo por todos, pelos presos, pelo guarda, pelo delegado e pelos vilões. A epopeia do agricultor encerra pelo menos uma intuição, segundo a qual só podemos começar a nos conhecer e, sobretudo, nos reconhecer no mundo, através do outro. Desafiando o Assassino fala sobre enxergar o outro em um ambiente de extrema injustiça, do momento em que a luta se revela una e de todos, representada através da vitória, da morte e da prisão dos vilões. Evidentemente nenhuma personagem interpretada por Charles Bronson, o símbolo da violência no cinema, deixa qualquer dúvida, desde as primeiras cenas, de que lutará até as últimas consequências. Michel Mourlet, em seu célebre texto sobre um tipo de representação da violência no cinema, diz: “O que ela expressa é a coragem de viver, uma consciência da luta entre o homem e os elementos, do homem contra o homem, uma liberação da vontade de vencer”[3].
Se em Desafiando o Assassino a violência solar que rompe na superfície e eclode na tela é personificada por um agente absolutamente controlado e contido, nos outros filmes de Fleischer a violência permanece encoberta, subterrânea, e por isso é mais angustiante, noturna. “A violência que está apenas sob a pele”, segundo Mourlet, “captando aquele momento em que o pulso freneticamente se acelera enquanto com cada batimento cardíaco magnificado, o homem se prepara para encarar o que está em seu caminho. E nesse processo, descobre uma calma, uma detumescência”. É essa a violência retratada por Fleischer na maioria de seus filmes (O estrangulador de Rillington Place, [10 Rillington Place, 1971]; Estranha Obsessão [Compulsion, 1959]; Um Sábado Violento [Violent Saturday, 1955]; Rumo ao inferno [The Narrow Margin, 1950]; O estrangulador misterioso [Follow Me Quietly, 1949]), nos antípodas da violência enérgica de Desafiando o Assassino.
Essa outra violência de que fala Mourlet está presente em um filme como Os Novos Centuriões. Ela se espraia por uma cidade que observa os homens, heróis e sobreviventes, como um paciente predador. Fleischer funda sua fantasia mítica, metáfora de uma nação, e introduz de maneira corajosa o tema da discriminação étnica, mais uma vez pelo ponto de vista do herói possível, o trabalhador americano anônimo. Após verificar as condições desumanas nas quais vive um grupo de imigrantes ilegais, o policial Kilvinski (George C. Scott) confronta outro americano, locatário de imóveis superfaturados e em péssimas condições de preservação. Quando descobre as mentiras contadas a respeito da situação dos imigrantes, imaginamos, pela maneira calma com que Kilvinski sai do apartamento dos imigrantes e caminha em direção ao locatário, que ele irá apenas interceder com um pequeno acordo. Mas essa sensação evolui rapidamente de uma aparente calma a uma violência exponencial, e Kilvinski o ataca. É necessário frisar a singularidade com que é filmada a cena em que um policial americano ameaça e agride fisicamente outro americano para defender os interesses dos imigrantes ilegais. Numa inversão astuciosa de caracterização, é o locatário quem acaba emoldurado pelas barras de ferro de um corrimão de escadas, as quais remetem às barras de uma cela, como se Fleischer quisesse deixar bastante claro quem deveria estar submetido à justiça ? uma justiça que só pode existir como conjectura, num universo de sobreviventes, pelas mãos do herói.
Da discriminação étnica às outras formas de segregação (Barrabás [Barabbas, 1961], O Bandido [Bandido!, 1956], Vikings, os conquistadores [The Vikings, 1958]), dos relacionamentos baseados na exploração econômica às redes que possibilitam que seres humanos sejam tratados como mercadorias (Mandingo, No Mundo de 2020 [Soylent Green, 1973]), a premissa é sempre a mesma: a distorção dos valores, segundo a ilusão que permanece na base dos relacionamentos humanos. Foi a partir da compreensão do mecanismo entre uma ideia (a decadência da organização social, consequência da corrupção humana) e a sua conclusão (a violência desencadeada que castiga o corpo doente dessa sociedade) que Fleischer retratou, renovou e destruiu tantos mitos.
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A ficção depende da realidade para existir e não pode simplesmente reduzir-se a um tema ? o que equivaleria a uma retração do mundo às dimensões exclusivas da hipótese narrativa. O que Fleischer sempre buscou foi justamente o contrário, que o universo se expanda a partir da ficção. Para isso ele utilizou as regras formais do conto, através das quais um universo consequente é revelado, onde uma ação gera outra, de forma encadeada (“se na parede pende uma espingarda, na cena seguinte ela deve ser disparada”), além das imagens de violência de inspiração cartunesca. Tomemos uma cena-chave: centenas de melancias são alvejadas por rajadas de metralhadoras. Após a primeira rajada ouve-se apenas um movimento, o líquido da fruta escorre e a sua cor interna é revelada. Só então são disparadas mais rajadas em um longo massacre. A apresentação da violência mais selvagem, pérfida e abjeta ganha uma representação simbólico-imagética à altura de uma banda desenhada, uma tira de quadrinho que também se utiliza do método sequencial fragmentário. Fleischer, mais uma vez, consegue criar uma sensação de violência, concedendo ao espectador o dever de imaginar. O vilão Renda (Al Lettieri) se regozija frente às melancias sendo estouradas; ora vemos o sorriso em seu rosto, ora o rosto dos capangas malfeitores com cara de poucos amigos, empunhando as suas potentes armas como se estivessem chacinando pessoas. Quando Majestyk retorna da comemoração da colheita e, em frente ao galpão, grita por Nancy, os planos passam a ser de detalhes: primeiro é captada a reação do rosto de Nancy, depois a câmera desce acompanhando o seu gesto, tudo num fundo negro, como se a luz que ilumina seus rostos anunciasse o seu próprio esgotamento; quase vemos pelos limites do enquadramento um mundo colorido que deixa de existir para dar entrada a outro, completamente oposto. O que deveria ser apenas explícito no cinema de ação é representado alegoricamente, ganhando uma força que ultrapassa os limites da ficção.
Para manter o espectador em confronto com as ideias apresentadas, Fleischer sempre evitou representar o desfecho dos atos de violência na tela, numa espécie de fidalguia que só os excepcionais exercem, uma verdadeira disciplina e ciência do olhar que o levou a seguir à risca as considerações mais escrupulosas sobre o assunto. O mesmo princípio foi elaborado em outro contexto por Robert Bresson. Se A Grande testemunha (Au hasard Balthazar, 1966) exige que olhemos nos olhos da tristeza, em um de seus últimos filmes, precisamente na sequência do assassinato da família em O Dinheiro (L’argent, 1983), chegam a nós apenas o choro insistente de um cão, o som de suas patas no assoalho, a sua ânsia por localizar cada membro da família, seu desespero ao ver o machado empunhado e prestes a atingir a senhora recolhida e indefesa. As elipses nos forçam a reunir os pontos soltos, a completar as imagens suprimidas, sem que nos tornemos, ou o realizador, cúmplices de uma imagem da atrocidade. De maneira semelhante, Fleischer evita no interior do filme de espetáculo o gozo complacente.
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Quando as melancias são alvejadas, um limite que Fleischer se impôs é ultrapassado e não é. O vermelho da melancia remete ao sangue: escorre, tem som, volume, corresponde à vida se esvaindo e, fantasticamente, somos arremessados a uma profunda melancolia frente ao massacre das melancias. Fleischer sabe que quando não vemos mas podemos imaginar, um senso crítico nos é solicitado e compreendemos que algo nos foi vetado pelo seu caráter excessivo. Dessa forma ocorre a mais radical experiência: nossa posição no mundo é questionada e somos levados a refletir sobre ela. Um tema que permanecia distante torna-se próximo, propiciando uma renovação de perspectiva.
Fleischer utiliza do astro Charles Bronson o que lhe é indissociável, a sua fisionomia própria ? seu rosto marcado por uma gravidade quase imutável, uma violência sempre suspensa, uma inquietação física sempre a ponto de bala que estimula a nossa apreensão ?, para dar vida ao homem comum impelido a agir e que deixa “um pouco de alma na terra”[4]
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Notas:
[1] Entrevista com Richard Fleischer, por Michel Ciment e Lorenzo Codelli, Positif n.º 544, junho de 2006. Tradução de Lina Siqueira para a Foco – Revista de Cinema.
[2] César Estrada Chávez exerceu importante colaboração na greve da uva, em Delano. Criou o sindicato dos trabalhadores rurais, expandiu a sua influência abrindo filiais em diversos estados, causando cismas com muitos dos aliados da filial californiana, que o haviam apoiado anteriormente. Em 1973, a UFW (Trabalhadores Agrícolas Unidos) havia perdido a maioria dos contratos e membros conquistados no final dos anos 1960. A aprovação da Lei de Relações Trabalhistas Agrícolas naquele estado foi conseguida apenas um ano após o lançamento de Desafiando o Assassino.
[3] Apologie de la violence, Cahiers du cinéma n.º 107, maio de 1960, pp. 24-27.
[4] O narrador de Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis, atribui a reflexão ao protagonista do conto.
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