por Willian Silveira
Hiroshima Meu Amor retorna às telas. A cidade que surgiu no mapa ao desaparecer. O amor perdido e momentaneamente encontrado. O filme sem referências cinematográficas, como observou Godard. Precursor da Nouvelle Vague, em 1959, o clássico de Alain Resnais (1922 – 2014) chega em cópia restaurada aos cinemas brasileiros, a partir de 9 de março. A responsável por trazer menos obviedade à programação do circuito nacional é a sessão Clássica, que desde 2015 leva às salas títulos marcantes e obrigatórios do cinema do século XX, como O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1966) e Estranhos no Paraíso (Jim Jarmusch, 1984) em cópias restauradas e digitalizadas.
Agora é a vez de Resnais. Curta-metragista de formação e reconhecido por documentários como Van Gogh (1948), As Estátuas também morrem (1953), Noite e Neblina (1956) e Toda a Memória do Mundo (1957), o plano inicial do diretor francês era documentar a tragédia de Hiroshima durante o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Porém, logo se deparou com a impossibilidade de explicar o que acontecera na cidade japonesa. Órfão de uma razão que pudesse sustentar os fatos, Resnais perderia a essência documental, sobrando ao projeto apenas um conjunto de imagens impactantes e apelativas. Surgiu, então, a possibilidade de realizar uma ficção com roteiro de Marguerite Duras, a principal voz feminina do Nouveau Roman.
Hiroshima é a estreia de Resnais em longas-metragens e a de Duras como roteirista. No filme, uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) conhece um arquiteto japonês (Eiji Okada) durante as filmagens em Hiroshima. O envolvimento do casal é o território concreto necessário para o desenvolvimento do abstrato – a dimensão do horror e a natureza da memória. A temática superficial é um desdobramento original da tensão sócio-política provocada pelas batalhas coloniais, na segunda metade do século XX. O amor em tempos de guerra, como se poderia chamar o pano de fundo de filmes como Os Girassóis da Rússia (Vittorio De Sica, 1970) e Os Guarda-Chuvas do Amor (Jacques Demy, 1978), seguiu caminho peculiar na versão Resnais-Duras, que deixa de lado a abordagem romântica do amor impossível para apresentar a memória como espaço de opressão. Nada parece fazer frente a uma bomba nuclear, exceto a culpa.
Opressão e culpa são os sentimentos que movem a protagonista. Sem jamais revelar o nome, a personagem de Riva é fruto de um passado obscuro. Vendo as coisas de perto, ela diz, se aprende. Hiroshima tem inúmeros significados. Ainda que para muitos simbolize o fim da Guerra, a cidade jamais deixará de representar o medo, a indiferença e o desconhecido. Para a atriz que procura apagar a perda e a humilhação de uma paixão, Hiroshima pode ensinar a esquecer e a recomeçar.
Em um filme que transmite como poucos a sensação de claustrofobia e angústia pelo futuro, boa parte da estupefação com a qual o longa foi recebido se deu por conta do uso excepcional da montagem. Resnais havia experimentado antes, mas faltava-lhe um tema verdadeiro, uma causa. Aqui, flashback, elipse e voiceover anulam a possibilidade de um narrador realista, transformando a gramática do cinema no próprio filme. Antes de ser sobre memória, Hiroshima é a memória. Memória conduzida por uma liberdade proustiana e com movimentos de câmera peculiares, que fazem a obra de Resnais flutuar em direção ao tempo como um discípulo de Berkeley – ora no presente, ora no passado. Sempre desconcertante.