…..
Nota da Editoria de Cinema: no nosso último editorial, divulgado no dia 11/07/2020, informamos que publicaríamos um artigo dedicado à situação atual da Cinemateca Brasileira. No entanto, para fazê-lo, achamos pertinente convidar alguém que se encontra na linha de frente da batalha, alguém que está lutando diretamente para que essa instituição histórica e crucial não continue sendo vítima da indiferença e do obscurantismo. Roberto Gervitz — cineasta, diretor de Feliz Ano Velho e Jogo Subterrâneo, entre outros trabalhos — tem sido, já há um bom tempo, uma das vozes mais ativas e importantes sobre o tema. No texto que publicamos hoje, ele transforma em palavras toda a indignação e legimitidade da sua justa luta, que também é a luta de todos nós. Aproveitamos para dizer que a sua opinião é a mesma opinião da Editoria de Cinema do Estado da Arte.
…..
……
Imagens que nos revelam
……
por Roberto Gervitz
……..
“[ . . . ] há dois meses o assunto Cinemateca Brasileira ocupa os principais espaços midiáticos do país como jamais ocorreu em sua história.”
…
Em 1974, às sextas-feiras à tarde, eu, então com 16 anos, ia ao barracão da Cinemateca Brasileira, que ficava no interior do Parque Ibirapuera, próximo à avenida IV Centenário, para buscar as cópias em 16 mm de filmes nacionais que seriam exibidas à noite no cineclube de meu colégio. Assim começou a minha relação com a Cinemateca Brasileira. E, mesmo sendo a única que eu conhecia, me perguntava como uma cinemateca poderia funcionar em um lugar tão precário, úmido e apertado. A salinha da expedição tinha um par de poltronas velhas, se não me engano, trazidas de algum cinema, e, ali, o simpático e paciente seu Aloísio, funcionário histórico, me entregava os rolos de filmes e cobrava pontualidade na devolução.
A minha geração crescia no Brasil do golpe militar — a ditadura impunha um país fechado culturalmente em que reinava a censura e o medo — e o cinema foi a nossa janela para o mundo e para a vida. Devo à Cinemateca a aproximação com os filmes que se fizeram e se faziam no Brasil — o Cinema Novo, as chanchadas da Atlântida, os filmes de Humberto Mauro, da Vera Cruz, de Roberto Santos, de Ozualdo Candeias, de Walter Hugo Khouri e tantos outros — aos quais assistia e exibia para os jovens frequentadores do cineclube. É bom lembrar que na época não havia sequer as fitas VHS.
Mesmo em situação precária, a Cinemateca já cumpria um dos seus principais papéis como difusora e formadora de plateias para filmes brasileiros, mas não só. No Museu Lasar Segall, era possível assistir a outras obras de seu acervo, estas em 35mm — Vsevolod Pudovkin, Dziga Vertov, Lev Kuleshov, Sergei Eisenstein, D. W. Griffith, Robert Wiene, Fritz Lang, F. W. Murnau, Carl Dreyer, Jean Vigo, Jean Renoir, Charles Chaplin, Orson Welles, John Ford, Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Ingmar Bergman — milhões de fotogramas que trespassavam o nosso mundo claustrofóbico e nos transportavam a universos imaginários que iluminavam o nosso existir.
Mesmo sem ter tido o privilégio de ser aluno de Paulo Emílio Salles Gomes (cursei Ciências Sociais, sem terminar), sempre admirei a sua incansável luta pela implantação da Cinemateca Brasileira e as suas reflexões polêmicas e essenciais sobre o cinema aqui produzido.
Falecido em 1977, Paulo Emílio talvez tenha participado dos debates iniciais que, anos depois, levaram o Conselho da Cinemateca a decidir pela passagem desta instituição, então uma fundação privada, para a administração direta do governo federal. Com a forte crise econômica do início dos anos 80, não era mais viável seguir com o modelo anterior. A Cinemateca sonhada por Paulo Emílio jamais seria alcançada por meio de doações esporádicas e participações parciais da municipalidade e do governo estadual, destinadas a SAC — Sociedade Amigos da Cinemateca, criada em 1962.
Nesse momento, se dá um capítulo essencial para entendermos a crise atual da Cinemateca Brasileira. O seu Conselho Consultivo, formado por representantes governamentais, da comunidade cinematográfica e da sociedade civil, decide inserir na “Escritura de Extinção da Fundação” as seguintes “salvaguardas”:
……………
1) A Cinemateca Brasileira se manterá sediada em São Paulo;
2) Seu patrimônio móvel e imóvel será incorporado a Fundação Nacional Pró-Memória, respeitadas as condições: – a) as rendas e receitas dele derivadas serão sempre na sua totalidade aplicadas na Cinemateca; b) as matrizes de arquivo de filmes deverão permanecer no Estado de São Paulo, em depósito, não podendo ser alienadas nem seu acervo disperso; c) o uso do acervo deverá ser disciplinado pelo Conselho;
3) A autonomia, inclusive técnica, administrativa e financeira da Cinemateca deverá ser resguardada e mantida, devendo ser aplicados na própria Cinemateca quaisquer recursos provenientes de convênios ou prestação de serviços
4) A Cinemateca Brasileira contará necessariamente na sua estrutura com um Conselho Consultivo, uma Diretoria eleita pelo Conselho e uma Conservadoria nomeada pela Diretoria; [ . . . ]”[1]
…….
E, apesar das muitas dificuldades, a Cinemateca Brasileira cresceu e, nos primeiros treze anos deste século, atingiu o auge de sua história como instituição. Mudou-se para o que foi o matadouro municipal situado na Vila Clementino, belamente restaurado pelo arquiteto Nelson Dupré, com instalações especialmente projetadas, e o que era antes um local de matança de animais passou a ser um centro em que a vida e a cultura eram celebradas através do cinema.
Com duas salas de exibição, uma das quais primorosa e, tecnicamente, de referência, a Cinemateca abrigou os mais variados festivais, promoveu sessões de cinema mudo ao ar livre e com música ao vivo, acolheu os moradores dos bairros mais próximos em seu aprazível parque e foi colocada entre os cinco centros mais respeitados do mundo na arte do restauro de filmes. Para essa finalidade, adquiriu equipamentos altamente sofisticados e formou uma mão de obra que ganhou grande expertise ao longo dos anos, além de ter ampliado os seus depósitos com controle rigoroso de temperatura e umidade, para abrigar os cerca de 250 mil rolos de filmes de seu acervo.
…………..
………………
Com diretores escolhidos pelo Conselho Consultivo, que ditava a política da entidade, a Cinemateca Brasileira rapidamente tornou-se a maior da América Latina, alcançando prestígio mundial. Naquele momento, a instituição cumpria exemplarmente as suas três funções principais — conservação, restauro e divulgação.
Em 2012, Marta Suplicy assume o Ministério da Cultura e recebe um dossiê do então Secretário do Audiovisual, contendo uma série de acusações de malversação de recursos por parte da Sociedade Amigos da Cinemateca. Sem dialogar devidamente com os conselheiros e a direção, Marta desmonta o Conselho Consultivo e destitui a diretoria, determinando a interrupção imediata de dotação de recursos até que as investigações da CGU (Controladoria Geral da União) chegassem a uma conclusão.
Assim, bem ao estilo brasileiro, uma instituição modelar foi atirada por longo período ao pântano burocrático e à paralisia, em função de questões que mais tarde se revelaram erros de procedimento burocrático e que jamais justificariam medida de tal monta. No período que se seguiu, a instituição perdeu mais de 100 funcionários especializados e praticamente interrompeu as suas atividades e projetos por ausência total de recursos e corpo técnico.
Em 2016, ocorre um incêndio nos depósitos de filmes em nitrato de celulose, que entram facilmente em autocombustão, com a perda de 1003 rolos. A situação de precariedade, que culmina com o incêndio, leva o Ministério da Cultura a retomar a ideia de um modelo de gestão por OS, algo que havia começado em 2008 no interior do próprio Conselho Consultivo.
No primeiro semestre de 2016, é publicado um edital para a seleção de entidade sem fins lucrativos da sociedade civil, a ser qualificada como Organização Social e firmar contrato com o Ministério da Cultura para gerir a Cinemateca Brasileira. No segundo semestre, a ACERP (Associação Educativa e Recreativa Roquette Pinto) é selecionada em detrimento da SAC, que há cinquenta anos contribuía para o seu desenvolvimento.
Apesar de reconhecer a importância da Cinemateca Brasileira, parte considerável dos cineastas brasileiros não possui familiaridade com o trabalho ali desenvolvido e, em geral, só pensa nessa instituição no momento do depósito legal e obrigatório por lei de uma cópia, ao término de seus trabalhos, ou ainda quando precisam de materiais de arquivo para os filmes que estão realizando.
Em função de estar envolvido no restauro de dois de meus filmes, Feliz Ano Velho (1987) e Jogo Subterrâneo (2005) e de, ao mesmo tempo, estar no papel de supervisor de restauro de Pixote, A Lei do Mais Fraco (1981), de Hector Babenco, eu passei a vivenciar mais de perto o drama que a Cinemateca atravessava.
A luz vermelha já havia se acendido no incêndio de 2016, quando foi criado, na Associação Paulista de Cineastas, um Grupo de Trabalho[2] do qual me tornei coordenador, dedicado a acompanhar o que se passava na Cinemateca. Nossas tentativas de tentar entender com maior profundidade o que acontecia ali e estabelecer um diálogo tinham começado bem antes, ainda no governo Dilma, sem grande sucesso.
Em 2015, a sociedade brasileira entrou no turbilhão do impeachment e desembocou em um governo liderado por um presidente contestado em sua legitimidade. Foram anos de caos político, econômico e de apatia social, em que as instituições se enfraqueceram. A cultura, como não poderia deixar de ser, foi atingida em cheio.
……….
………
É nesse quadro que a ACERP passa a gerir a Cinemateca Brasileira, no último ano do governo Temer. Retoma o Conselho Consultivo previsto em 1984? Nem pensar. Mas coloca uma Superintendente Geral que, com um discurso de fundo “empresarial”, estabelece uma tabela de preços exorbitante, sem sequer negociar com o “seu mercado”, ou seja, a comunidade cinematográfica. Agora todo e qualquer serviço seria cobrado a preços estipulados arbitrariamente: desde a pesquisa e a separação de trechos do acervo até mesmo a localização, limpeza e análise do estado dos negativos e cópias dos que lá haviam depositado seus materiais e precisassem retirá-los por qualquer motivo.
Assim, a comunidade cinematográfica que fez parte da luta para construir a Cinemateca Brasileira da qual se orgulhava e cujos filmes enriqueceram o seu acervo passou a ser vista unicamente como um agente do mercado e uma “dor de cabeça”.
Como continuidade do processo de enfraquecimento das instituições democráticas e do esgarçamento do tecido social, Jair Bolsonaro é eleito e assume, em 2019, com seu delirante discurso de “guerra cultural”, agudizando as mazelas pré existentes em todas as instâncias.
Ainda no início desse mesmo ano, poucas semanas após o nosso primeiro encontro com a Superintendente, esta foi defenestrada de um dia para o outro sem qualquer satisfação para o meio cinematográfico e a sociedade. É importante salientar que a ACERP, antiga TV Educativa, deixava patente a ausência de conhecimento do que envolve fazer a gestão de uma Cinemateca e, cada vez mais, nos fazia pensar que os critérios para a sua escolha como OS, fossem eles quais fossem, eram no mínimo questionáveis.
O 2º Superintendente Geral da Cinemateca Brasileira entrou em meados do primeiro ano da gestão da ACERP, mas agora ele vinha acompanhado de um “Supervisor” cuja função jamais ficou clara, embora, depois de uma simples pesquisa na internet, tenha sido identificado como assessor de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal por São Paulo, o mais votado da história do país. Nessa época, passamos a encontrar desconhecidos circulando pelas dependências da Cinemateca e funcionários claramente indicados pelo partido do 03, o PSL.
Nós bem que tentamos conversar com o 2º Superintendente, que nos recebeu de “braços abertos”. O seu estilo se distanciava da dureza da primeira ocupante do cargo, pois este senhor adotava um comportamento bonachão, boa praça, mas, na prática, nos ouvia com o ouvido esquerdo e, nem bem deixávamos a sua sala, o que disséramos já havia abandonado a sua mente através do ouvido direito.
Ele também durou pouco, talvez pelo fato de que a ACERP também atravessou mudanças em sua direção, e um novo presidente assumiu. Mas a realidade da Cinemateca só veio a piorar, uma vez que, em 2019, a União destinou somente metade dos recursos previstos no contrato de gestão com a OS, que afirma ter completado a metade faltante com recursos próprios, apesar de haver um orçamento específico destinado a Cinemateca na Secretaria do Audiovisual. Por essa época, já se anunciava um ciclo com filmes militares, entre estes, documentários sobre a campanha da FEB na Itália.
Em um ano e oito meses, assumia a Cinemateca Brasileira o 3º superintendente, sendo que, no mesmo período, o Ministério de Cultura foi extinto e a recém criada Secretaria Especial de Cultura foi morar em uma dependência do Ministério da Cidadania, onde permaneceu por alguns meses antes de ser despejada e alojada no Ministério do Turismo. Vale ressaltar que, em cerca de 20 meses de governo Bolsonaro, foram trocados cinco Secretários Especiais de Cultura.
Logo que o 3º Superintendente Geral assumiu, o Grupo de Trabalho da APACI solicitou uma reunião de urgência, para a qual formou uma comissão de integrantes de diversas entidades cinematográficas e redigiu um documento assinado por associações e sindicatos de todo o país, bem como por personalidades do mundo cinematográfico. A conversa foi cordial, mas o documento era forte, chamava a atenção para o fato de que a Cinemateca, com seu acervo, seus equipamentos e sua sede, era um patrimônio de toda sociedade, não de uma OS ou da União. A reivindicação era a formação imediata de uma comissão que retomasse o diálogo entre os que geriam a instituição e a comunidade cinematográfica. Acreditávamos que, independentemente das dificuldades enfrentadas, poderíamos somar esforços e colaborar para superá-las. O próximo passo seria inevitavelmente a retomada do Conselho Consultivo. Mas isso não parecia ser um desejo da ACERP, muito menos da Secretaria do Audiovisual. E, embora cobrássemos quase que semanalmente uma resposta a este documento, ela jamais veio.
O chamado “Contrato Mãe”, da ACERP, que versava sobre a TV Escola e outros projetos e que foi assinado com o MEC em 2015, se encerrou no final de 2019, não sendo renovado pelo Ministro de então (o governo Bolsonaro já teve três ministros da educação). Ocorre que o contrato para a gestão da Cinemateca era um mero aditivo (o sexto) do “Contrato Mãe”, para que se tenha uma ideia da importância que os sucessivos governos dão a esta instituição. E, embora a ACERP entenda que, uma vez que o chamado para a OS, feito pela União, previsse uma duração de três anos, contados a partir de 2018, e, portanto, até 2021, o governo afirma que, uma vez encerrado o contrato principal, os compromissos nele previstos igualmente se encerraram.
As razões para a não renovação do “Contrato Mãe” estão intimamente relacionadas com a divisão ocorrida no bolsonarismo, quando Jair deixa o PSL, partido que o levou à presidência e se aproxima ainda mais do “núcleo duro”, dito “olavista”.[3]
Se desde meados de 2019 a União já não destinava qualquer recurso a Cinemateca Brasileira, a situação de abandono chegou ao paroxismo em 2020. Sem o pagamento dos funcionários cuja expertise é resultado de anos de investimento do Estado; sem a quitação das contas de luz, o que coloca em severo risco as milhares de matrizes armazenadas nas câmaras climatizadas; sem a renovação do contrato de vigilância, o que aumenta o risco de roubo ou depredação; e sem uma brigada anti-incêndio; o que se prenuncia é um incêndio nos moldes do ocorrido em 2016 ou ainda pior, o sinistro que reduziu a cinzas o Museu Nacional, em 2018.
Vale lembrar que ainda neste primeiro semestre, Bolsonaro destituiu Regina Duarte da Secretaria Especial de Cultura e lhe prometeu a direção da Cinemateca Brasileira (cargo inexistente no Estatuto da OS), função para a qual a atriz não demonstrou qualquer aptidão quando na Secretaria Especial de Cultura.[4]
Diante de uma situação como esta, dentro do Grupo de Trabalho, chegamos à conclusão de que abaixo-assinados e petições já haviam atingido o limite do que se poderia esperar desse tipo de iniciativa. Era preciso que fizéssemos uma ação de maior impacto e visibilidade social.[5]
A inspiração veio da torcida Gaviões da Fiel, que havia feito uma ousada passeata pela Av. Paulista, clamando por democracia. Assim, planejamos um ato presencial diante da Cinemateca, obedecendo a todas as orientações de segurança frente à pandemia: uso obrigatório de máscaras e distância segura entre os participantes.
Ao SOS Cinemateca se somaram os funcionários da Cinemateca, em greve por estarem há 3 meses sem receber, e que adotaram também o SOS Cinemateca como nome de seu movimento; o Cinemateca Acesa, formado por jovens cineastas e pesquisadores de imagens de arquivo; a Frente Ampla Cinemateca Viva, formada por várias entidades de moradores e frequentadores da instituição; e a Mariana em Movimento, também de moradores da região.
O ato SOS Cinemateca ocorreu na manhã do dia 4 de junho, com cerca de 150 pessoas, em função do medo justificado da pandemia, mas graças a um amplo trabalho feito por divulgadoras solidárias ao movimento, houve uma cobertura significativa dos maiores meios de comunicação. A todos eles foi distribuído o manifesto “Cinemateca – Patrimônio da Sociedade”, assinado por 42 entidades de todo o país e 39 entidades internacionais, entre elas, a Cinemateca Francesa, a Cinemateca de Bolonha, o Festival de Cannes, o Festival de Berlim, a Cinemateca Mexicana e a FIAF, que reúne 152 cinematecas de todo o mundo.
………..
………..
Como resultado dessa e de outras mobilizações que se seguiram, há dois meses o assunto Cinemateca Brasileira ocupa os principais espaços midiáticos do país como jamais ocorreu em sua história. Com reportagens em TVs, jornais, “lives” e entrevistas dos mais importantes cineastas e gestores culturais nas redes sociais, milhares de pessoas passaram a compreender o que é uma cinemateca e qual é a sua importância para um país.
Surgiram ações de solidariedade de vários setores, como a do grupo de Vereadores da Câmara Municipal de São Paulo, do qual se destacam Gilberto Natalini, Celso Giannazi e Eliseu Gabriel. Houve uma audiência pública e, como resultado, uma “vaquinha” formada a partir de emendas parlamentares, a formação de uma frente parlamentar suprapartidária e ainda, a promessa da prefeitura e da SPCINE de que destinarão recursos emergenciais para afastar a Cinemateca da situação de risco em que se encontra, o que envolve equacionar, pelo menos temporariamente, a situação dos funcionários. Mas até mesmo para que isso ocorra a União deve manifestar-se favoravelmente, caso contrário, tais aportes serão inviabilizados.
Na Câmara Federal, a Comissão de Cultura, liderada pela Deputada Jandira Feghali, com os deputados Paulo Teixeira e Orlando Silva, promoveu, na última quinta-feira, uma sessão de trabalho com profissionais da área, advogados e representantes do Ministério do Turismo e da Secretaria Especial de Cultura, que promete ações da maior importância nas próximas semanas.
Para completar o quadro, o MPF está movendo uma ação contra a União em que propõe um contrato de curta duração com a ACERP para que, durante esse período, possam ser pensadas, discutidas e negociadas com a sociedade as opções para uma nova realidade institucional da Cinemateca, chamando a atenção para a necessidade premente de reativar o Conselho Consultivo de acordo com o documento de 1984, já citado.
O governo tenta se adiantar à ação e afirma estar tomando uma série de medidas que resolverão rapidamente as questões emergenciais. Porém, não equaciona a situação dos funcionários, sem os quais não haverá uma Cinemateca em condições de desenvolver as suas funções a contento, e, ao mesmo tempo, procura retirar valor jurídico das salvaguardas, afastando a possibilidade da reinstalação do Conselho Consultivo. Porém, juristas consultados são unânimes em afirmar que o documento de 1984 segue válido, pois se trata de uma doação ao Estado sob condições estabelecidas em documento.
Se sempre podemos enxergar as consequências de crises ou fatos negativos por diferentes pontos de vista, não há dúvida que a opinião pública e parcela importante da sociedade brasileira estão voltadas para o que vai ocorrer na Cinemateca Brasileira.
Hoje, muitos adquiriram a consciência de que a Cinemateca é muito mais do que um depósito de “filmes velhos”. O cinema brasileiro e seus ciclos mais importantes fazem parte do acervo que, no entanto, está longe de ser composto somente por filmes. Em seus milhares de rolos, estão os mais variados registros sobre o nosso país, desde o final do século XIX até os dias de hoje — filmagens feitas por amadores, reportagens, documentários, todos os filmes do DIP da era do Estado Novo, todo o acervo da TV Tupi, toda a coleção do lendário Canal 100 e ainda cerca de um milhão de documentos, fotos, roteiros, reflexões e textos de nossos mais importantes cineastas e estudiosos.
Como disse Cacá Diegues, a Cinemateca é um museu do olhar. Um museu do nosso olhar, do nosso imaginário e, portanto, ela é essencial para sabermos quem fomos e quem somos, pois, sem tal conhecimento, nada seremos.
….
…..
Notas:
[1] Escritura de Extinção da Fundação Cinemateca Brasileira – 14/02/1984
[2] Grupo composto na atualidade pelos cineastas Francisco C. Martins, Marcelo Machado, Helena Tassara e Rachel Monteiro, acrescido da pesquisadora Eloá Chouzal, da Cinemateca Acesa.
[3] Ideias que que se originam de Olavo de Carvalho, tido como “guru” dos setores mais radicais do governo — negacionistas, terraplanistas, entre outras orientações ideológicas de extrema-direita.
[4] Na semana que passou, Mario Frias, o novo Secretário Especial de Cultura, prometeu o cargo à atriz “mesmo que tenha que abrir uma secretaria”.
[5] Por iniciativa de Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca, foi feita a carta “Cinemateca Pede Socorro”, que atingiu mais de 15.000 assinaturas, entre elas, de cineastas do Brasil e do Exterior.
….
…..