por Willian Silveira
Durante anos um homem povoa um espaço com imagens, províncias, reinos, montanhas, baías, ilhas, peixes, quartos, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer, ele descobre que o paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto.
Jorge Luis Borges
A cada grande filme, o cinema adiciona um novo capítulo na história de uma arte relativamente recente. Neste percurso, em meio a tantos nomes que contribuíram para a linguagem da imagem em movimento, Stanley Kubrick (1928 – 1999) desponta como o merecedor de uma seção especial. Nascido em Nova York, em 1928, o filho de uma família de imigrantes judeus é o responsável por uma filmografia essencial no que diz respeito à especulação das possibilidades da narrativa visual e das características da natureza humana – no caso, o pendular movimento entre medo e desejo. Em três curta-metragens e treze longas, com destaque para 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971), Kubrick permitiu que, sentados frente ao ecrã, esperássemos do cinema nada menos do que o extraordinário.
Durante cinco décadas de atividade, o ex-repórter fotográfico da revista americana Look consolidou-se não apenas como um dos cineastas mais importantes da história do cinema, mas também como figura reconhecida pela reclusão e pelo temperamento. Independente da complexidade das filmagens que estavam por vir – e no caso de Kubrick, a simplicidade o desinteressava -, o diretor jamais saía de casa. Era ali, no subúrbio de Londres, que preparava cada projeto nos mínimos detalhes, da pré-produção à distribuição. O domínio de todas as etapas do processo lhe traria a fama de gênio criador misantropo, rótulo romântico que pouco se relaciona com Stanley, um homem cujo perfil se enquadra melhor na figura de um trabalhador obcecado pela criação. A devoção aos detalhes, como na reconstituição de Manhattan em estúdio, para rodar a trama onírica de De Olhos Bem Fechados (1999), na precisão cenográfica inspirada em território africano, para certas tomadas de 2001, ou ainda no tempo despendido na concepção de uma lente especial para captar a luz da iluminação por velas, na ambientação de Barry Lyndon (1975), resultou em breves e esparsas aparições públicas. Por isso, o retorno às livrarias brasileiras da obra definitiva sobre o diretor e seus filmes deve ser festejado. De autoria de Michel Ciment, um dos intelectuais de maior destaque na crítica de cinema francesa, Kubrick volta a circular pelos esforços da editora Ubu, em uma edição digna da importância do diretor.
Publicado em forma de dossiê, o livro conta com acréscimos e adendos à versão original, lançada em 1980, atualizada à medida do andamento da carreira do diretor. O belíssimo prefácio de Martin Scorsese antecipa um trabalho de raro fôlego em meio às publicações da área. A partir do texto inspirado do diretor de Taxi Driver e Touro Indomável, Ciment assume a palavra para nos apresentar uma biografia, que, mesmo longe de ser a mais completa, funciona ao propósito de nos entregar de forma direta, desprovida de vaidades, os aspectos fundamentais da vida e da obra de Kubrick. A introdução inaugura um itinerário que nos levará ao cerne intelectual do cineasta. Para um objetivo tão intricado, o autor conta com três preciosas entrevistas realizadas com Stanley à época dos lançamentos de Laranja Mecânica, Barry Lyndon e O Iluminado. Será diante de um realizador pouco afeito a comentar sobre as próprias obras que vislumbraremos o ponto em que homem e obra se encontram.
Se podemos considerar as entrevistas como o coração do livro de Ciment, ainda há pelo menos três elementos a compor o arsenal de informações com o qual nos deparamos. Em um primeiro momento, Michel Ciment traça um panorama das obras de Kubrick, identificando pontos simbólicos, estratagemas narrativos e preferências técnicas, expondo 20 tópicos agrupados pelo título de “Entre razão e paixão”, um conjunto fundamental para pensar a simetria criativa do diretor. A seguir, um ensaio de alento teórico toma conta do livro, ao aproximar a filmografia de Kubrick à literatura fantástica, procurando pensar os caminhos narrativos de Stanley como investidas em direção ao rompimento com o real-naturalismo, corrente cara ao métier cinematográfico. Nascido para matar e De olhos bem fechados surgem, ainda, com destaques próprios, analisados à parte. O tríptico de Ciment se consolida somando-se à análise e à crítica uma série de depoimentos com os colaboradores mais frequentes do diretor. Estão ali entrevistas fundamentais, como a dos atores Malcolm McDowell, Jack Nicholson, e do roteirista Michael Herr, além de depoimentos colhidos de vários departamentos, de figurinistas a diretores de publicidade.
O farto material de Kubrick encontra unidade na amarração, por vezes simbólica, dos textos de Ciment. É preciso dizer que se sobram virtudes no livro, em alguns casos é impossível não notar o esforço, que no caso da crítica francesa sempre vem acompanhada de uma verborragia clássica, em tentar conciliar símbolos e definir arestas que não se adequam precisamente na leitura proposta desde o início. Se o interesse de Kubrick por Freud, em especial por O Mal-estar na Civilização (1930), é uma informação útil, ela parece ser o vapor que ofusca a visão de Ciment quando as respostas são menos simples e acessíveis.
No centro das análises de Michel Ciment, para além da teoria geral que tenta definir o realizador de uma série de clássicos distintos entre si, Kubrick é mais do que um livro necessário para entender a personalidade e a obra de um realizador. Na exploração dos conceitos, a publicação é um documento imprescindível na necessidade de se pensar o cinema como arte.
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