por Rafael Dornellas
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Um filme de lugar nenhum, único, celebrado — imortal — e então, quatro décadas de errância […] E alguns lampejos milagrosos, nascidos tanto da chance quanto da necessidade […] a necessidade de manter-se em pé apesar das adversidades e ligar novamente a máquina, sozinho, mas ainda fascinado pelo muro que nunca retorna mais do que um eco de resposta.
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Maxime Renaudin
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Um GTO amarelo avança solitário por uma estrada poeirenta no oeste norte-americano e estaciona em um pequeno posto de gasolina. Um outro carro (Chevrolet 55) também se aproxima. Um pacto é selado, uma corrida eterna. Kris Kristofferson canta Me and Bobby McGee no rádio. O som do vento preenche os amplos espaços. James Taylor dirige calado ao lado de Dennis Wilson e Laurie Bird. Seus olhares são compenetrados e vazios ao mesmo tempo, tragados pela experiência das corridas clandestinas. Uma cruzada maior, impossível, é pontuada constantemente por disputas curtas. As corridas são também um testemunho — entre aqueles seres estranhos, seres lacônicos de um outro mundo — das extintas perspectivas no horizonte.
Em Corrida sem fim (Two-Lane Blacktop, 1971) uma situação é esticada para muito além de suas funções narrativas: seus personagens falam pouco, deambulam, dormem, comem, consertam o motor do carro… A sensação de passagem do tempo sobre eles é dilatada, suspensa, e contrasta diretamente com a velocidade das corridas e seu perigo iminente. Suas principais sequências suscitam uma readaptação do olhar quando o interesse passa a recair sobre as sobras dos planos, sobre as suas bordas, sobre o silêncio dos personagens agregado ao som dos motores. O alongamento de seus planos torna-se também uma distensão da experiência temporal: a câmera filma um carro passando pela estrada e lá permanece, no rastro deixado pelo automóvel onde agora apenas um vazio se faz presente. A rarefação é trabalhada plano a plano e pensada junto de sua arquitetura formal. Ela produz a manifestação das adversidades, altera a relação com o espectador e se torna um princípio antiteleológico.
Apesar de ponto alto na filmografia de Hellman, Corrida sem fim não é um êxito solitário. Seu requinte enquanto cineasta perpassa, substancialmente, pela postura perante a cada novo projeto: com rigor e leveza equilibrados, demonstrando no resultado dos filmes uma liberdade incalculável, filmando um plano com total adesão à experiência e profunda fidelidade ao aparato: como se fosse a última vez.
De A Besta da Caverna Assombrada (Beast from Haunted Cave, 1959) à Caminho para o nada (Road to Nowhere, 2010) foram 12 longas metragens, trabalhos documentais, curtas-metragens e episódios encomendados. Quatro deles foram realizados em pares (mesmo orçamento, mesma equipe e mesma locação para dois filmes rodados simultaneamente): Back Door to Hell e Flight to Fury em 1964, A vingança de um pistoleiro (Ride in the Whirlwind) e Disparo para Matar (The Shooting) em 1966. Dois de seus filmes tiveram produção europeia: A Volta do Pistoleiro (Amore, piombo e furore, 1978) e Iguana – A Fera do Mar (Iguana, 1988). Diversos deles foram produções de baixo orçamento realizadas para Roger Corman: A Besta da Caverna Assombrada, Sombras do Terror (The Terror, 1963, dividindo a direção com Corman, Jack Nicholson e Francis Ford Coppola), Galo de briga (Cockfighter, 1974), além dos dois dípticos já citados. Noite do Silêncio (Silent Night, Deadly Night 3: Better Watch Out!, 1989) foi realizado para o mercado do vídeo, Stanley’s Girlfriend compôs o filme episódico Trapped Ashes (2006) e apenas um filme foi concebido em um grande estúdio (Corrida sem fim).
Das lacunas entre os projetos, sobra no referencial de Hellman aquilo que intersecciona Jacques Tourneur, Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni, Stan Brakhage, Sergio Sollima, John Carpenter e David Lynch. Desse elo perdido, dessa matéria caudalosa e bruta, esculpem-se tesouros preciosos. Pontes e caminhos possíveis para cineastas que ocupariam, em um futuro próximo, lugar semelhante no início de suas carreiras. A recusa não-reconciliada à conclusão das trajetórias revela conquistas formais muito maiores do que a sua própria figura de maverick diletante já poderia demonstrar. Seus empenhos exprimem, sobretudo, a preciosidade de cada filme como uma nova diligência, um novo empreendimento a ser erguido no deserto de Utah, nas matas das Filipinas, na América profunda ou em uma ilha esquecida. Aproximar-se de seus filmes é também integrar-se a um ponto de contato entre a produção industrial e suas alternativas, entre o classicismo e suas reformulações, entre o narrativo e o experimental.
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Para mim o espaço não é neutro […] Sou um pintor de paisagens, mas não quero mostrar uma paisagem apenas por sua beleza, ou para realçar o seu valor.
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Monte Hellman
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Hellman se embrenhou nas matas das Filipinas e inseriu, em Back Door to Hell e Flight to Fury, suas personagens em um espaço delimitado comprimindo algo da magnitude da guerra em pequenas missões de sobrevivência. Na dupla de filmes seguintes, A vingança de um pistoleiro e Disparo para Matar (situados no velho oeste), a restrição geográfica serviu para expandir suas perspectivas. Se A vingança de um pistoleiro, à primeira vista, possui uma ambientação mais acessível (núcleos bem definidos de personagens, geografia delimitada e, sobretudo, um caminho a ser percorrido), Disparo para matar embaralha o referencial do espectador logo de início (há quatro personagens centrais e um mistério: Millie Perkins é a mãe da criança que foi morta? O irmão de Warren Oates é o assassino em fuga? O que encontrarão no fim da viagem?). O ambiente se torna mais inóspito e mortal, agindo sobre os personagens, os absorvendo de modo implacável como se penetrassem em território totalmente desconhecido.
As trajetórias — movimentos penosos levados ao estado de entropia — decorrem também de uma incompatibilidade entre homem e espaço resultando, ao final, na absorção do homem que indicará o seu novo destino. As figura de Wes (Jack Nicholson) em A vingança de um pistoleiro e de Gashade (Oates) em Disparo para matar desde o início são representadas como corpos estranhos no ambiente. O fogo cruzado no qual Wes se encontra é tão despropositado quanto a trilha inóspita encabeçada por Perkins. A imensidão da cordilheira rochosa sobre o corpo de Nicholson o impede de seguir e o obriga a assumir a contravenção da fuga. A imensidão do deserto sobre os exaustos cavaleiros guiados por Perkins os mantém em movimento enquanto suga suas energias e seu discernimento. Nos dois casos os ambientes são representados como uma massa mineral opaca, incontornável.
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A sequência final de Disparo para matar revela o mistério daquela viagem e a razão de estarem ali: planos lentíssimos expõe as nuances da imagem — sua imperfeição (o batimento da película, seus grãos, o borrão dos corpos) — e externalizam a fadiga dos personagens (Jack Nicholson cambaleante na imagem que encerra o filme): o que está em jogo não é necessariamente a resolução do mistério mas sua representação (e o efeito desse acúmulo dramático nos personagens ao término da jornada). O final de A vingança de um pistoleiro, porém, impressiona ainda mais por sua sofisticação subjacente à superfície. Wes (Nicholson) é o único que sobra com vida no grupo de vaqueiros. A turba revoltada dos moradores da cidade funciona agora como massa negativa do filme. Vern (Cameron Mitchell) é atingido e pede para o companheiro abandoná-lo. Entre a vida e a morte ele atira contra o grupo possibilitando a fuga de Wes. Nicholson cavalgando no pôr do sol já não carrega mais aquela simplicidade ingênua do jovem cowboy. Ele é agora um cavaleiro solitário, figura mítica do western que passa pelos locais cortando-os, alterando o seu estado inicial, carregando um trauma, uma tragédia pessoal nem sempre revelada. Em cima do cavalo, imponente, guia o animal para longe. A inocência perdida revela um novo Wes, progressivamente imerso naquele terreno seco, absorvido pelo meio e expelido como símbolo. No último plano, permanecemos com o rastro de terra deixado no caminho. Hellman vislumbra a transformação e, arrematando o seu compêndio, filma a poeira se erguendo no vento e retorna à mais primitiva memória do cinema.
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Estamos lidando, então, com uma obra que é revelatória, uma “quebra”, cuja substância e função se fundem na radicalização sintética de suas metáforas.
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Annette Michelson
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Eis que o seu único filme realizado em um grande estúdio foi também aquele que melhor radicalizou as próprias estruturas, traduzindo muito bem um sentimento amargo de desalento, uma revolta incontida. Corrida sem fim, realizado na esteira do sucesso de Sem destino (Easy Rider, 1969, Dennis Hopper) acabou por se tornar o negativo do filme de Hopper, sua contraparte sensível. Os rostos impassíveis de James Taylor e Dennis Wilson, sua identidade subtraída e enunciação lacônica nada tem a ver com Peter Fonda e Dennis Hopper no filme de 69. Muito menos a sua temporalidade: Corrida sem fim é a verdadeira sabotagem interna, a verdadeira exposição de um mal-estar que não é catártico mas sufocado: é também, dentro da indústria, um dos filmes mais políticos de seu tempo.
Nele, o road movie padrão tem suas progressões e fundamentos subvertidos. Os planos parecem desfazer como uma malha fina esticada ao limite da ruptura mas que antes de romper se deforma, aumentando o tamanho e readaptando os componentes. A corrida do título é ilusória: os oponentes delineiam o trajeto visando cruzar o país; as corridas clandestinas curtas pontuam uma corrida maior esticada ao infinito, mas o efeito no espectador (e nos personagens) é de arrefecimento. A ilusão da corrida principal é, para os personagens, prolongada pela necessidade de manter-se em movimento ininterrupto, utilizando desse próprio movimento para o esvaziamento total das percepções cognitivas: vive-se um constante não-lugar e em um estado permanente de não-pertencimento (pequenas cidades, pequenos motéis, estradas não oficiais, diners ermos). Cria-se uma contradição, um paradoxo heraclítico sob o qual o filme desenvolve seu estilo: quanto maior a busca das personagens por movimento e velocidade, maior sua desaceleração — mais rarefeita sua percepção temporal.
O motorista e o mecânico são verdadeiros freaks apartados de convívios sociais, seres abatidos em uma espécie de transe. Vivem sob a enfermidade obcecada, em estado de letargia. Subsistem no carro e pelo carro, incapazes de cumprir outro papel social se retirados de seu ofício. A garota que surge do nada e perturba aquele universo vai embora da mesma maneira que chegou (como andarilha sem rumo recém despertada do verão do amor). Daí a relevância da longa sequência na cidade adormecida em uma manhã chuvosa (já na parte final do filme) com os personagens esgotados e dispersos. Enquanto Oates dorme nas ferragens do carro, Taylor parte como uma assombração vagando pela cidade, procurando a garota — apesar de instantes de ternura entre ambos, não há qualquer possibilidade de algo que não seja mitigado pelo torpor mecanizado de seus costumes.
Da contradição ao questionamento (descrenças impressas em sua forma, em sua própria imagem unindo aproximação e afastamento, velocidade e suspensão) Hellman insere planos que contrariam nossa percepção imediata e nos desloca ao intangível. Não bastaria contorcer as convenções e apropriar-se da narrativa suprimindo sua catarse, mas também apreender sistematicamente suas convenções para alcançar uma nova experiência: um plano de dentro do carro capta a deformação das figuras humanas através do vidro molhado pela chuva; a estrada filmada à noite revela-se disforme, trêmula. Adia-se o corte ao máximo, dilatando, congelando o plano, queimando a película e revelando a luz do projetor: momentos transitórios em que a narrativa é interrompida por imagens primárias, como pesadelos derivados da selvageria inerente aos personagens.
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A cena final de Corrida sem Fim nada mais é do que a representação circunscrita, o encerramento em si das acepções concebidas no filme — a síntese derradeira da velocidade imbuída de rarefação, o paradoxo do qual falávamos. É a obrigação de manter-se em movimento constante. É a derrota da narrativa, a perda do referencial frente a impossibilidade de terminar o trajeto — manter-se em movimento é também manter-se alienado, catatônico, acrítico. Tudo é interrompido violentamente como fenômeno cinematográfico, como solução viável. Um instante que funciona como deslocamento espaço-temporal do restante. Um registro ainda mais insólito, denotando sua estrutura como uma mônada preeminente, um paradigma autorreflexivo que violentamente nos afasta, isolando a sua conclusão como projeção figurativa. Os silêncios são ainda mais acentuados; os tempos dos planos mais dilatados. Agora, no banco de trás do Chevrolet 55, acompanhamos a corrida através da nuca de James Taylor, através da imagem vacilante que desacelera até congelar e queimar. O problema de representação da corrida — que inverteria o trajeto dos pioneiros —, assim como a dúvida perante a imagem concebida, traduz em seu desalento uma condição de fragmentação absoluta. A corrida, problema formal incontornável, se torna uma expressão simbólica em estado de ebulição e é violentamente desacelerada: fabricação possível, e única, de seu fim.
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O que aconteceu é que acabou a minha sorte. Mas, quem sabe? Talvez hoje. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então, se a sorte me sorrir, estou preparado.
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Ernest Hemingway
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Galo de Briga (Cockfighter, 1974) mantém as deambulações pela América profunda de Corrida sem fim mas reduz sua escala. A trama do filme não poderia ser mais simples. Frank (Warren Oates) faz voto de silêncio (após perder rinhas no passado recente e atingir o fundo do poço) com o objetivo de colocar sua vida de volta aos trilhos: seu desejo é ganhar a medalha de criador de galos do ano no campeonato local. Ele retorna à sua terra, reencontra o amor em Mary (Patricia Pearcy), firma parceria com Omar (Richard B. Shull) e passa a treinar galos para que sejam os melhores e mais agressivos competidores.
Frank também é um personagem obcecado, um antissocial à margem, homem em constante movimento no ofício de criar galos de briga. As rinhas marcam o caminho do protagonista e Hellman limita-se a observar as situações na distância exata. A evidência das imagens é desenvolvida a partir de sua frontalidade violenta. Se há, de fato, estilização em algumas sequências (principalmente no flashback em que a luta é filmada em câmera lenta), ela é logo abandonada e a representação das rinhas passa a registrar uma brutalidade do presente. Frank enxerga isso tudo com a mesma franqueza simplória de seu ambiente. Ele não questiona o seu ofício, que é dado e aceito como fato consumado, como o registro mais franco possível que nos é apresentado pelo cineasta: o que é, é.
A rinha final é estruturada a ponto de choque, sugerindo uma catarse possível mas negando-a: os galos lutam até definharem; o oponente de Frank retira o seu galo praticamente morto do ringue após o espetáculo ir da mais instigante batalha para um tétrico banho de sangue. A sequência é mais violenta do que as anteriores mas, ao invés do foco apenas na definição imagética dos ferimentos (no sangue e na morte dos animais), Hellman a implode inserindo planos próximos e breves, nada menos do que borrões abstratos, pulsões expressionistas — o choque dos cortes acelerados alternam entre a reação do público, a reação dos criadores e os movimentos dos animais no ringue — invertendo a lógica catártica do que é encenado, incorporando a violência da rinha na montagem do filme.
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O galo oponente, ao cabo, parece condenado. Frank não se abala. Ele trata dos seus animais com a mesma naturalidade que os degola — como um mecânico gira parafusos no motor de um carro ou um construtor ergue um muro tijolo a tijolo. Mary fica enojada pela rinha e revoltada pela passividade do companheiro. Para Frank, não há grandes lições assimiladas no fim. Sua atitude de arrancar a cabeça do galo e entregá-la à mulher atesta mais ao gesto do que à crise sentimental; seu sorriso tem maior relação com a retomada das rédeas de sua vida do que com os contratempos do relacionamento amoroso. Ele deve seguir, quixotesco, fazendo o que sabe em seu pequeno mundo provinciano, simples (“She loves me, Omar”), metódico, constante.
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Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa; jamais a diz ou talvez a diga infinitamente não a entendemos, ou a entendemos mas é intraduzível como uma música…
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Jorge Luis Borges
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Passariam quatro anos até seu próximo filme (A Volta do Pistoleiro, 1978) e mais dez até o seguinte (Iguana, 1988). Filmes por muito injustamente esquecidos. Filmes particulares, únicos, diferente do que havia realizado nas décadas anteriores. Filmes de liberdades surpreendentes, que delimitam muito bem um espaço (um microcosmo), um referencial, e a partir dele se expandem refletindo o novo mundo elaborado de suas regras internas.
Um homem chega a cavalo em uma pequena vila no velho oeste. Clayton Drumm (Fabio Testi), condenado à morte, é colocado em liberdade com a missão de assassinar um morador local (Matthew [Warren Oates]) que se recusou a entregar suas terras para a companhia ferroviária. Drumm se hospeda na propriedade de Matthew e se apaixona por sua esposa Catherine (Jenny Agutter). A paixão é correspondida. É formado um triângulo amoroso e armado o cenário ideal para duelos, mortes, fugas e também para o entendimento da ética entre os protagonistas. O seu pequeno cenário bem estabelecido emprega o western como arquétipo para dele singularizar a experiência, elevando o seu efeito rumo aos novos aprendizados.
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Hellman envolve aquelas três figuras no espaço e se detém por um longo período sobre suas interações. Estejam eles conversando, cortando madeira, jantando ou cantando em volta da mesa, sua composição cênica quase sempre está subordinada à tensão gerada por Drumm no âmbito doméstico: todos parecem sofrer, em silêncio, o entendimento daquela situação e seus obstáculos: seja o amor impossível ou a missão assassina. A encenação, em seu rigor, se abrange aos parâmetros de composição musical. Os seus tempos, os cortes, os reenquadramentos — tudo funciona com a câmera centralizando o núcleo dramático, fazendo parte de uma espécie de coreografia cênica, arrematando o que se vê, o que se ouve, o que é sugerido pelos personagens e o seu efeito no todo.
O momento da confraternização em família é exemplar. Enquanto o grupo canta em suposta harmonia, Catherine e Drumm trocam olhares. Hellman intercala os rostos de Catherine, de Drumm e de Matthew, resumindo tudo o que está em jogo. A sequência — e também diversas outras do filme —, em sua precisão milimétrica, atinge o parâmetro dos grandes, dos que elevaram a compreensão do enquadramento em cinemascope para sua capacidade máxima de síntese, congregando o poder do corte à profundidade fluente do plano sequência. Como em O franco atirador (The Deer Hunter, 1978, Michael Cimino), quando o grupo de amigos se reúne pela última vez no bar antes do evento traumático, antes de embarcarem ao Vietnã: nada precisa ser dito, tudo está contido na cena, nos cortes, na música, na duração dos planos. O trauma em A volta do pistoleiro retornará sempre àquela residência de um modo que o seu abandono, sua destruição, talvez seja a única opção viável de recomeço: algo que o título original em italiano (Amore, piombo e furore) conseguiu traduzir tão bem.
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Em certos sentidos Iguana encontra-se localizado na filmografia de Hellman de uma maneira semelhante ao filme anterior: peças isoladas produzidas na Europa que encerram uma miríade de possibilidades e investigações em torno de gêneros bem cimentados. Se antes o western era objeto central, em Iguana a aventura, o filme de pirata, se reduz ao confinamento, ao exílio — Oberlus (Everett McGill) se vinga dos maus tratos sofridos pelos companheiros piratas em seu antigo navio e declara guerra à humanidade, implementando em uma pequena ilha as suas próprias leis.
Os belos planos expõem justamente a carência de sentido, a contradição entre a beleza de um local e o seu vazio, o isolamento silencioso perante o mundo. O rosto disforme de Oberlus é refletido nos desfiladeiros rochosos da ilha — seu oceano e sua geografia acidentada só atestam um caráter fronteiriço impenetrável. A nova comunidade comandada por Oberlus exprime da maneira mais bárbara, através de sua evidência ontológica, a realidade do abandono. O encadeamento bruto de cenas expõe ainda mais sua crueldade: possibilidades harmoniosas de montagem são deslocadas, os planos gerais tornam-se um registro bruto da aspereza do ambiente e de seu distanciamento.
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Não há mais o laconismo dos personagens de Corrida sem fim e Galo de briga ou a metamorfose intensa entre o ser e o meio no deserto labiríntico de Disparo para matar. Não há também o lirismo arrebatador de A volta do pistoleiro. Há apenas uma revolta incontida — o niilismo radical, a prisão que impõe sobre os seres um entendimento de mundo esvaziado. O ato final de Oberlus não remete exclusivamente ao reflexo de sua patologia no filho recém-nascido, mas todos os atos perpetrados por ele ao longo daquela experiência de confinamento na ilha: o próprio filho (fruto da violência sexual), o sequestro, a escravidão, a decapitação de um marinheiro, a mutilação dos membros de outro — a negação da vida frente à percepção espiritual de terra arrasada.
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No cinema, é preciso colocar as coisas em ordem. Ou seja, reter, fixar, desimpedir, privilegiar certos filmes. Em detrimento de outros. Para marcar a importância deles. Para que saibamos nós mesmos, aquilo que é mais difícil do que parece, o que somos, e o que amamos. O resto é caso de compromisso.
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Louis Skorecki
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Depois de Iguana Hellman seguiria errante, realizando trabalhos em escalas ainda menores como Noite do Silêncio em 1989. Caminho para o nada, seu último filme (produzido em 2010 após um longo hiato), foi também o seu único projeto inteiramente pessoal. Mais uma das diversas reformulações de Um corpo que cai (Vertigo, 1958, Alfred Hitchcock), assumindo de vez a investigação sobre imagem forjada no seio de Hollywood — o cineasta e protagonista Mitchell Haven (Tygh Runyan) consegue um acordo para filmar a adaptação de um caso real de traição e morte; sua aposta na atriz inexperiente Laurel Graham (Shannyn Sossamon) motiva também uma nova obsessão. Assim como Kim Novak em Um corpo que cai, encarnando em algum nível Judy Barton, Madeleine Elster e Carlotta Valdes, os papéis de Sossamon são, também, projeções da imagem ideal na mente do protagonista, conjugando Laurel Graham e Velma Duran.
Se há um embaralhamento proposital das tramas, ele não ocorre como um enigma a ser solucionado, mas sim como um mergulho profundo na investigação das possibilidades do cinema. Em algumas sequências somos expostos ao contraste entre o momento da filmagem (em uma bela encenação, cuidadosamente registrada nas sombras, misteriosa) e aquilo que de fato se revelou no material bruto da filmagem (o seu exato oposto). Em outros momentos somos desconcertados: um avião mergulha no lago ao fundo do quadro; uma imagem captada por Haven em sua câmera digital revela uma cordilheira arborizada tomada por uma névoa branca, pouco definida, uma projeção reproduzida na câmera digital e introjetada na narrativa. Em todo o filme persevera a sensação de suspeita agregada à sedução de desvendar as camadas e mistérios da imagem captada. Daí emana sua atmosfera, seu onirismo denso resgatado do peso da filmagem (e da indústria) incorporada na própria imagem produzida por Haven — imagem vacilante e pouco confiável, receptáculo da impregnação mútua entre realidade e ficção, concebida de uma escopofilia pulsante e materializada na figura da atriz.
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Não há como dobrar-se. Não há como fazer concessões. Há de fato, no fim de Caminho para o nada, um assassinato que inviabiliza o retorno à normalidade. A câmera, confundida com uma arma, produz o movimento anticlimático derradeiro e o diretor é preso. Quisera o destino que o último plano exibido em um longa-metragem de Hellman fosse um mergulho na imagem perdida. Após o seu abandono — após a rarefação e a destruição da película, após a tentativa de recomeço em um novo mundo e a experiência com outras mídias — um retorno breve ao cinema: uma nova esperança onde o alcance plausível é o eterno mergulho, a aproximação dirigida no plano congelado transformado em fotografia. Como acreditavam no passado, no tempo dos daguerreótipos, captar na imagem um instante do real aprisionando a alma do modelo, encenando a sua morte em cada nova revelação.
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Freedom’s just another word for nothin’ left to lose
Nothin’, it ain’t nothin’ honey, if it ain’t free
And feelin’ good was easy, Lord, when he sang the blues
You know feelin’ good was good enough for me
Good enough for me and my Bobby McGee
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Kris Kristofferson e Fred Foster, Me and Bobby McGee
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Monte Hellman faleceu dia 20 de abril de 2021 aos 91 anos. Foram 12 longas metragens em mais de 5 décadas de cinema. Produziu uma obra extremamente curta mas muito diversa, influente e memorável. O privilégio de assistir aos seus filmes caminha lado a lado com um sabor agridoce dos projetos abandonados, das possibilidades prejudicadas, dos filmes que não realizou. Assim como Orson Welles, Paul Newman, Michael Cimino, Rogério Sganzerla, Maurice Pialat, Leos Carax e muitos outros, prosseguiu duramente sob o signo raro da integridade, qualidade preciosa e elegíaca: marca registrada dos gênios solitários.
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Citações:
Maxime Renaudin. “Monte Hellman, run for cover”. La Fúria Humana. nº 8.
Kent Jones. “’The Cylinders Were Whispering My Name’: The Films of Monte Hellman”. The Last Great American Picture Show: New Hollywood Cinema in the 1970s. Ed. Thomas Elsaesser, Alexander Horwath, Noel King. Amsterdam University Press, 2004.
Annette Michelson. “Corpos no espaço: cinema como conhecimento carnal”. Artforum. v. 7, nº 6, 1969. Traduzido por Bernardo Versiani, Linara Siqueira, Luan Gonsales, Lucas Baptista e Pedro Faissol. Revisado e editado por Lucas Baptista. Foco – Revista de cinema. Ed. 6-7, 2014-2015.
Ernest Hemingway. O velho e o mar [The Old Man and the Sea, 1952]. Bertrand Brasil, 2013.
Jorge Luis Borges. “O fim”. Ficções [Ficciones, 1956]. Cia das Letras, 2007.
Louis Skorecki. “Contra a nova cinefilia”. Cahiers du Cinéma, nº 293, 1978. Traduzido por Cauby Monteiro, Luan Gonsales, Marlon Krüger e Matheus Cartaxo. Revisado e editado por Matheus Cartaxo. Foco – Revista de cinema. Ed. 6-7, 2014-2015.
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