por Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins
Homens que extraem minério, transformam madeira em carvão e saudades em cartas, enquanto são filmados por realizadores que, com suas câmeras, tripés e microfones, colhem e burilam seus gestos. O esforço para dobrar a matéria, o aprendizado da sua manipulação, o artesanato, tudo isso é o que nos dão a ver os oito filmes apresentados na mostra Perspectivas do Cinema Português, que acontece no dia 24/07 na Cinemateca Brasileira, com produção da Foco – Revista de Cinema e da Pena Capital.
Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada.
A extração do minério em Wolfram é marcada por uma violência que faz os planos vibrarem, se chocarem, e que tem a sua contraparte em Terra (2018), de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres. À beira de um lago, trabalhadores fabricam carvão em fornos artesanais, num demorado processo filmado como um ritual quase panteísta em que a presença do mundo e a metamorfose de seus elementos são celebradas. A luz natural, os estalos da brasa e o sopro do vento preenchem os longos planos e a banda sonora, como também acontece, de forma menos concentrada, mais desprendida, nos dois outros filmes da dupla, Cordão verde (2009) e O sabor do leite creme (2012).
À exuberância visual e sonora dos filmes de Hiroatsu e Rossana e de Wolfram contrapõem-se The Last Day of Leonard Cohen in Hydra (2018), de Mário Fernandes, e Longe (2016), de José Oliveira, filmes nos quais o fundamental está no fora-de-campo. Um homem vaga por uma ilha, embalado por reminiscências da mulher amada; outro, pelo mundo, vindo não se sabe de onde. Dois solitários, dois náufragos, reclusos em ilhas de silêncio onde são encontrados o que foram, o que são e os seus sonhos; ilhas raramente acessadas pelos outros, mas algumas vezes por nós, testemunhas de suas confissões e das andanças por ruínas com as quais parecem se identificar.
As pessoas e a paisagem: característica comum a todos os filmes da mostra, mas cujo apelo pictórico é especialmente sentido em dois. Marta Mateus, em Farpões baldios (2017), filma uma comunidade de camponeses, velhos, adultos e crianças, como pinturas de Jules Breton: imponentes, inquietos, seus olhares lançados em direção ao passado e ao futuro. Daniel Pereira, em Pró ano há mais (2008), mostra seu próprio pai revirando o solo com um forcado à procura de batatas. A ação do único plano do filme se resume a isso, mas assistir ao progressivo acúmulo das batatas num canto do quadro, os efeitos da luz na vegetação ao fundo e os sucessivos reposicionamentos do homem em ação é como ver uma pintura se fazendo, sendo inventada aos olhos da plateia.
Nos filmes da mostra Perspectivas do Cinema Português há temas, paisagens, inspirações em comum, porém o que salta aos olhos, principalmente, é a heterogeneidade entre eles: mudam os enfoques plásticos, estilísticos, temperamentais. Algo inusitado, considerando que os seus realizadores são próximos, frequentam a Cinemateca Portuguesa, conversam depois das sessões. Talvez seja isso mesmo o que une essas obras: não elementos específicos, mas a intenção de quem as fez de se servir de modelos os mais variados, para, de forma independente, adequando-os às condições materiais em que se encontram, experimentar, lapidar, colher a sua própria voz.
Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins são os programadores da mostra Perspectivas do Cinema Português.
Mostra Perspectiva do Cinema Português
24/7, às 17h e às 20h30
Cinemateca Brasileira – Largo Senador Raul Cardoso, 207 – São Paulo (SP)