por Willian Silveira
Se tivesse outra chance, tenho a impressão de que Franz Kafka deixaria de lado boa parte dos enigmas, das parábolas e cifras, abriria mão de elementos importantes responsáveis pelo estilo que o postulou ao grande escritor que é, em troca de nos aconselhar em alto e bom tom: em algum momento vocês tem de deixar de acreditar. Olhem para o lado, se eu pude enxergar, vocês também poderão.
O escritor tcheco é o melhor contraponto à história do pensamento utópico, que reconhecemos facilmente desde a ilha concebida por Thomas More, em 1516, mas que perscruta a tradição das ideias há muito, pelo menos desde a República, de Platão. Para além de argumentos intelectuais, como os de A Metamorfose, O Processo e O Castelo, ainda temos a exuberância dos fatos. Uma (nova) crise de refugiados, uma incessante disputa no Oriente Médio e mais uma explosão em Manchester. A realidade inevitavelmente se impõe. Aos poucos, desacreditamos da possibilidade de um mundo melhor, e o recolhimento na esperança, antes tão atrativo, toma a forma exata do seu contrário – a distopia.
Um dos símbolos do mundo distópico, a Los Angeles desenhada por Ridley Scott, em 1982, se passa em 2019. Ainda não colonizamos um segundo planeta e os carros não ocupam os céus, mas vivemos no futuro. Inspirada na imaginação ilimitada de Philip K. Dick, a partir do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), a continuação do longa que tem Harrison Ford como caçador de ciborgues é uma das estreias mais aguardadas do ano. Enquanto o público espera por Blade Runner 2049, com data prevista para outubro, O Círculo surge como prólogo temático, focado no debate contundente sobre a privacidade da informação e a transparência de dados na área digital.
Dirigido por James Ponsoldt, que surpreendeu ao recompor brilhantemente a personalidade do escritor David Foster Wallace no despretensioso O Fim da Turnê (2015), O Círculo é a adaptação do sucesso literário homônimo de Dave Eggers. O filme tem Emma Watson como Mae Holland, uma jovem recém contratada para a grande companhia tecnológica do momento. A atmosfera atraente, descontraída e cool tem como referência as empresas do Vale do Silício, como Apple, Google e Facebook, em que vida e trabalho são delimitados por uma linha tênue, muitas vezes inexistente. A desconstrução da ética do trabalho tradicional surge em prol de mais autonomia para os funcionários. O que vemos, contudo, é a transformação de um expediente aparentemente livre em um espaço opressor. As promessas abstratas perdem o brilho rapidamente, e a empresa passa a exigir cada vez mais envolvimento de Holland, ao ponto dela confundir-se com a própria empresa.
Ponsoldt tem por característica conduzir a direção com uma dinâmica vaporosa. O que funcionou nos filmes anteriores, porém, acaba por ser prejudicial para O Círculo. Obras de ação que contam com temas densos têm o desafio de equilibrar tensão e profundidade. No caso do roteiro construído pelo diretor junto a Eggers, o andamento se ressente de nuances que definam os pontos centrais da narrativa. A trajetória de Holland passa pela tela como um sopro, sem tempo de articular de maneira adequada as aflições de Mae e acaba por impedir a protagonista de gerar empatia. O tom apressado desperdiça uma boa oportunidade de adensar a reflexão sobre questões éticas na época em que interagir significa compartilhar.
Em tempos obscuros, o terrorismo ressuscita um confronto aparentemente invisível ao cidadão que se ocupa unicamente com as questões da micropolítica individual e do seu interesse imediato. O embate pela configuração da liberdade tem, por um lado, os defensores do espaço da atuação individual. A mensagem de feliz aniversário que mando para o meu melhor amigo ou o horário em que busco o meu filho na escola não interessam a ninguém exceto a mim e aos meus. Por outro lado, a fragilidade das seguranças nacionais no mundo ocidental se torna evidente a cada novo homem bomba. À medida que o viver vai se condicionando a duas ou três ferramentas digitais que recolhem os meus dados, a privacidade se torna um bem tão intangível quanto escamoteado. O estado de vigilância é um recurso moderno de proteção ou um atestado do nosso fracasso em gerenciar o futuro?
Diálogo direto com o clássico 1984, de George Orwell, sob a ótica de uma geração que nasceu vigiada, O Círculo tem em Holland uma jovem que não vê problemas em renunciar à própria vida, assim como em um O Show de Truman (1998) consciente, desde que seja por um suposto bem comum. A fé no ideal tecnológico acaba desmascarada somente quando passa a afetar pessoas com as quais ela se importa. Se nenhuma distopia constrói mundos alternativos sem contar com tons de paranoia e variadas teorias de conspiração, a redenção final pode parecer ingênua, mas talvez seja a única saída corajosa para um filme que trata um tema importante sem ousadia.