por Valeska G. Silva e Bruno Andrade
uma parceria com a Foco – Revista de Cinema
“I don’t care”
Estamos em um país na África. Um estrangeiro está à procura de algo. Vai de uma pessoa à outra, comunicando-se de forma extremamente precária. Seu carro atola em um banco de areia em pleno deserto. Seu choro é substituído pelo som do vento cortante, sua desesperança pela imagem da areia infinita. Ele grita: “Eu não ligo!”.
Profissão: Repórter (The Passenger), de Michelangelo Antonioni, é um filme ao mesmo tempo mítico e fiel aos dados históricos. Estamos no tempo da guerra civil em Chade, centro-norte da África, país que, apesar de ter deixado de ser colônia francesa, parece nunca ter conseguido a paz. O governo do Partido Progressista garantiu, de 1962 à morte do seu líder, em 1975, um tratamento extremamente duro, com assassinatos e prisões políticas, aos seus opositores: o grupo guerrilheiro da Frente Nacional pela Libertação do Chade.
A poesia, em tempos históricos, é ditada por ritmos cíclicos que alternam duplos complementares: morte e renascimento, desaparecimento e retorno, luz e escuridão, vida ativa e desperta e vida estática e ilusória.
O êxtase
Em um hotel que lembra mais um hospital infecto, onde as relações são marcadas pela impessoalidade e a indiferença, o homem que vimos antes no deserto, David Locke, interpretado por Jack Nicholson, conhece David Robertson, um traficante de armas. Este morre, o outro toma a sua identidade. Locke experimenta, assim, a euforia da possibilidade de uma nova vida. Diverte-se com o destino aberto em um guichê de compra de passagens aéreas, vislumbrando todas as possibilidades à frente. “Para o resto da vida”, brinca com a atendente. Em outra cena retira o seu disfarce, um bigode postiço, e o deixa grudado jocosamente num lustre pendurado ao teto. Mais tarde podemos vê-lo estendendo seus braços sobre as águas, de cima de um teleférico, qual uma águia.
O êxtase tem por característica uma integração absoluta com o instante presente, pois é o total esquecimento do passado e do futuro. Por isso é fugaz e não representa mudança, e nunca deve ser confundido com a vitória da luz sobre a escuridão.
Solstício de inverno
Londres. Casa do casal Locke. A esposa, em pé, assiste a um programa de televisão em homenagem ao marido morto, renomado correspondente do jornalismo internacional. Um ex-colega de David ressalta sua maior qualidade: sua facilidade de se colocar “distanciado” em relação aos assuntos. Raquel Locke sabe que está longe de ser uma qualidade seu não envolvimento com as coisas, e após a suposta morte e aparente perda do marido, passa a reinventá-lo.
David, vivendo a sua nova vida, encontra um senhor idoso e enigmático em um banco de praça. Este se oferece para contar desde o início a história da sua vida. É aqui, então, que a “maior qualidade” do repórter internacional, sua capacidade para o distanciamento, é posta à prova, uma vez que o senhor enigmático parece bastante franco. A vitória da luz sobre a escuridão finalmente surge como uma possibilidade, mas não é a abertura para um verdadeiro solstício de inverno que Antonioni se propõe realmente a narrar.
“O que há do outro lado daquela janela? As pessoas acreditarão no que eu escrever. E por quê? Porque corresponde às expectativas delas. E à minha também, o que é pior.”
Cinema
Antonioni parte de dados históricos irrefutáveis para fazer de Profissão: Repórter um filme poético, lacunar e perfeitamente ambíguo. Pode-se juntar todas as peças deste filme, transformar a narrativa em algo concreto e sair do cinema contando a história desta ou daquela personagem, pois existe um quebra-cabeça que se completa sem prejuízo de peças; mas pode-se também deixar tudo onde está e não enxergar um homem em particular, mas sim todos os homens em David Locke, e sair do filme estupefato, mudo diante da própria vida narrada e revelada, que dessa forma acaba sendo a vida de qualquer pessoa.
Não se trata, pois, de um filme em que o tema toma a frente da expressão. Como em outros filmes de Antonioni, há um desenvolvimento paralelo absolutamente fundamental do tema e da forma, e para compreender como estes se articulam é preciso identificar a existência harmônica de ambos nesse mundo onde, por exemplo, a esposa, com a normalidade de quem sabe que o sol nasce e se põe todos os dias, não reconhece o rosto do próprio marido após sua morte.
No cinema de Antonioni “o desenho e a cor não estão distintos; quanto mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa”[2].
Abrindo a janela
Um quarto de madeira na beira do cais, em Deserto Vermelho (Il deserto rosso, 1964), é vandalizado por um grupo de convidados. Um crescente claustrofóbico culmina na quebra do imóvel, que tem partes das paredes e dos móveis atirados ao fogo na presença do anfitrião. A partir desse episódio a personagem de Monica Vitti toma um outro fôlego. O carro atolado no deserto, no início de Profissão: Repórter, funciona igualmente como quebra de um mecanismo, dando espaço para que a imaginação da personagem se reprograme.
O ser humano social funciona como um giroscópio, sempre numa dada direção na ausência de força que o perturbe. O cinema de Antonioni oferece oportunidade para metáforas da deterioração social e cultural e abre possibilidades metafísicas, mas antes temos que aceitar um mundo de aparente implausibilidade – não estamos mais no mundo naturalista de Zola, ou no mundo realista de Balzac. Os filmes de Antonioni não cumprem com a obrigação de ilusão da realidade; como Machado de Assis, Antonioni concebeu uma arte experimentalista e moderna. A zombaria veemente das situações beira o surrealismo, mas jamais ultrapassa a linha tênue…
A linha tênue
… como na diferença entre o gesto de simplesmente abrir uma janela e abri-la para enxergar tudo que há à nossa frente.
Pestana, personagem principal do conto Um Homem Célebre, de 1883, tranca-se no quarto passando a noite entre uma tentativa e outra de compor uma partitura, admirando os retratos de grandes compositores da música clássica como se estivesse de frente a um altar. Mas a música de Chopin, Mozart e Haydn jamais é compreendida profundamente por Pestana, que se dedica a esse contato banal, admirando-os apenas superficialmente. Para ele isso parece bastar, e essa é a explicação machadiana para o compositor ter vivido frustrado, produzindo, para o seu desgosto, “simples” polkas tiradas ao piano.
Antonioni, como Machado, como Blake Edwards, entregou-nos personagens solipsistas, de uma melancolia constante, que não explodem a não ser em êxtases momentâneos que em nada nos lembram a felicidade. A abertura de Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) não funcionaria sem o humor produzido por um estranhamento que desestabiliza as nossas expectativas, no qual o aparente naturalismo é desarranjado através de sutis arranjos da encenação: um táxi estaciona em uma avenida deserta; uma moça solitária deixa o veículo com um vestido de festa negro e longo; ela toma um café da manhã em pé, de frente a uma vitrine de jóias, e segura com os dentes um brioche que poderia ser um pastel de feira. Mas, conforme saberemos mais tarde, não há nada de absurdo aqui: trata-se apenas de uma garota de programa chegando de uma noite de trabalho, provavelmente faminta, e que sonha com as belezas que o dinheiro pode comprar, representadas naquela vitrine de loja.
Há homens que vivem no deserto
Um roteiro, com suas personagens, sua trama, suas ambientações, sua construção dramática, e mesmo com as emoções que estas articulam, por mais espetaculares ou delicadas que sejam, ainda não é cinema. A narrativa sozinha, mesmo que concebida e construída em função do dispositivo cinematográfico, não passa de literatura nessa etapa. Cinema: ligar a câmera, fixar um ângulo, fazer com que a sensibilidade da luz ative a sensibilidade de cada átomo, de cada partícula do suporte fílmico, concentrar o tempo de uma ação no tempo do seu corte no filme.
A narrativa sozinha, como foi dito, não passa de literatura: o vento que levanta a poeira, o vapor da água que encobre a protagonista, sai Monica Vitti e entra o rosto do forasteiro mal encarado do faroeste (mas aqui, ainda, o roteiro – o vento, a poeira, o forasteiro, Monica Vitti etc.). Reconhecemos o valor expressivo de tudo isso, de todas essas matérias, mas para serem organizadas em um sistema singular elas ainda carecem da substância de uma visão, da distinção que lhes é conferida pela forma. Se, por um lado, somos tentados pela ideia de comparar o sistema formal de Antonioni ao de Robert Bresson (se Bresson recorre à ausência de profundidade para fazer com que absolutamente tudo cresça na tela, Antonioni amplia o espaço para que tudo nele se reduza), por outro somos forçados a reconhecer que essa utilização da gramática das escalas, que subverte tanto a concepção do espaço físico quanto a do sonoro, nos faz pensar em outro cineasta, também italiano. Um movimento ascendente ou descendente acompanha o olhar da personagem para em seguida revelar o enorme espaço à sua volta, cuja densidade a oprime, a valoriza ou simplesmente denota-lhe alguma mudança de ânimo; um plano fixo estabelece a distância entre as personagens, permitindo que o espaço sonoro e o movimento dos corpos na tela dêem relevo um ao outro, destacando-se mutuamente conforme a distância entre cada um aumenta; à amplitude dos espaços e, no interior destes, o destaque dado a elementos ínfimos corresponde os enormes planos detalhes, os enquadramentos que se fecham sobre alguns dados e os privilegiam. Sai Monica Vitti, entra o rosto do forasteiro mal encarado do faroeste. Sai Michelangelo Antonioni, entra Sergio Leone, mas uma coisa fica: a confirmação de que o uso do som pós-sincronizado no cinema italiano não só permitiu como inspirou a sofisticação tanto na invenção quanto na subversão das convenções do grande cinema industrial de espetáculo.
A inflexão
A cena da entrevista com o curandeiro africano, que serve de objeto de pesquisa a Locke para um futuro filme, estabelece um limite, impõe um obstáculo a um cinema que se abasteceu de tantas narrativas de resistência ao nazismo e da subsequente reconstrução de um país das cinzas, dos dramas íntimos de casais em quartos fechados ou em deambulações pela nova paisagem do milagre econômico (de Viagem à Itália, Roberto Rossellini, 1954, a A Primeira Noite de Tranquilidade, Valerio Zurlini, 1972, passando por A Aventura e A Noite de Antonioni), das odisseias das grandes personagens mitológicas (Ulisses, Hércules, Maciste, Sansão, Ursus etc.), do melodrama e da aventura baseados no folclore local (Raffaello Matarazzo e Riccardo Freda à frente) e mesmo do gênero norte-americano por excelência, temporariamente transplantado para as pradarias de um país vizinho (o western italiano, filmado na sua maior parte em Almeria, na Espanha). Saímos do parque industrial do cinema italiano e do relativo conforto que ele proporcionou aos realizadores e produtores cinematográficos “com seus sistemas de coprodução e de multiroteirização ostensiva”[3], saímos dos seus temas de predileção, saímos das filmagens por bairros de Roma complementadas em sets da Cinecittà, saímos da segurança do som pós-sincronizado, dos gigantescos arcos de luz e do registro em estúdio, saímos de toda uma cultura. Saímos, enfim, da Itália, e penetramos agora em outro território, potencialmente inóspito, mas que também potencializa a novidade, a experiência, o experimento.
O curandeiro toma a câmera e volta a lente para o rosto do repórter, dizendo: suas perguntas revelam mais sobre você que minhas respostas revelariam sobre mim. Primeiramente assistimos à cena como se se tratasse de um documento para, em seguida, através de um recuo de câmera, um monitor ser revelado: estamos assistindo juntamente com Raquel Locke a uma cena gravada. Ela está visivelmente incomodada pelo fato do marido ser revelado pelo que é: o europeu arrogante frente às culturas locais, às suas ex-colônias. É também Antonioni e todo o cinema europeu, todo o cinema de coprodução internacional que se contempla criticamente pela inversão do curandeiro.
David Locke e David Robertson
Pouco antes de Locke arrastar o corpo de Robertson para o seu quarto, uma sequência deixa bastante claro como Antonioni coaduna poesia e narrativa ficcional para o interior das ações das personagens, para o interior da arquitetura dos ambientes, através do singular trabalho de som que contribui para a ilusão da eliminação do tempo-espaço, a qual se concretiza por um mecanismo muito simples e pouco utilizado no cinema: o plano-sequência sem corte mesmo quando existe um salto espaço-temporal.
A câmera desce do ventilador de teto barulhento pela parede branca ondulada. David, o repórter, troca as fotos dos passaportes enquanto ouve a gravação de áudio feita, provavelmente no dia anterior, de uma conversa entre ele e Robertson; a câmera caminha mais uma vez pela parede branca, agora num movimento horizontal para fora do quarto e voltamos no tempo: vemos Robertson vivo junto a Locke no parapeito do hotel, os dois olhando para as areias do deserto. Esse plano-sequência nunca cessará.
Imagens em movimento – a definição conceitual de cinema – nada mais são que uma ferramenta para o acesso ao mundo que sabemos existir em todas as potencialidades metafísicas, mas que não temos como acessar de outra forma.
Notas
[1] O título faz referência ao ensaio Le détour par le direct, de Jean-Louis Comolli, publicado originalmente em Cahiers du cinéma n° 209, fevereiro de 1969, pp. 48-53, e Cahiers du cinéma n° 211, abril de 1969, pp. 40-45.
[2] Maurice Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, O Olho e o Espírito, Coleção Portátil 24, p. 118. Cosac Naify: São Paulo, 2013.
[3] Jean-Claude Biette, Cinémanuel, p. 20. P.O.L. – Trafic: Paris, 2001.