Por Willian Silveira
Poucos filmes de 2017 serão lembrados pela coragem – One of Us é um deles. Trazido ao grande público pelo Netflix, no que há de mais louvável em uma plataforma que permite acesso a produções sem espaço nos cinemas, o documentário se debruça sobre a comunidade de judeus hassídicos do Brooklyn, em Nova York, para contar a história de três jovens que decidiram se desvencilhar da religião. Preservado das apropriações costumeiras, o título original antecipa um princípio religioso para questionar o pertencimento judaico à luz da noção de liberdade individual.
Dirigido por Heidi Ewing e Rachel Grady, documentaristas conhecidas por extrair bons resultados dos mais variados e improváveis recortes temáticos, como no inusitado Jesus Camp (2006) e no convencional Norman Lear (2016), a dupla combina versatilidade e densidade neste último trabalho. One of Us acompanha Etty, Ari Hershkowitz e Luzer Twersky naquilo que suas trajetórias têm em comum: a angústia diante das certezas religiosas, a saída da comunidade ultraconservadora, o abandono por parte de amigos e familiares, e o despreparo para ressurgirem na sociedade americana como autores da própria vida.
A índole provocativa do documentário se apresenta de pronto, transferindo-se do título para as duas sequências iniciais. Às margens do rio Hudson, um homem de vestes pesadas, chapéu de pele e roupa preta, se transforma em cinco; em dez; em cinquenta; multiplicando-se até alcançar um número inimaginável a cada corte da câmera. Todos simulando serem um e o mesmo, como pede a fé. Entendemos imediatamente que a narrativa não trata de um caso isolado ou específico. Aos poucos, a comunidade hassídica extrapola a dimensão dos seus 300 mil integrantes, e, ao pôr-do-sol de Nova York, a imagem se confunde com a da própria cidade. O impacto inicial, porém, logo toma a forma de dúvida, ao escutarmos Etty chamar a polícia para conter a família do marido. O casamento por conveniência, decidido em um primeiro encontro limitado a vinte silenciosos minutos, é o passado do qual ela tenta se recuperar. Em jogo, além das ameaças da comunidade, a perda dos sete filhos.
As cenas iniciais apresentam um conflito que se alongará durante todo o documentário. Quem deve sucumbir quando os mundos antigo e moderno deixam de conviver? Cedo ou tarde, leis religiosas e ideologias seculares sofrerão o inevitável atrito da distância e do tempo. Neste embate da tradição judaica, que tem o conflito – geográfico, moral e histórico – como artéria aorta, encontramos a substância da qual é feito o filme.
Etty é o despertar dramático para problemas tão obscuros e desconhecidos quanto a comunidade ultraconservadora. A partir dela, conheceremos Ari e Luzer. O primeiro, um jovem de 18 anos que passou a questionar a existência de Deus após sofrer na infância uma violência acobertada pela comunidade. Luzer teve um pouco menos de azar. Mais experiente, o ator vive entre Nova York e Los Angeles encenando papeis que, ironicamente, o aproximam e o fazem recordar de uma tradição que prefere afastar. Desertores de uma comunidade unida desde o século XVIII, quando surgiu na Europa Oriental, e movida pela convicção de corrigir os horrores cometidos na Segunda Guerra Mundial, Etty, Ari e Luzer pagam o preço por tomar uma escolha – a primeira de suas vidas.
Melhor documentário oferecido pelo Netflix desde o clássico A Tênue Linha da Morte (1988) e o impactante O Ato de Matar (2012), One of Us não compromete a narrativa tomando-a por causa. Na sobriedade do retrato de vidas que deixaram de acontecer, o filme revela a conciliação como uma moldura partida.
Para saber mais
O Grande Teatro do Mundo – Contos do Talmud