Ainda que as mais recentes composições para a música de concerto contemporânea insistam em obras dissonantes, de tempos em tempos aparecem escritos que obrigam a reflexão sobre esta suposta evolução. O maestro, acadêmico e pesquisador americano John Mauceri não economiza críticas negativas, com sua fúria elegante, no recente e provocador livro Guerra contra a Música: Reconquistando o Século XX (tradução livre para War on Music: Reclaiming the Twentieth Century, Yale University Press, ainda sem publicação no Brasil). Mauceri ataca o que entende como gosto pelo politicamente correto e ideologias que, travestidas de progresso, castram a criatividade e a complexidade da música clássica, especialmente a tonal. Para ele, a dissonância serial, transformada em dogma acadêmico, afastou as massas da música erudita, transformando-a em um exercício exclusivamente intelectual.
Mauceri faz um diagnóstico sem dó: a música, especialmente a chamada erudita foi aprisionada em dogmas sociais que desprezam o belo e exaltam a mediocridade. Seu foco, claro, é no século XX, no qual as guerras culturais empurraram compositores atonais para o altar da modernidade.
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O livro, com seu tom de manifesto, lembra as polêmicas de Theodor Adorno, mas sem qualquer pompa filosófica entediante. Mauceri escreve como quem rege uma ópera de Verdi: intensidade máxima, momentos de pausa para reflexão e uma explosão final que deixa o leitor sem fôlego. Ele questiona críticos, acadêmicos e a moderna indústria cultural, que inclui outros maestros, gravadoras e programações de salas de óperas e concertos. Segundo o autor, muitos agentes culturais glorificam o que ninguém ouve e ignoram o que toca a alma de todos.
Será que a música de nossa época, como ele sugere, está condenada por forças que preferem o esnobismo ao popular? Difícil discordar quando você constata como as trilhas sonoras de cinema, o grande reduto da música clássica moderna, chegam muito timidamente às salas de concerto.
A emoção no coração do cinema
Mas Mauceri pode estar vingado com o lançamento de A música de John Williams, no streaming Disney+. O filme de Laurent Bouzereau, documentarista afiado (Five came back, da Netflix, e Faye, do Max) nos entrega em A Música de John Williams um documentário que é, ao mesmo tempo, uma ode e uma análise meticulosa de um dos últimos grandes românticos da música. Sim, romântico, no sentido mais denso da palavra. John Williams, com suas orquestrações grandiosas e melodias inesquecíveis, é um sobrevivente de um tempo em que a emoção era o coração do cinema. Agora, no apogeu de seus 92 anos, é celebrado pelas mais conceituadas orquestras e salas de concerto do planeta.
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O que Bouzereau faz aqui, e faz bem, é nos lembrar que o romantismo de Williams não é uma questão de estilo superficial, mas uma filosofia. A música de Williams tem raízes profundas no século XIX, evocando os ecos de Wagner, Mahler e Tchaikovsky. Mas, ao contrário dos modernistas de hoje, que veem a emoção como algo a ser desconstruído, Williams a abraça sem medo. Sua música não comenta a imagem; ela se funde a ela, tornando-se uma narrativa paralela, tão essencial quanto o roteiro.
O documentário disseca isso com paciência. Bouzereau nos leva aos bastidores das grandes trilhas — Star Wars, E.T., Indiana Jones, Harry Potter. Não há segredo: Williams escreve como um artesão romântico. E, indiscutivelmente, fez a trilha sonora de grande parte da população mundial que frequentou salas de cinema nas três últimas décadas do século XX, desde o cinema catástrofe de grande sucesso na década de 1970 até as nadadeiras sorrateiras e mandíbulas predadoras em Tubarão. O que seria de Darth Vader sem as trompas imperiais de The Imperial March? Ou de Superman sem os metais gloriosos que nos fazem acreditar que um homem pode voar? Ou das deliciosas perseguições coreografadas de Indiana Jones?
Mas Bouzereau é astuto ao não transformar Williams em uma caricatura nostálgica. Ele mostra como esse romantismo, longe de ser antiquado, é revolucionário num cenário em que a música de cinema virou, em grande parte, pano de fundo. O romantismo de Williams é uma forma de resistência: ele insiste que a melodia — clara, memorável, emocional — ainda é a alma da música.
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Spielberg, em particular, o chama de “contador de histórias” — e ele está certo. Williams entende o que os românticos sempre souberam: a música é uma linguagem universal, capaz de dizer o que as palavras e as imagens não conseguem. Bouzereau, com sua câmera atenta, capta maravilhada cada partitura e em cada ensaio de orquestra.
Seguindo o raciocínio de Mauceri, enquanto o mundo da música “séria” pós-Segunda Guerra tentava destruir as bases emocionais da tonalidade — e com ela o vínculo do público com a música erudita —, Williams virou a mesa.
O documentário da Disney+ certamente deixaria extasiado o filósofo e historiador de ideias Isaiah Berlin (1909-1997), judeu russo radicado na Inglaterra. Um daqueles pensadores que incomodam pela lucidez. E Leandro Bachega, no recém lançado Pluralismo e Dois Conceitos de Liberdade (Ed. É Realizações), disseca a obra do mestre com precisão cirúrgica, mas sem perder o tom de admiração que se espera de um discípulo. O livro é uma entrada vigorosa nos conceitos de Berlin, especialmente no que diz respeito a um dos temas em que o pensador é considerado um dos maiores, se não o maior: o romantismo. Berlin nos lembra como essa corrente filosófica e cultural teve apoio em uma concepção de liberdade, de retorno à natureza, valorização das paixões privilegiando a espontaneidade no lugar do raciocínio calculado. O romantismo contesta a rígida sociedade europeia no século XIX, marcada por guerras e injustiça social.
Bachega, atento, expõe como Berlin vê no romantismo a semente do pluralismo. Se os iluministas buscavam leis gerais que governassem o comportamento humano, os românticos diziam: “E se cada indivíduo for uma lei em si mesmo?”. O impacto disso é imenso! É a rejeição da harmonia universal em favor de um mundo onde valores colidem e convivem, sem promessa de resolução. Para Berlin — que compreendeu o romantismo melhor do que os próprios românticos —, é exatamente nesse choque que reside a beleza e a tragédia da condição humana.
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O romantismo musical do século XIX, com seus violinos em êxtase e seus acordes monumentais, tinha como objetivo transcender a realidade. Hoje, segundo os neurocientistas, a música cumpre um papel semelhante, mas com ferramentas diferentes. Compositores a partir de Beethoven constroem paisagens sonoras que mexem com nossas redes neurais de recompensa da mesma com seus crescendos estrondosos. A emoção, dizem os estudiosos, é a verdadeira linguagem universal — e o romantismo, com sua intensidade emocional, é seu dialeto mais eficaz.
Em contato com os afetos
A neuroestética, ciência formulada há pouco mais de dez anos — que investiga os achados biológicos da produção e percepção da arte — nos explica o truque: certas progressões harmônicas, padrões rítmicos e dinâmicas mexem com o sistema límbico, a parte do cérebro que regula nossas emoções mais primárias. O resultado? A transcendência. Quando ouvimos o ápice de uma música — seja em um concerto ou em uma trilha de cinema — experimentamos uma liberação de dopamina. Em termos românticos, seria o “sublime”. Em termos científicos, é o cérebro nos recompensando por entrar em contato com os afetos. A emoção e o sentimento, dizem os estudiosos, fazem a verdadeira linguagem universal. E o romantismo, com sua intensidade afetiva, é seu dialeto mais eficaz.
O diretor Laurent Bouzereau entendeu que John Williams não é apenas um compositor de trilhas; ele é, conforme palavras de Spielberg, um contador de histórias românticas sempre em situações no limite da tragédia, na convocação de uma estratégia de sobrevivência pelo combate, em busca de uma nova adaptação. E nada mais romântico do que a conhecida base de todo roteiro cinematográfico de Spielberg: a jornada do herói.
A música de John Williams não só acompanha as imagens, ela as eleva. Experimente assistir a Star Wars sem os trompetes triunfais da abertura ou a Lista de Schindler sem o violino solitário de Itzhak Perlman. Impossível! Williams é o arquiteto invisível das emoções que associamos a esses filmes.
Bouzereau também é esperto ao explorar o método do compositor. Descobrimos um Williams disciplinado, que vê na música um trabalho diário, quase artesanal. E aqui, em estratégia revelada por John Mauceri em seu livro, o compositor consegue traduzir em sua escrita absorvente toda a história da música ocidental a partir do romantismo alemão, além de suas influências em compositores de outras nacionalidades. Beethoven, Wagner, Bruckner, Mahler, Debussy, Strauss e Stravinsky são facilmente reconhecíveis nas trilhas de Williams. Mas talvez o maior segredo esteja em incorporar as dissonâncias de Ligeti, Messiaen e outros compositores da música serial. Isso fica bem exemplificado na partitura de Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Assim, John Williams fica oficialmente inscrito na linha histórica que começa ainda no início do século XIX. Um neoromântico.
John Williams é um anacronismo delicioso. O grande maestro e compositor é o homem que nos fez acreditar na Força, temer tubarões e voar com bicicletas rumo à lua cheia. Bouzereau nos conduz pelos bastidores da genialidade com reverência, mas sem escorregar no sentimentalismo fácil. Num mundo que celebra o ruído digital e a pressa narrativa, ele insiste em orquestrar emoções como se ainda estivéssemos nos anos dourados de Hollywood. E a genialidade disso é que funciona.
E qual é a síntese disso tudo? Isaiah Berlin diria que não há respostas definitivas. Mas o que é inegável é que a guerra entre razão e emoção, universal e particular, continua viva. O romantismo, aquela estranha forma forte, apaixonante e indomável, ainda ronda a música contemporânea como um fantasma teimoso. A música de Williams é um grito romântico contra a esterilidade intelectual. Mauceri nos alerta para os perigos de abandonar o público em nome de uma pureza estética. Talvez o verdadeiro legado do romantismo seja justamente a recusa em escolher um lado, insistindo que a arte, como a vida, é um campo de batalha onde ideias e emoções se enfrentam — e, às vezes, se reconciliam.
No fim, talvez o romantismo seja menos um período e mais uma necessidade humana. A música contemporânea, especialmente as trilhas sonoras, em todas as suas formas, responde a isso. E a neuroestética só reforça o que os românticos sempre souberam: sem afeto, a arte é apenas ruído.
José Paulo Fiks e Andres Santos Jr são psiquiatras, psicanalistas, pesquisadores em Neuroestética e colaboradores do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM. Autores de livros que articulam saúde mental e cultura.