por Willian Silveira
Tive um professor que definia uma boa aula sobre cinema como aquela que se ocupa da teoria cinematográfica durante cinco minutos. No restante, ele dizia, fala-se da vida. Confesso que, de todas as lições recebidas à época, nenhuma foi mais marcante do que essa proporção, proferida assim, de maneira confessional e despretensiosa. Afinal, ainda que tomada pelo exagero da retórica, a observação exprimia com precisão o verdadeiro motivo de estarmos ali. Retirava-nos do autocentramento provocado por inúmeros comentários técnicos, a respeito, por exemplo, da magnífica sequência de abertura de A Marca da Maldade (Orson Welles, 1958), e nos reconduzia ao coração do que impulsiona as pessoas em direção aos filmes ou a uma obra de arte de modo geral. Sempre que me lembro do conselho, penso em Ingmar Bergman (1918 – 2007). Em especial, na experiência proporcionada por Persona (1966).
Este ano, o clássico do diretor sueco completa 50 anos. Para celebrar a data, a 40a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trouxe para o Itaú Cultural, em parceria com a Fundação Bergmancenter, a exposição Por Trás da Máscara – 50 anos de Persona. Pela primeira vez longe da ilha Faro, locação utilizada por Bergman em boa parte dos seus filmes, o material montado apoia-se em projeções e textos a fim de dar conta de apresentar o contexto, as influências e as curiosidades sobre a obra, além de trazer diários, anotações e versões do roteiro utilizado durante a concepção do filme. É uma oportunidade única tanto para os fãs do diretor quanto para quem simplesmente gostaria de se aproximar de um dos filmes mais importantes da história do cinema.
Bergman costumava dizer que Persona salvara sua vida. Não exatamente a vida nas telas, ainda que viesse da insignificante comédia a cores Para Não Falar de Todas Essas Mulheres, dois anos antes. Internado durante nove meses por conta de uma pneumonia e contestado no cargo de diretor do Real Teatro Dramático de Estocolmo, o realizador deu início a uma série de anotações a partir da variedade de imagens esparsas que lhe apareciam. Como uma espécie de expurgo da consciência em busca de recobrar o equilíbrio, nasceu o encontro entre a atriz Elisabet Vogler e a enfermeira Alma, mote de tons similares ao da peça O Mais Forte (1889), de August Strindberg (1849 – 1912), autor encenado pelo menos uma dezena de vezes na companhia teatral comandada por ele.
Em linhas gerais, Persona conta a história do emudecimento da atriz Elisabet Vogler (Liv Ullman) após interpretar a peça Electra, de Sófocles. Automaticamente diagnosticado como uma doença, o silêncio de Vogler a coloca aos cuidados de Alma (Bibi Anderson). A partir daí, o que se segue é a construção de uma relação de intimidade entre as duas mulheres. Inicialmente tão distintas, aos poucos vamos identificando pontos de contato que as aproximam em um movimento que resultará na antológica cena da fusão dos rostos, na qual a noção de individualidade é nitidamente borrada. Indicação esta que, se atualmente estranha por perturbar a máxima da identidade moderna, por outro lado parece bastante acessível e compreensível aos olhos do filho de um pastor luterano, que faz da culpa humana e do silêncio de Deus dois dos seus temas mais recorrentes.
Para lá e para cá, há uma literatura considerável sobre Bergman e, consequentemente, sobre Persona. Boa parte dela, aliás, motivada por uma compreensão equivocada de que a densidade temática do diretor significa hermetismo. Entre abordagens tradicionais e inusitadas, as mais empolgadas – como de costume – são as psicanalíticas, que encontraram em um residual de imagens destinado a moldar a atmosfera do enredo uma gama de símbolos e interpretações que, no fundo, dizem muito sobre a psicanálise e pouco acerca do filme.
Por mais simples que possa parecer, nenhuma chave de leitura se encaixa melhor em Persona do que a literal, apontada quase didaticamente pelo título e pela referência a Sófocles. Logo no início, um menino – o protagonista mirim de O Silêncio (1963) – levanta da cama, aparentemente de um hospital, e começa a deslizar a mão sobre a imagem gigante, ora de Elisabet ora de Alma. Como São Tomé que precisa tocar para crer, o cinema de Bergman pensa a imagem em uma relação positiva, na qual a luz é um elemento de verdade, em contraposição a um jogo de ilusões, como ocorre em A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, ou, ainda, em várias vertentes do cinema contemporâneo. Foi igualmente de um hospital, também cercado por sombras, que Persona surgiu a Bergman como uma revelação; feito um filme que discursa sobre a imagem, seja ela social, representada pelo núcleo de Vogler e Alma, seja ela cinematográfica, representada pelos inúmeros elementos e referências ao cinema enquanto simulação.