por Lucas Petry Bender
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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com a Persona Cinema.
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“O desejo do homem sendo Infinito, a posse é Infinita e ele mesmo Infinito”
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William Blake
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Depois de explorar as ruas, as noites, os condomínios, os trens, os cheiros e as temperaturas de Nova York nos seus cinco primeiros longas ?—? Fuga para Odessa (1994), Caminho sem volta (2000), Os donos da noite (2007), Amantes (2008) e Era uma vez em Nova York (2013) —, James Gray se afasta de casa, se afasta muito, nos seus dois filmes mais recentes: transita entre a Inglaterra do início do século XX e a selva amazônica em Z: A Cidade Perdida (2016) e viaja até os confins do Sistema Solar em Ad Astra (2019). Abre-se, nesse movimento para fora, uma janela de infinita perspectiva? — ?de fome metafísica? —?, representada, sobretudo, pelas insaciáveis ambições do explorador arqueológico Percy Fawcett e do explorador espacial McBride (o pai), ambos em busca de uma realidade absoluta que transcenda as contingências da vida e que justifique uma jornada que nunca termina.
Em contrapartida, tamanho salto para dimensões imensuráveis resulta numa sensível perda de calor humano no cinema do diretor?—?um prejuízo calculado, sem dúvida, pois a dificuldade de estabelecer fortes laços afetivos é um dos aspectos que caracterizam os personagens desses filmes. E, embora seja possível apontar essa característica em variados graus ao longo de toda a filmografia do diretor, o fato é que nos seus dois últimos filmes saem de cena os ambientes domésticos, os apartamentos abafados, as danceterias efervescentes, a sensualidade feminina, a cultura urbana, o sexo, a umidade noturna do Queens, do Brooklyn e das demais paisagens nova-iorquinas. Até mesmo na ambientação gelada e sombria de Fuga para Odessa a tela está impregnada com mais calor humano, mais epiderme viva, mais desejo pulsante do que na janela formada pelos dois filmes mais metafísicos do diretor.
Em determinado momento de Z, há uma fala que sintetiza a dimensão ampliada dessa perspectiva recente do cinema de Gray: “Sonhar e procurar o desconhecido. […] O homem deve ir além dos limites de sua compreensão. Se não, de que serve o paraíso?”. Ouve-se, aqui, a expressão da fascinante grandeza da fome de conhecimento e de experiência, bem como da potência da imaginação humana; no entanto, ouvem-se também os ecos daquela transgressão primordial que marcou a fome de conhecimento com a sina do pecado original, o fruto proibido que, uma vez alcançado, significou a expulsão do paraíso. Diante dessa tensão existencial, Ad Astra perfaz um movimento na direção contrária àquela fala de Z, na medida em que vemos o velho McBride (Tommy Lee Jones) tresloucado por seu monomaníaco apetite de conhecer o segredo que se oculta para além dos céus. A jornada de resgate de McBride filho (Brad Pitt) colocará diante da indagação “se não, de que serve o paraíso?” uma resposta simples: existe a hora de voltar para casa. E o que é o paraíso, senão a casa primordial da qual nos afastamos?
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Canção do exílio interior
Neto de imigrantes judeus que fugiram da perseguição no leste da Europa, James Gray vinha plasmando imagens de força metafísica em pleno fervor urbano de sua Nova York natal. Seus voos para as lonjuras do Império Britânico, selvas amazônicas, Lua, Marte, Netuno e além, mostraram o alcance e a potência do desejo no seu cinema. Por outro lado, afastado do calor humano do lar perdido, seu cinema clama pelo tempo de voltar para casa.
Deixar a casa para trás; voltar para casa: eis a dinâmica essencial que movimenta o cinema de James Gray. Seja com Joshua (Tim Roth) retornando ao bairro em que cresceu em Fuga para Odessa, com Leo (Mark Wahlberg) de volta ao lar após cumprir pena em Caminho sem volta, com Bobby (Joaquin Phoenix) reaproximando-se do pai e do irmão em Os donos da noite, com Leonard (Phoenix, novamente) fugindo e voltando para casa na mesma noite em Amantes, com a polonesa Ewa (Marion Cottilard) fugindo da Europa deflagrada em Era uma vez em Nova York, com Fawcett (Charlie Hunnam) partindo para expedições amazônicas em Z, ou com a jornada dos McBride através do Sistema Solar em Ad Astra. Em sentido amplo ou em sentido estrito, os protagonistas de Gray são sempre migrantes, de modo que ser estrangeiro é uma qualidade da própria condição humana, herdada daquele exílio genesíaco que faz com que o paraíso represente, simultânea e paradoxalmente, o lar e o desconhecido destino almejado.
Meu reino, ou minha casa, não é deste mundo?—?eis o anseio que se expressa no fundo dessas dramáticas fugas e retornos. Sobretudo os exploradores, Fawcett e o velho McBride, parecem em busca de um sonhado reino que seja deste mundo, mas não conspurcado pelo homem, um reino que seja puro, que não carregue o estigma da queda humana. O cinema de James Gray nutre-se da relação entre o lar perdido/recuperado e a condição de exílio interior para alcançar o seu maior fascínio: a dinâmica do desejo humano, entre o horizonte metafísico transcendente e o calor imediato da presença?—?um reflexo do problema existencial de encontrar o equilíbrio entre devotar-se ao Absoluto (ou amar a Deus) e comprometer-se com o mundo (humano, demasiado humano), ou da relação entre amor e solidão que é levada às últimas consequências pelos místicos.
A obra-prima do diretor é justamente a que equilibra esses aspectos com maior êxito: Era uma vez em Nova York (The Immigrant), protagonizado por uma imigrante polonesa que vê o seu sonho de refazer a vida em Nova York transformar-se num pesadelo pelas mãos de um proxeneta, e que encontra na fé a força espiritual para perseverar, perdoar e ser uma via de redenção. Dos lençóis suados ao confessionário; das sarjetas infectas ao altar; da fila de triagem em Ellis Island à ária de Caruso; da maquiagem pesada à levitação do mágico; dos escusos expedientes de sobrevivência à inocência preservada em segredo no fundo da alma; do vagar noturno pelas ruelas repulsivas ao dia radiante no campo aberto dos sonhos?—?os extremos do horizonte metafísico e do calor humano combinam-se nesse filme de espírito dostoievskiano, e nada encarna com mais propriedade essa combinação do que as lágrimas ardentes no rosto iluminado de Cotillard, aludindo a Maria Falconetti de A Paixão de Joana D’Arc (1928).
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Silêncio que apavora
É notável o cuidado que James Gray dedica às cenas finais de seus filmes, extremamente sugestivas, deixando ao espectador o espaço para a sua própria imaginação e preservando uma margem de indefinição, quando não de sentimentos contraditórios. Planos finais que são misteriosos, abertos, insinuantes: o olhar imóvel e inescrutável de Tim Roth em Fuga para Odessa; a solidão introspectiva de Mark Wahlberg em Caminho sem volta; em Os donos da noite, o desalento de Joaquin Phoenix, expressando seu afeto pelo irmão ao mesmo tempo em que sente a falta da mulher amada; as lágrimas ambíguas do mesmo Phoenix, que perde e encontra seu amor quase simultaneamente em Amantes; em Era uma vez em Nova York, os destinos abertos de Cotillard e de Phoenix na imagem da janela e do espelho, lado a lado; outro espelho, que se abre para uma dimensão desconhecida à passagem de Sienna Miller em Z.
Entretanto, esses desafios finais à resposta imaginativa e emocional do espectador não ocorrem em Ad Astra, que adota um desfecho retórico, em que as palavras tomam o lugar da imagem como força de maior expressão. Conforme o diretor, a sua intenção era terminar o filme no momento em que o protagonista sai da cápsula espacial ao aterrissar. Os produtores, contudo, julgaram esse final sombrio e triste, e Gray afirma ter feito uma concessão ao acrescentar uma sequência para desfazer essa impressão. Embora a solução final seja coerente e harmônica, utilizando o monólogo como parte integrante da rotina profissional do personagem para expor os seus sentimentos e fechando o círculo aberto com o monólogo inicial do filme, também é verdade que soa um tanto quanto discursiva, enfática, excessivamente explícita e autoconsciente, ainda mais quando comparada ao padrão das obras anteriores do diretor. É sintomático, nesse sentido, que também o final de Caminho sem volta tenha sofrido interferência do produtor?—?o infame Harvey Weinstein, no caso, que teria tentado intervir também no desfecho de Era uma vez em Nova York, mas sem sucesso?—?, embora a versão com o corte final do diretor esteja disponível.
Na sequência final de Ad Astra veríamos, portanto, a porta de retorno à Terra se abrindo e revelando a mão estendida a McBride, como uma proposta de confiança mútua, um caloroso convite de retorno à humanidade; com o olhar apaziguado, doce, esperançoso, ele aceita o convite e é amparado em seus primeiros passos na nova vida; o enquadramento é emoldurado pela abertura da porta agora atravessada, com a profundidade de campo fora de foco, imprimindo uma vaga sensação onírica; sugerindo, sobretudo, que a travessia daquele limiar a partir do convite aceito é o que mais importa, e que o futuro é um incerto e vacilante percurso. Seria um final esteticamente muito afinado com a filmografia do diretor, sobretudo pelo movimento em direção a um destino desconhecido (McBride se afasta de nós, que ficamos aqui, de forma muito similar ao encerramento de Era uma vez em Nova York e de Z), bem como pela capacidade expressiva da imagem pura, emoldurada pela abertura da porta/janela. Vale notar que um elemento visual semelhante, da mão oferecida ao toque diante de uma janela, foi muito bem utilizado no desfecho de O primeiro homem, dirigido por Damien Chazelle, cujo protagonista também é um astronauta estoico e frio que retorna à Terra.
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Descrevo a cena para demonstrar que é mediante os seus elementos visuais que vislumbramos tudo o que foi acrescentado verbalmente na sequência posterior do monólogo, ao mesmo tempo em que mantemos a razoável suspeita de que a nova missão do protagonista?—?confiar e amar?—?será tão ou mais difícil do que a realizada no espaço sideral; a força da imagem sem palavras preserva um mistério essencial em que a dúvida e não a afirmação assume o tom preponderante. Independente das preferências pessoais de cada espectador, a composição da imagem final originalmente planejada para Ad Astra manteria atributos semelhantes, sejam visuais ou emotivos, que diferem bastante da abordagem discursiva, explícita e inequívoca que foi acrescentada a pedido dos produtores.
Seja como for, o que o monólogo final explicita é a passagem do estoicismo inicial do personagem à vulnerabilidade emocional e ao desejo de calor humano, resultado da travessia do deserto exterior e interior. Quando, mais cedo, McBride é reprovado no teste psicológico de rotina, é como se ele estivesse, ironicamente, sendo aprovado na sua humanidade. Também de forma irônica, em Ad Astra, o herói (como o velho McBride é reconhecido na Terra) enlouqueceu; o verdadeiro heroísmo é anônimo, silencioso e interior?—?é vencer a si próprio, mas tal vitória é também uma espécie de derrota, no sentido de que não se pode ter completo domínio de si e de que é preciso vivenciar a realidade do sofrimento para encontrar sentido nas demais emoções.
Assim como o velho McBride não suportou o silêncio eterno dos espaços infinitos que apavorava Pascal, pode ser que o silêncio das cenas finais seja insuportável para alguns de nós (produtores de cinema, em especial). Pois, se o movimento sugerido pela trajetória de Ad Astra parte do infinito espaço exterior (que, afinal, está vazio, silencioso, ermo) para o infinito do espaço interior (o amor, o espírito), resta-nos a dúvida de que talvez o coração humano possa acabar frustrando a expectativa e mostrar-se mais vazio do que presumíamos.
Para o velho McBride, a verdade está lá fora?—?e lá fora há apenas o apavorante silêncio eterno dos espaços infinitos. Estamos sós. Sendo o desejo do homem infinitamente frustrado, a solidão é infinita. Para McBride filho?—?que mal pode esperar o dia em que sua solidão terminará?—?é tempo de voltar para casa, pois a verdade está cá dentro. Se não, de que serve o paraíso?
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