por Willian Silveira
“O cinema substitui o nosso olhar por um mundo mais em harmonia com os nossos desejos”, anuncia o narrador de “O Desprezo” (1963). A frase, no filme atribuída incorretamente a André Bazin (1918 – 1958) – a autoria é de Michel Mourlet, no ensaio Sur un art ignoré -, ecoa junto à caminhada solitária de Camille Javal, destituindo da personagem de Brigitte Bardot o protagonismo de uma das mais impactantes cenas de abertura já produzidas.
A proposta de um cinema que desse conta dos anseios de seus realizadores foi o ponto de partida para que o grupo de críticos da revista Cahiers du Cinéma transformassem a ideia em ação. Assim nascia a Nouvelle Vague, a nova onda francesa, atuando na contramão do modelo de cinema predominante do pós-guerra, arranjado em uma estrutura tradicional voltada para o entretenimento, e com a ambição de elevar a sequência de imagens à mesma condição artística da pintura e da literatura. Para isso, o primeiro passo era romper com o padrão de produção exportado por Hollywood, no qual um diretor como Cecil B. DeMille (1881 – 1959), subordinado aos produtores e aos estúdios, assinava cinco filmes em um ano. O verbo preferido dos franceses, sabemos, nunca foi o “realizar”, mas o “pensar”. Amplamente conhecida, a onda francesa difundiu de forma muito competente o nome de seus idealizadores, em especial Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette. No entanto, o desconhecimento é praticamente completo quando se trata do responsável pelos momentos mais sublimes proporcionados pelo movimento: Raoul Coutard.
Nascido em Paris, em 1924, Coutard teve uma trajetória definida pela combinação de imposições e acasos. Na faculdade, desejava estudar química, mas acabou tendo de trocar de curso ao ser informado do valor da matrícula. No caso, escolheu a mais acessível, e por fim se viu nas disciplinas de fotografia. Cumpriu a vocação de todo o francês da sua geração, fez parte do exército e participou do pesadelo – como todo pesadelo, inesperado – denominado Guerra da Indochina. Mesmo poupado de contabilizar nas estatísticas, não retornou à França. Optou por permanecer no Vietnã durante a década seguinte, desta vez cobrindo os confrontos para as revistas Paris-Match, Time e Life. Ao se dar conta de que a fotografia de guerra não é profissão mas destino, aceitou trabalhar no longa de um diretor estreante a fim modificar a própria sorte. E conseguiu. Sem nunca ter manuseado uma câmera de filmar, chegou no set de “La passe du diable” (1958) para descobrir que Pierre Schoendoerffer não o contratara para ser fotógrafo de still, como imaginara, mas para assumir a direção de fotografia. Uma vez mais a vida conduzia Coutard em direção aos desafios da imagem – e esse imperativo fez toda a diferença. Dois anos depois, em seu quarto trabalho, Raoul Coutard seria o nome por trás de “Acossado”, um farol comandado por Jean-Luc Godard na pretensão de guiar o cinema moderno. Ainda no mesmo ano, filmaria o thriller Atirem no pianista, dirigido por um fã declarado de Alfred Hitchcock, François Truffaut.
Em uma carreira que ultrapassa cinco décadas, Raoul Coutard trabalhou com vários cineastas, do grego Costa-Gavras ao japonês Nagisa Oshima, contabilizando em torno de 70 longa-metragens. Apesar da versatilidade, será sempre lembrado como o fotógrafo da Nouvelle Vague, parceiro de Godard em pelo menos uma dezena de títulos e o responsável pelos melhores filmes da geração Cahiers, entre eles “Acossado”, “Jules e Jim”, “O Demônio das Onze Horas” e “Bando à Parte”. À medida que soube incorporar os novos recursos técnicos, como películas mais sensíveis e equipamentos portáteis, a favor de ilustrar as angústias sociais, políticas e existenciais do período, Coutard foi além da simples identificação com o movimento. A singularidade de uma composição de takes longos, luz natural e registro documental tratou de moldar a identidade visual da Nouvelle Vague.
Ironicamente, os prêmios chegaram tarde na carreira de Coutard. A melhor fase passou em branco e o primeiro reconhecimento chegou somente nos anos 70, ao receber o César de fotografia, o Oscar francês, por “Le Crabe – Tambour” (1972), do mesmo diretor que acidentalmente o colocou atrás de uma câmera. Cannes e Veneza reconheceram seu talento ao premiar Paixão (1982) e Carmen (1983), respectivamente, ambos de Godard. Infelizmente, a relação amistosa entre diretor e fotógrafo ficara para trás, assim como a estética dos anos dourados da parceria.
Do período em que conviveu entre a vida e a morte, Coutard extraiu o lema ao qual se manteve fiel durante toda a carreira. Independente do diretor com o qual trabalhasse, o objetivo da fotografia se manteria o mesmo: transmitir emoção. Como no encalço de um sentimento ligado ao passado, Raoul se aproximou justamente de Philippe Garrel para os seus últimos trabalhos. O retorno ao preto e branco nos possibilitou ainda a beleza dos contrastes em “La naissance de l’amour” (1993) e “Inocência Selvagem” (2001). Sem maiores alardes, Coutard partiu neste início de novembro, aos 92 anos.
Os 10 melhores filmes de Raoul Coutard:
Acossado (Jean-Luc Godard, 1960)
Uma Mulher é Uma Mulher (Jean-Luc Godard, 1961)
Crônica de Um Verão (Edgar Morin e Jean Roch, 1961)
Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (François Truffaut, 1962)
Viver a Vida (Jean-Luc Godard, 1962)
O Desprezo (Jean-Luc Godard, 1963)
Bando à Parte (Jean-Luc, Godard, 1964)
O Demônio das Onze Horas (Jean-Luc Godard, 1965)
Z (Costa-Gravras, 1969)
La naissance de l’amour (Philippe Garrel, 1993)