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“Finge tão completamente…”
Roda do Destino, de R. Hamaguchi
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por Lucas Petry Bender
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“Somos produtos defeituosos”, dizem Meiko (Kotone Furukawa) e Kazuake (Ayumu Nakajima), rindo, no momento em que quebram momentaneamente o pico de tensão do primeiro episódio de Roda do Destino (Gûzen to sôzô, direção de Ryûsuke Hamaguchi, 2021), em meio a uma crise de ciúmes repleta de manipulação emocional e de diálogos deliciosamente capciosos. Quando, na sequência, vemos Meiko retrocedendo dentro de uma cena, como se corrigisse a escolha impulsiva que fizera, a estrutura mesma do filme se abre para incorporar os ditos produtos defeituosos no seu interior e dar-lhes nova oportunidade.
Processo semelhante ocorre nos dois outros episódios, embora por meios distintos?—?a simulação que, falhada, escreve certo por linhas tortas (ou será o contrário?), e o equívoco que leva à representação de personas em pleno ambiente da realidade (seja lá o que isso signifique). Há uma aura misteriosa de indefinição quanto aos limites entre realidade, ficção, imaginação e desejo, que não é sufocada pela engenhosidade dos longos diálogos, e incorpora-se no fluxo das cenas; sobretudo através da exploração visual de vidraças — ora isolando o universo dos personagens em aquários, ora ampliando-os por meio de reflexos imprecisos, ora absorvendo limites em transparências.
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No jogo de malícias, carências e simulações ensaiado pelos personagens, o que transparece é apenas uma camada de algo maior e não muito visível?—?que pode ser o acaso, o destino, a imaginação, o sonho, o jogo entre a mentira romântica e a verdade romanesca, ou o que a intuição de cada espectador sugerir. Temos experimentado algo de sabor semelhante no cinema do sul-coreano Hong Sang-soo, embora Roda do Destino invista em cenas de diálogos mais dinâmicas e de expressões mais à flor da pele (que em Sang-soo costumam emergir mais lentamente, preferencialmente após algumas garrafas esvaziadas).
Essa mesma atmosfera já mostrava alguma influência no menos maduro Asako I & II — longa anterior de Hamaguchi, que encerrava com o casal de protagonistas contemplando um rio e observando como ele era sujo e bonito, metáfora da descoberta existencial dos personagens, que agora retrata os produtos fascinantemente defeituosos em suas contradições. É curioso, ainda, que uma das melhores cenas de Asako seja a de uma crítica impiedosa a um desempenho de uma jovem atriz que interpreta uma peça teatral.
Nesse trânsito entre contradições, simulações e interpretações, a utilização de personagens que são do meio artístico fortalece a impressão de sondagem através das camadas da realidade. Se Roda do Destino abre com um episódio que recria ou bifurca a narrativa para dar nova oportunidade aos personagens, e fecha com outro que é a culminação da relação entre o aparente e o real, no centro do filme está um livro e o encontro entre o seu autor e uma leitora. Aqui a imaginação e a ficção não são especulativas ou simbólicas, mas a matéria mesma com que a encenação é formada; o escritor explica que os personagens e as palavras têm vida própria, que as palavras escolhem palavras de um modo que não se limita ao controle consciente do próprio autor. Por outro lado, a leitora empresta ainda outra vida às palavras?—?e é aqui que autor, diretor, ator, leitor, espectador, livro e filme fundem suas perspectivas.
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Se pensamos nesses processos de personalização/despersonalização nos termos de grandes estetas da literatura, notamos que parte da força de Roda do Destino vem do seu jogo com noções estéticas de identidade, realidade, imaginação e ficção. “A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”, escreve Fernando Pessoa em carta a Casais Monteiro. “Estes fenômenos?—?felizmente para mim e para os outros?—?mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo”. Por mais extremada que seja a expressão por meio de heterônimos, a tendência orgânica aí identificada está na base da experiência estética profunda?—?o poeta é um fingidor, como é também o leitor, ambos fingindo tão completamente a ponto de a explosão para dentro doer deveras. E assim, nessa autopsicografia compartilhada, gira a roda da fortuna e da fantasia a entreter a razão.
“Talvez o motivo último para metáfora, ou para a escrita e leitura de uma linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, estar em outra parte”, escreve Harold Bloom em O Cânone Ocidental. “A crítica estética nos devolve a autonomia da literatura de imaginação e a soberania da alma solitária, o leitor não como uma pessoa na sociedade, mas como o eu profundo, nossa interioridade última”.
Se por meio da arte podemos dar vazão ao desejo de ser outro e de estar em outra parte, ao mesmo tempo em que nos sentimos mais verdadeiramente nós mesmos, é porque nessa alquimia espiritual descobrimos “a alegria do real recapturado” (como Proust em seu Em Busca do Tempo Perdido), sentimento que fica no ar quando as luzes se acendem ao término do filme de Hamaguchi.
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A vida mesma não tem ensaio ou conserto?—?e filmes como Roda do Destino nos levam a simultaneamente aceitar essa verdade e negá-la, como se por trás das cortinas da realidade ganhassem vida os ensaios que praticamos na nossa própria sala escura interior.
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