por Lucas Petry Bender, em parceria com À Pala de Walsh
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Tem dias em que a linguagem é sentida como se fosse uma jaula, da qual gostaríamos de escapar ultrapassando os limites das palavras e penetrando em algum reino oculto supra verbal, onde tudo fosse ao mesmo tempo intuitivo e misterioso, contemplativo e sensorial, livre e envolvente. Dessa jaula não se escapa a não ser por meio das artes (ainda que também atreladas às suas respectivas linguagens), especialmente em tempos de comunicação saturada.
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Como em De Olhos Bem Fechados, em que o diálogo é proscrito por uma realidade secreta paralela, o cinema oferece um vislumbre dessa lanterna mágica ao mesmo tempo em que interpela o espectador, solicita uma garantia de atenção plena, questiona o conhecimento do código: seja Fidelio, Rosebud ou outra que tivermos aprendido, ainda é uma palavra que precisa ser pronunciada para que se abram as portas desse castelo fascinante e aterrador. Outras vezes nos deparamos com alguma frase lapidar que encerra um universo inteiro em si, batendo a porta bem no nosso nariz: “Forget it, Jake, it’s Chinatown”; ou nos colocando diante de um espelho a dialogar com nossa própria alienação (“You talking to me?”); ou, quando a nostalgia é irresistível, “We’ll always have Paris”.
O som dos diálogos talvez seja o elemento mais familiar da linguagem cinematográfica, o que ajuda a explicar, por um lado, o seu grande apelo popular (na esteira das radionovelas), como também, por outro lado, a dificuldade que muitos de nós temos em estabelecer uma ligação íntima com os filmes da era do cinema mudo. Quantos de nós, a propósito, já não brincamos de tirar o som de um filme qualquer e observar as imagens estranhamente animadas por uma vida enigmática, cujas figuras humanas parecem mover-se por motivos absurdos, as bocas movimentando-se no vazio? O feitiço do cinema, o seu caráter de sonho, aparece como se exposto pelo avesso, e esse simples exercício lúdico de distanciamento parece retransmitir o estranhamento de volta à realidade; nos pegamos a pensar se, como diz Macbeth, “a vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.” (trad. Beatriz Viégas-Faria)
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Sempre teremos (alguma) Paris
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Paris, Texas parte justamente desse esgotamento da realidade: já tendo perdido a fé no espetáculo inútil de som e fúria da vida humana, um homem de expressão idiotizada atravessa o deserto. Mesmo quando for resgatado ao seio familiar, barbeado, alimentado, cuidado e bem-vestido, ainda não ouviremos a voz de Travis (Harry Dean Stanton), ainda não decifraremos qualquer sentido na sua expressão; a sua recusa ao diálogo cria um elemento de estranhamento na realidade circundante, semelhante ao da tecla mute do controle remoto. Durante o processo de retomada da fé nas palavras, há um momento decisivo durante a projeção caseira de um Super-8 com imagens do passado, também elas mudas. Prepara-se o terreno, assim, para o diálogo mais esperado do cinema.
Diferente do caloroso abraço de reconciliação entre mãe e filho, o reencontro de Travis e Jane (Nastassja Kinski) é intermediado por um vidro-espelho, com as vozes ouvidas através de caixas de som, em um cenário temático artificial, numa cabine escura — metáfora do próprio cinema e da nossa condição de espectadores diante da tela. O falso espelho funciona como meio e obstáculo, a um só tempo, de aproximação e de distanciamento, como uma tela que vai conformando a imagem à narrativa e vice-versa; os elementos da cena remetem para as relações entre o espectador e o filme, entre a ficção da narrativa e a realidade que ela espelha, evidenciando a verdadeira magnitude dos segredos, desejos, desilusões, memórias, arrependimentos e esperanças compartilhados entre o espectador e os personagens.
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A metáfora da sala de cinema reforça que não é o conteúdo do diálogo o que mais importa, e sim que volta a fazer sentido prestar plena atenção no que alguém diz — e que a história contada por um idiota, cheia de som e fúria, tem um significado inerente à sua própria forma, independente do vazio que assola a realidade.
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Familiar agora, estranho antes
Nem sempre as palavras são tão graves e decisivas. Pois há dias que se mostram receptivos, quando não francamente fascinados, com o burburinho das palavras e com o calor humano ímpar dos diálogos. Dizia um conhecido rock nos anos 1980/1990: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada“; a situação que decepcionava os Engenheiros do Hawaii ao assistir os poderosos na TV pode soar particularmente envolvente diante da tela de cinema: eu presto atenção no que Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson) falam sobre Big Mac enquanto dirigem em Pulp Fiction; ou na conversa errática entre Alvy (Woody Allen) e Annie Hall (Diane Keaton) num terraço qualquer de Manhattan em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa; eu presto atenção nas provocações afetuosamente rancorosas entre Martha (Elizabeth Taylor) e George (Richard Burton) em Quem tem medo de Virginia Woolf?; ou nos flertes dissimulados entre Margot (Amanda Langlet) e Gaspard (Melvil Poupaud) em Conto de Verão; presto atenção em tantas conversas ao volante nos filmes de Kiarostami; ou nos eloquentes desabafos das personagens de Almodóvar; e todos eles, de certa forma, não dizem nada, são puro som e fúria, loquazes sombras projetadas numa caverna escura por uma ou duas horas, que passam e nos deixam com uma estranha nostalgia.
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Atualmente, é sobretudo na filmografia do sul-coreano Hong Sang-soo que temos visto uma instigante exploração dos diálogos como fator de relação entre a familiaridade e o estranhamento. São recorrentes, por exemplo, as situações que contrastam o sentido de silêncio provocado pela neve e pelo frio com o falatório verborrágico (e geralmente ébrio) dos personagens, assim como são recorrentes as imagens de Kim Min-hee (a magnífica musa do diretor) sentada sozinha numa sala de cinema deserta, após a termos visto sentada à mesa replicando argumentos com interlocutores. Aqui o cinema já não surge como metáfora, mas como o espaço concreto do encontro profundo do indivíduo consigo mesmo — da “soberania da alma solitária”, para usar os termos de Harold Bloom sobre a leitura de literatura ficcional, crítico que apontava Shakespeare como o inventor do homem moderno, por ter aperfeiçoado a arte do solilóquio e do diálogo a ponto de dar forma à consciência moderna, que nunca cessa de dialogar consigo mesma.
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Em Certo Agora, Errado Antes praticamente todo o conteúdo do filme é repetido, mantendo as situações e alterando apenas as nuances dos diálogos. Mais do que emular uma consciência que dialoga consigo mesma, mais do que provocar reflexões sobre a aleatoriedade dos destinos humanos, sobre a relação entre o acaso e o livre-arbítrio ou acerca da densidade efêmera de cada instante, o que se revela a partir desse recurso é que o cinema talvez seja o meio em que encontramos o melhor equilíbrio entre a tagarelice e o indizível, os dois extremos entre os quais nos debatemos. Se, para o bem ou para o mal, a vida mesma está sempre sujeita a se tornar convencional, o olhar do cinema mostra que mesmo sob a aparente banalidade se esconde um revigorante estranhamento, e que no interior do estranhamento mais inquietante pode haver um convite para sentir-se em casa.
Quando, ao final de Certo Agora, Errado Antes, a personagem de Kim Min-hee sai da sala de cinema e se depara com o mundo, este já não parece o mesmo. Uma surpreendente neve recobre o espetáculo humano, tão apaixonante e tão mesquinho, um espetáculo de som e fúria em que o cinema ocupa um lugar privilegiado; um espetáculo em que prestamos atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada — e isso faz todo o sentido.
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