por Willian Silveira
A tarde era agradável em Cairns, no litoral da Austrália, quando Wim Wenders aceitou que o roteiro de Até o Fim do Mundo (1991) não avançava. Convenhamos, as belezas naturais da região pouco colaboram com a atmosfera do filme, e mesmo o mais compenetrado e taciturno dos diretores pode se distrair. Na esperança de recuperar a produtividade, Wenders avistou a solução em um hotel composto por bangalôs, devidamente afastado do centro da cidade. Alugou um quarto e se mudou para lá, levando algumas notas e a máquina de escrever. Logo no primeiro dia, despertou com o barulho incessante de uma máquina de escrever, vindo do quarto ao lado. Os dias seguintes não foram diferentes. Aos poucos, a situação foi lhe incutindo uma certeza e uma angústia: não estava sozinho para escrever, e o vizinho trabalhava mais, como atestava o som ininterrupto das teclas. O diretor alemão acostumou-se às circunstâncias, sem nunca desconsiderar, porém, que havia algo de competição velada entre ele e o colega. Em uma manhã, após retornar da caminhada, encontrou a dona do hotel e resolveu comentar a situação. O que é que se passa aqui, perguntou bem-humorado, que os escritores escolhem este lugar para trabalhar. Veja bem, senhor Wenders, disse a dona não sem antes pesar as palavras, o senhor é o nosso único hóspede.
A personalidade excêntrica sempre foi o centro criativo do diretor, o mais reconhecido entre os expoentes do Novo Cinema Alemão, junto a Rainer Fassbinder e Werner Herzog, em um movimento nascido no encalço da Nouvelle Vague, nos anos 60. O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (1972), segundo longa-metragem de Wenders, atestou definitivamente a capacidade do realizador de dar conta das fragilidades humanas, amparando-as não sob o campo da moral, mas frente ao território do desejo.
Meu primeiro contato com o diretor alemão veio através de O Céu de Lisboa (1994). As características de Portugal, combinadas em harmonia de som, luz e geografia, me anteciparam uma filmografia impressionante, no sentido fiel do termo, inserindo-me, à época, em um mundo que se revelaria uma sequência de filmes autorais, densos e instigantes.
O passado, no entanto, não ameniza o presente. Em 2014, O Sal da Terra surpreendeu por ser uma espécie de telefilme de luxo sobre a vida e obra de Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro refém do alto contraste e do exotismo da pobreza. Sem entender o que acontecia, atribuí o longa à afinidade de ambos por fotografar lugares ermos, como a série Gênesis, de Salgado. Um ano depois, em uma fria manhã em Berlim, eu sairia da sala de cinema tendo assistido ao pior filme da programação da Berlinale: Tudo Vai Ficar Bem (2015), incursão melodramática fracassada de Wenders no 3D, tecnologia que a cada título demonstra mais a inutilidade da terceira parede na representação.
Foi com igual espanto que, há poucos meses, me deparei com Os Belos Dias de Aranjuez (2016). O trabalho recente de um dos mais importantes cineastas em atividade chegou aos cinemas sem alardes. Silêncio justificado, uma vez que Os Belos Dias é diferente, mas igualmente desalentador. Adaptação da peça do dramaturgo austríaco Peter Handke, o filme tem no centro da narrativa um casal, fruto do trabalho de um escritor isolado em uma casa de campo – como Wenders em Cairns. Os personagens imaginados ocupam os diálogos com memórias de infância, debates sobre masculino e feminino, reflexões sobre a rarefação do tempo e a alteração dos papeis sociais. A metaficção é simplória e, por isso, inoperante. A mise-en-scène parasita o teatro naquilo que a encenação tem de menos criativa, debruçando-se sobre o vício contemporâneo do monólogo. Para um diretor que buscou incessantemente superar a palavra através de imagens, Os Belos Dias aceita a falência da representação e a falta de inspiração de uma cineasta que outrora não permitiria descaso com o mundo simbólico do público. Nada parecido com o que Wim Wenders nos entregou nos anos 80.
Considerado o mais americanizado dos cineastas alemães, pelo tempo que filmou nos Estados Unidos, Wenders manifestou um arranjo temático incomum, combinando nostalgia e metafísica. A primeira, traço cultivado no seio da cinefilia parisiense, quando se mudou jovem para a capital francesa com o intuito de dedicar-se à pintura. O lado germânico, evidenciado nos anos 80, representa uma tradição que, ao seu modo, pensou formas de evitar a profanação do mundo, ressignificando ascese espiritual nas artes, em especial na música, na literatura e na filosofia. No tecido dramático de Wenders, a metafísica assume função narrativa similar ao Deus ex machina nas tragédias gregas. Ao contrário da tradição, porém, que empregavam o recurso como solução para o desfecho, Wim Wenders o considera como aspecto do cotidiano, permitindo aos personagens momentos espontâneos de epifania e de superação do real.
A entrada no novo século revisou as preferências do diretor. Talvez por conta da idade, Wim Wenders tenha deixado de lado a metafísica e a especulação, assumindo o tom nostálgico. A consequência é o afloramento dos sentimentos em tela, como em O Sal da Terra e Tudo Vai Dar Certo, longas que se acomodam na pieguice e na pobreza de recursos dramáticos. Os planos cuidadosos e o discurso de suposta autoridade fazem com que Os Belos Dias de Aranjuez simule aparência distinta, mas acabe por resultar em uma promessa igualmente oca.
Por onde andará Wim Wenders?
Top 10 de Wim Wenders
1) Asas do Desejo
2) Paris, Texas
3) Alice nas Cidades
4) No decurso do tempo
5) Pina
6) O Amigo Americano
7) Movimento em Falso
8) O Estado das Coisas
9) O Céu de Lisboa
10) Até o Fim do Mundo