Nosso amigo Xavier

“Xavier” é um sobrevivente e age nos seus termos — filme e personagem. Por Giovanni Comodo, em parceria com À Pala de Walsh, um ensaio sobre um filme em que Manuel Mozos mostra tudo.

por Giovanni Comodo, em parceria com À Pala de Walsh

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Na última das correspondências trocadas às duas margens do Atlântico entre Estado da Arte e À Pala de Walsh, Luís Mendonça pergunta se é possível estabelecermos uma relação de amizade com um filme a ponto de nos sentirmos abraçados por ele. Respondo que não só isso, há filmes cuja amizade se torna tão cara a nós que precisamos apresentá-los a outros amigos nossos — pessoas físicas, diga-se. Isto de apresentar amigos em comum que ainda não se conhecem é sempre delicado. Quando uma das partes parece desajeitada em sua maneira de ser, pode haver resultados desastrosos em julgamentos equivocados e a provável ligação é desfeita antes de começar. Nestes casos é necessária atenção redobrada. Venho aqui apresentar meu amigo “Xavier”. Há quem o estranhe quando o conhecer, mas depois de lhe dar uma chance, impossível não querer apresentá-lo a tantos outros amigos.

“Xavier” pode parecer à primeira vista um tanto desequilibrado, ou mal-acabado, e não seria à toa em razão de sua história, já contada tantas vezes, inclusive na Pala, de sua filmagem interrompida antes das conclusões e de seus onze anos de lutas por um ponto final. Porém não se engane: “Xavier” é perfeito da maneira que o é, com defeitos e sem desculpas ou bons modos — como aquelas pessoas que não são a alma da festa, mas nas quais podemos confiar sempre.

Manuel Mozos, seu diretor, provaria ao longo dos anos de forma incansável sua habilidade em tomar ruínas e fazer delas catedrais, em ficções e documentários. “Xavier” não é diferente. Temos aqui alguns dos mais ousados cortes e elipses do cinema português. Mas ao espectador que está em um primeiro contato com o filme, pode bem estranhar suas lacunas, suas poucas explicações e resoluções. “Xavier” é um sobrevivente e age nos seus termos — filme e personagem. Ganhamos mais ouvindo-os.

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Pedro Hestnes como Xavier, à direita

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Xavier, personagem, vivido por Pedro Hestnes na maior performance de sua carreira, é um jovem inquieto e à procura de seu lugar em Lisboa. Deixado por sua mãe em um orfanato quando criança, apadrinhado por uma família rica (os Alves), cometeu um erro em uma imprudência de trânsito (atropelou uma menina) pelo qual precisa pagar o processo judicial — 50 mil dinheiros, que bem poderiam ser um bilhão para alguém que nada tem e em começo de vida. Vai andando pela cidade, encontrando amigos, mulheres e trabalhos, mas sempre carregando um incômodo e o peso de todo o mundo no peito. Nada é certo em seus dias e as únicas coisas que lhe pertencem de fato são sua mãe — muda e com tendências suicidas, interpretada por Isabel Ruth — e a amizade de Hipólito, vivido por José Meireles, leal desde os dias no pátio do orfanato.

Hipólito é o ying perfeito do yang de Xavier: alegre, vivaz, extrovertido, forte e bronzeado — pouco se fala na atuação luminosa de Meireles. É também sem freios e infantil, daí sua tendência para a saída fácil de meios menos legais — aos quais Xavier tanto se apegara, já ferido pelos labirintos da Justiça. E generoso: praticamente adota um garoto, Quim, em uma relação mais de irmandade que paternidade, e vai cometendo pequenos furtos para presentear as pessoas à volta — inclusive Xavier, quando se revela a única pessoa disposta a ajudar de maneira concreta a tirar sua mãe do manicômio. Um nobre vagabundo.

É em nome desta amizade que Hipólito impede Xavier de entrar no carro e tomar o mesmo destino sem volta que escolheu para si. Um sacrifício trágico e de poucas palavras — “tu não”, e uma mão espalmada —, pois não é necessário dizer muito ou qualquer coisa além do olhar de Meireles.

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Hipólito (José Meireles)

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A verdade é que se trata de um filme repleto de silêncios porque lida com sentimentos e situações difíceis de serem nomeadas, especialmente quando mais jovem, repleto de descobertas. E, no entanto, Mozos nos mostra tudo.

Ou quase, pois há coisas que não devem ser mostradas — como a morte da mãe de Xavier, resolvida com um poste de luz da rua quebrado e apagado com violência.

É também um filme assombrado pela morte desde suas primeiras cenas, quando a mãe deixa Xavier no orfanato para em seguida sumir entre carros e trem, abruptamente. Durante a projeção, vemos dois funerais, alguns lutos e muitas menções a morte, e outros tantos desencontros que vão se somando a ponto de nunca termos certeza se encontraremos novamente os personagens que saem de cena. A “morte” rondou o filme em si, que por muito pouco simplesmente não existiria.

O filme só foi concluído e lançado graças a garra inabalável de Manuel Mozos e o auxílio de Paulo Rocha, que assumiu a produção do filme e o devolveu para o mundo. Logo Rocha, realizador de “Os Verdes Anos” (1963), espécie de filme-mãe de “Xavier” — em mais uma roda da vida que este filme desenha dentro e fora de si. De um filme repleto de circularidades — talvez todos nós apenas andemos em círculos na vida, afinal — esta extra-filme é uma das suas mais fortes. “Xavier” faz menções diretas a “Os Verdes Anos” nas caminhadas de seu protagonista com Rosa nos limites da cidade, nesses campos sendo devorados por prédios no horizonte, no mal-estar e inadequação com a urbanidade, na juventude em ebulição e, especialmente, na presença de Isabel Ruth. O próprio Mozos já mencionou ver semelhanças físicas entre Hestnes e o jovem Rui Gomes e que, caso o final do filme de Rocha tivesse sido outro, seu Xavier poderia ser o filho de Ilda. Estes dois filmes mais lembrados pela presença da morte a se esgueirar até seu centro são na verdade alguns dos maiores gritos da vontade de existir, na vida e no cinema.

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Hestnes e Cristina Carvalhal (Rosa)

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Talvez seja por isso que tanto nos comove a luta de Xavier por estar vivo e manter a cabeça erguida, em um dos muitos empregos sem saída que vai acumulando durante o percurso, quase um inventário de profissões invisíveis. Ou que cada aproximação de corpos neste filme seja tão repleta de calor — diga-se de passagem que “Xavier” também é um desses casos em que todas as pessoas surgidas diante da câmera são belíssimas, como se os habitantes mais bonitos do país tivessem decidido participar do filme; são muitas as mulheres na rua a trocar olhares com Xavier, em convites muitas vezes despercebidos, outros tantos filmes que não ocorreram.

Entretanto, prosseguimos andando determinados em círculos. Seja na música também circular de Mariana Ricardo que envolve todo o filme, seja no fado cantado por Fernanda (“o amor me faz passar tão mal […] e repeti todos os erros de então”), sejam nos eternos retornos aos mesmos lugares do filme, ou nas mesmas atitudes, pequenas e grandes — como na corrida desvairada de carro que Xavier se lança na noite do falecimento da mãe, agora com Luísa de passageira, com uma diferença fundamental: Xavier consegue parar o carro no último instante, sem ferir ninguém. Há esperança, aprendemos com nossos erros, parece dizer Mozos. Não muito, mas o suficiente.

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(Reprodução)

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Xavier, um Holden Caulfield português, um ousado rapaz do trapézio suspenso, um Bandini da Mouraria, o Heathcliff da família Alves. O Naughty Boy que se revela wonder(ing) boy de Keats nos últimos versos, nunca mencionados, do mesmo poema que parece guiar o filme:

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So he stood in his shoes

And he wondered,

He wondered,

He stood in his shoes

And he wondered.

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Com o final do filme ficamos sem saber para onde vão Xavier e seus tantos outros colegas. Mas podemos ter esperanças de que estarão melhores de alguma maneira, mesmo acumulando mais perdas e cicatrizes do que conquistas, como nós tantas vezes. E podemos revê-los, estão a nossa espera porque o filme existe e isto é o que importa. Ainda que, escandalosamente, não haja uma boa cópia disponível sequer em DVD — cabe à nossa parte imaginar os carmesins, amarelos e azuis na cópia esgarçada que tanto circula na internet (as ruínas impressionantes de Mozos, novamente).

Muitos lamentam sobre o que teria acontecido se o filme tivesse sido lançado na época da realização, sobre uma revolução que poderia ter acontecido. Entretanto, cá estamos, ainda dividindo o pão e as lutas com Xavier. Um filme como este é revolucionário sempre que se pressiona o play. Há aqui um amigo para todas as horas.

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Agradecimento: aos colegas participantes do Clube do Filme do Atalante, onde debatemos este filme. Não há crítica sem conversas — sejam vídeo-chamadas ou correspondências além-mar.

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