‘Z’, ou a eterna glória de explorar

Tudo se passa em 'Z: A Cidade Perdida' como se Gray conseguisse sintetizar as aptidões de pintor de atmosferas às necessidades de uma estrutura que abrevia longos intervalos da trama ou associa livremente passagens de diferentes regimes de temporalidade.

Uma parceria do Estado da Arte com a Foco – Revista de Cinema.

Por Bruno Andrade

Minutos antes de uma investida na Batalha do Somme, durante a I Guerra Mundial, vemos o major Percival Fawcett, personagem de Charlie Hunnam, encostado contra uma ravina, terminando de fumar um cigarro. Ele tira do seu capote o que parece ser um terço ou um relógio de bolso. Olha-o rapidamente, guarda-o e desce para ter uma palavra com os homens do seu batalhão, os quais nos serão mostrados como uma massa apinhada de capacetes sujos, rostos fatigados, corpos abatidos e cabisbaixos.

Mas voltemos à cena anterior. Fawcett aparece isolado dos homens que tem sob o seu comando, enquadrado de baixo para cima, emoldurado pelo céu cinza e por uma atmosfera puída e enevoada. Ele fita por alguns segundos esse céu soturno e acinzentado, como se por um breve instante procurasse alguma coisa que o desautorizasse ou o orientasse na difícil missão que tem pela frente. Ainda na sequência anterior ele soube, através de uma vidente capturada em linhas inimigas, que o seu destino está reservado à descoberta “de uma vasta terra ornada por povos”, e a última coisa que ele diz antes de o vermos sozinho nas trincheiras, olhando para os céus, é que “deve buscar outro lugar para apagar a chama”. Na sequência seguinte dirá aos soldados, antes de lançá-los à batalha, que no passado acreditava que o que fazia um homem era arriscar tudo pelo rei e pela pátria, por estatuto e patente, mas que as suas viagens (Fawcett explorou a floresta amazônica, e até este momento do filme o acompanhamos em duas de suas expedições – a primeira um sucesso, a segunda um fracasso) ensinaram-lhe que tais ambições são meros fantasmas, e que o que importa é lutar pelos entes queridos, mas que como estes não estão ali, ele e seus homens devem lutar uns pelos outros.

Fawcett, sabemos agora, tem algo além da sua parentela a perder nessa batalha, e a última coisa que vê antes de avançar com os seus soldados sobre linhas inimigas é uma ilustração que simboliza Z, o lugar que almeja como destino, a cidade perdida no meio das selvas, a qual talvez lhe permita “apagar a chama”. A batalha se revela um fracasso, e Percy, além de perder um dos homens que teve como companheiro de viagem nas expedições, acaba temporariamente cego por ter se exposto ao gás de cloro. Ele recobra a visão, regressa ao seio familiar, permanece pela primeira vez próximo à mulher e aos filhos por um longo intervalo de tempo e anos mais tarde ele e o seu primogênito seguirão numa derradeira expedição, da qual nunca mais retornarão.

A construção que encadeia os três parágrafos acima – sinuosa, com várias voltas, retomando um ponto que já havia sido descrito e avançando até retomar a linearidade cronológica – emula, de certa forma, a construção do último filme do cineasta americano James Gray. O risco de resultar truncada é imenso, e a única coisa que pode contornar esse risco seria a referência a um centro. O centro do filme é, como o do parágrafo acima, a figura deste homem que olha para um céu amorfo em busca de alguma resposta e é levado a procurar esta em si mesmo, naquilo que será verdadeiramente uma jornada interior.

Mais do que um heroísmo normatizado, o que vemos na sua trajetória é uma obstinação, um alheamento que parece refletir uma busca íntima, a qual não deixa de resvalar numa espécie de egoísmo: segundos antes de mandar centenas de homens à morte num campo de batalhas, tudo o que consegue pensar é nas selvas que monopolizam a sua obsessão de desbravador e expedicionário. Esse traço da personagem de Fawcett, e a maneira como Gray estrutura a narrativa em torno dele, já nos bastaria para destacar um dos aspectos mais fascinantes de Z: A Cidade Perdida: ao contrário do herói épico, que age pelo grupo, conectando-se à experiência coletiva, o herói aqui é motivado por uma ação mais egoísta.

Observamos que subsiste ainda hoje uma dificuldade indiscutível – mesmo em 2018, com séculos de capitalismo – em se assimilar um herói que não passa exatamente por um poço de generosidade. Gray poderia ter feito um grande filme épico, mas há um aspecto de Z que contraria tal ambição e que precisa ser ressaltado: enquanto no filme clássico a acumulação de proezas revela o heroísmo do herói, suas faculdades positivas e suas aptidões, através de um conjunto de ações e de ideias que só fazem sentido dentro do grupo ao qual este herói pertence, no filme de Gray a acumulação de fracassos é o que revela a verdadeira natureza do protagonista, a qual procede de uma individualidade ferrenha marcada pela obstinação na solidão, nos erros, na inconstância e no vínculo com os aspectos mais problemáticos da sociedade em que vive. Muito se falou a respeito do desejo de ruptura de Fawcett em relação à sociedade inglesa, mas mesmo esse desejo parece mais uma reação egocêntrica do protagonista a um ambiente que o rejeitou repetidas vezes, sob os auspícios de um descrédito imposto pelas falsas virtudes dos seus contemporâneos. Em termos narrativos o desprendimento de Fawcett em relação à sociedade inglesa surge apenas após o abandono da ambição de pertencimento a essa sociedade, o que lhe permite encarar o caminho adiante – seja em meio à guerra, junto com a família no interior inglês ou em meio a uma nova tentativa de exploração na selva amazônica – como um homem relativamente livre, um espírito relativamente curioso.

Esse comportamento de Fawcett também permite que nos arrisquemos a deduzir alguns aspectos que, se outrora nos pareceram periféricos ou incompletos, agora ganham contornos definitivos o suficiente para nos referirmos a eles como os mais profundos da obra de Gray. Por mais que sua ambição tenha pontos de contato com o filme clássico, seu cinema é outro: impuro, vulnerável, opaco, fortemente calcado na subjetividade das personagens e não na objetividade dos fatos.

A épica lhe escapa, e não surpreende que seus filmes sejam menos atormentados pelo que lhes escapam do que pelo que permanece de classicismo neles. Se em um filme de Raoul Walsh ou Edward Ludwig a simplicidade domina a estruturação das formas e as complexidades, os conflitos, as zonas obscuras ficam reservadas à figuração dramática, em Gray a simplificação das personagens evidencia aspectos que transcendem a composição e a caracterização psicológica, o que o leva a abandonar a cada novo filme o terreno do romance realista, novelístico, para se refugiar cada vez mais no romanesco puro (é também o caso, igualmente incompreendido, dos filmes recentes de Michael Mann). As elipses ora fazem a narrativa avançar peremptoriamente, ora aglomeram fora da linearidade novelística tempos e espaços ficcionais distintos. As relações dramáticas se repercutem fora da curva habitual da causalidade, pois a trajetória que ela descreve – a de um homem que precisa abandonar tudo para achar o seu caminho – não teria como se sujeitar a uma construção convencional.

O trabalho de Gray, que parte dos aspectos tradicionais de um gênero para deslocá-los através de uma construção que em nenhum aspecto é genérica, tem a sua equivalência não em obras como O Tesouro Perdido do Amazonas (Edward Ludwig, 1954), Almas Selvagens (Jacques Tourneur, 1953) e O Rugido da Morte (Hugo Fregonese, 1958), com as quais guarda apenas semelhanças superficiais, temáticas, mas com o que tentam Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Michelangelo Antonioni em O Mistério de Oberwald (1980), Sergio Leone em Era uma Vez na América (1984), Manoel de Oliveira em “Non” ou a Vã Glória de Mandar (1990) e mais recentemente Raoul Ruiz em Mistérios de Lisboa (2011). Ao contrário do que ocorre na narrativa clássica, em que a beleza põe em evidência o sentido do mundo, a jornada de Fawcett e a jornada do filme descrevem uma espécie de aventura da consciência, que precisa se deparar com obstáculos estruturais para ascender a um entendimento superior. Estamos, assim, em pleno romanesco, é não é de se estranhar que Gray o elabore em uma narrativa passada no fim da Era Vitoriana, durante a qual tudo o que outras sociedades fazem ainda hoje sorrateiramente – as formalidades, os cuidados com o outro em situações delicadas, o falatório, a difamação, as deslealdades – era feito, por circunstâncias relativas à etapa em que a Inglaterra se encontrava no desenvolvimento da sua constituição social e da sua história, um pouco mais às claras, e às vezes para o conhecimento público.

Por algum tempo, pelo menos durante os lançamentos dos seus quatro primeiros filmes, o talento de Gray como retratista foi considerado como mera extensão da sua habilidade como narrador, quando na realidade o primeiro sistematizava o segundo em tramas suficientemente restritas a certas convenções dos gêneros cinematográficos (o filme policial em Fuga para Odessa, Caminho Sem Volta e Os Donos da Noite; o filme romântico de educação sentimental em Amantes). Esse papel da composição plástica parece ter acompanhado o desenvolvimento da narrativa em uma forma de extrapolação barroca, cujos primeiros indícios já podiam ser detectados em Amantes, mas que em Era uma Vez em Nova York fundava a própria passagem para o romanesco.

Tudo se passa em Z como se Gray conseguisse sintetizar as aptidões de pintor de atmosferas às necessidades de uma estrutura que em inúmeros momentos abrevia longos intervalos da trama ou associa livremente passagens de diferentes regimes de temporalidade, o que tem seu contraponto na luz que incide sobre mobílias e rostos nas cenas de interior, na cor dourada que se torna um verdadeiro tema do filme (o corpo do veado recém caçado logo no início, a tinta no rosto dos índios da tribo que captura Fawcett e seu filho, as chamas que encandecem a trajetória final do protagonista), na totalidade de uma exuberância plástica que fornece à palheta de Gray possibilidades que ele não tivera nos filmes anteriores.

Testemunhamos uma atualização do romanesco através do barroco das imagens, e de certa forma trata-se do coroamento da vocação de um cineasta que abandona os rincões de Brighton Beach e da sua vizinhança para arriscar a composição de novas formas, a descoberta de novas paragens, e através destas chegar a novas possibilidades de visão. Nos instantes finais o foco da narrativa é deslocado: é agora a esposa de Fawcett, Nina (Sienna Miller), que se encarrega das preocupações do marido desaparecido. A chama foi passada, e cabe a Nina seguir com a incumbência de explorar – não mais nos confins da Amazônia, mas no vasto país da alma.

 

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