Editorial: a autonomia da cultura e uma nova fase do Estado da Arte

O Estado da Arte volta à cena e dá início a uma nova fase de sua existência. Se, por um lado, nada muda nos valores que nortearam nossas atividades e nossas publicações, por outro, é preciso reconhecer direções e atitudes distintas que marcam esta retomada.

Quando o Estado da Arte foi criado, em 21 de Setembro de 2016, os fundadores do projeto, Marcelo Consentino e Eduardo Wolf, assim apresentaram esta plataforma que por primeira vez ia ao ar no portal do jornal O Estado de São Paulo:

Esperamos criar um espaço que conecte o público com nosso patrimônio cultural de modo vivo e atual para que o conhecimento do passado seja uma experiência contemporânea e relevante e para que essa ligação renovada com as grandes figuras de nossa história seja instrumento presente e constante para as reflexões cada vez mais urgentes que nosso tempo nos convoca a fazer. Queremos, enfim, oferecer uma versão do debate de ideias que não negligencie a história de nossos desafios e de nossas soluções e que contemple com a devida clareza a constelação de conexões que se estabelecem entre os múltiplos problemas que temos diante de nós.

Pensado desde sua origem como uma plataforma digital multimídia que integrasse a tradição do ensaísmo cultural em textos com podcasts e vídeos — e sempre gratuito e de livre acesso —, o Estado da Arte manteve um compromisso firme com os valores expressos naquela apresentação. Em seus seis anos de história, entre 2016 e 2022, em um ritmo expressivo de crescimento de publicações, entrevistas e conteúdos diversos, nosso projeto esteve alinhado com uma história rica do jornal O Estado de S. Paulo, nosso parceiro de mídia, casa do célebre Suplemento Literário.

Idealizado por Antonio Candido e Décio de Almeida Prado, o Suplemento  buscava, de um lado, não concorrer com as seções usuais do jornal, nem jamais apelar para atrair leitores; de outro, dar primazia à crítica sobre o comentário ligeiro e exigir o rigor e a clareza, “inclusive dos colaboradores de filosofia e de ciências humanas”. Igualmente, ao longo desta sua curta existência — primeiramente editado por Eduardo Wolf (2016-2020), a seguir, por Gilberto Morbach (2020-2022) —, o EA funcionou efetiva e reconhecidamente como um espaço para intervenções no debate público sobre temas por vezes dramáticos, ao modo de uma certa tradição intelectual importante em que o conhecimento acadêmico e científico especializado andava de par com o diálogo social mais amplo. Mesmo com as significativas mudanças que alteraram fundamentalmente e em definitivo a natureza da atuação intelectual na esfera pública, mostrava-se — e inúmeros projetos, no Brasil e pelo mundo, provam-no — que alguma versão da “grande conversação” ainda era e é possível. 

Giuseppe Maria Crespi. “Due sportelli di libreria con scaffali di libri di musica” (c. 1725).

Após um período de inatividade, o Estado da Arte retorna à cena e dá início a uma nova fase de sua existência, com Júlia Corrêa e Marcelo Consentino à frente da edição e da direção executiva. Se, por um lado, nada muda nos valores que nortearam nossas atividades e nossas publicações, por outro, é preciso reconhecer direções e atitudes distintas que marcam esta retomada.

Primeiro, em face do amesquinhamento e das tensões paralisantes de parcela significativa das discussões políticas — marcadas pelo faccionalismo sensacionalista e pela desinformação estratégica —, faz-se necessário um distanciamento da pressão das “pautas quentes”, que contaminam mesmo as reflexões mais fundamentadas e especializadas e distorcem os propósitos de se robustecer o pensamento por meio da reflexão mais detida e aprofundada.

Segundo, a agudização dos efeitos perniciosos (e em múltiplos níveis) da como que onipresença das mídias sociais faz-se sentir de modo particular no domínio da cultura, em que a pressão do imediatismo, do superficial e do apelativo — todos velhos vícios — assumiu forma e potência inéditas e impeditivas para a atividade analítica, crítica e autônoma.

Terceiro, um longo processo de colonização da cultura e da vida do espírito pela política — assim, com “p” minúsculo, mesmo — tem tomado e toma à força o domínio que é legítimo da expressão da literatura, da música, do cinema e das artes em geral, assim como das ideias filosóficas e humanistas, impedindo o livre curso do pensamento acerca de questões essenciais da vida humana. Contra esta colonização e em defesa da autonomia da cultura, o Estado da Arte põe-se a serviço de seus leitores.   

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