Era uma vez um rei chamado Pedro II. Pedro era um monarca reformista, mas trapalhão. No primeiro dia de seu reinado, ele sentou-se ao trono e decidiu revogar todas as leis que vigeram no reinado de seu pai, Pedro I. Alarmados, mas obedientes, seus súditos fizeram tabula rasa do direito nacional e aguardaram, não sem certa apreensão, pela palavra do rei sobre como poderiam ou deveriam comportar-se. Nos meses que se seguiram, Pedro II esforçou-se para engendrar um novo sistema jurídico, mas falhou em uma tentativa após a outra. Primeiro, ele simplesmente não fez lei nenhuma, decidindo todos os casos do zero conforme os súditos os levassem à Corte; depois, elaborou um código de leis, mas manteve-o em segredo; em seguida, divulgou-o em um Código Real, que, entretanto, era incompreensível de tão obscuro e contraditório. Em cada uma de suas tentativas — oito, para ser exato — Pedro II tentou, mas falhou, em criar um sistema jurídico, simplesmente porque as ordens, regras e princípios que ele pretendia que valessem como direito não podiam ser compreendidas ou obedecidas por seus súditos.
Quando a parábola que dá origem a essa história foi publicada pela primeira vez, na edição de 1964 do livro The Morality of Law, seu autor, o jurista norte-americano Lon Luvois Fuller (1902-1978), fazia uma afirmação forte sobre o direito. Ele argumentava que cada um dos erros do rei (chamado de “Rex” na história original) ilustrava, por contraste, um princípio de juridicidade. Ao deixar de fazer leis gerais, decidindo sempre ad hoc, o rei mostrava que o direito precisa de generalidade; ao fazer leis muito obscuras, que clareza era um princípio de juridicidade. Na história original, Fuller chega a oito princípios: generalidade, promulgação, irretroatividade, clareza, não-contradição, possibilidade de cumprimento, estabilidade e congruência entre norma declarada e ação dos agentes.
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Sua afirmação é forte porque Fuller defendia que esses princípios não são apenas virtudes contingentes que sistemas jurídicos podem ter ou não ter, mas condições necessárias da juridicidade: um sistema que falhasse completamente em alcançar um dos oito princípios ou que falhasse substancialmente em vários não era apenas direito ruim, mas não-direito. A um artefato social assim defeituoso simplesmente não podemos atribuir o adjetivo “jurídico” porque é da natureza do direito poder ser compreendido e obedecido pelos sujeitos cujas vidas são regradas por ele.
Neste ensaio, gostaria de apresentar Fuller, esse autor pouco discutido fora da academia jurídica, mas em processo de redescoberta no Brasil. Em especial, pretendo explorar a tese de que um dos oito princípios fullerianos de juridicidade — o último, que determina que o comportamento de autoridades em um sistema jurídico precisa ser congruente com o conteúdo das normas desse sistema — é de especial interesse para nossos problemas especificamente brasileiros. Argumentarei que o jeitinho, esse vício ou virtude tão brasileiro quanto a jabuticaba, se suficientemente alastrado pela estrutura institucional de um sistema de justiça, pode se tornar um veículo para opressões graves e colocar em xeque a própria juridicidade de um sistema de normas.
Começo explicando no que consiste o princípio da congruência. Depois, discuto incongruência nas instituições jurídicas do Brasil a partir de três exemplos históricos. Concluo defendendo que, quando levado a extremos, esse problema gera uma crise de direito e de justiça no Brasil.
Direito para inglês ver
O princípio da congruência é constitutivo de qualquer sistema jurídico porque sua ausência transforma o direito em uma forma de malandragem. É teoricamente possível obedecer às leis de um sistema severamente incongruente — o que distingue esse princípio do da clareza, por exemplo, ou da estabilidade, cujas faltas tornam o direito inapto a ser cumprido —, mas essa obediência perde seu propósito porque, nele, o que a lei diz simplesmente não tem relação com o que as autoridades públicas fazem.
Essa circunstância é um pouco diferente dos problemas que Fuller discute diretamente. Em The Morality of Law, a maior parte do texto dedicado a esse princípio de juridicidade, que o autor considera ser o mais complexo dos oito, explora problemas de interpretação jurídica. Ele discute, por exemplo, o que acontece quando autoridades públicas — juízes, delegados de polícia, ministros de Estado e todo outro sujeito que age imbuído de uma autoridade juridicamente determinada — se veem na posição de decidir o que fazer em casos não previstos pela lei, agindo de maneira criativa e, em certo sentido, incongruente com as leis declaradas.
Mas não é preciso ir longe para imaginar problemas mais graves de incongruência. O maior exemplo de sistema não-jurídico na obra de Fuller foi o da Alemanha nazista. Em “Positivism and Fidelity to Law”, um artigo publicado em 1958 em resposta a um dos textos jurídicos mais importantes do século XX — “Positivism and the Separation of Law and Morals”, de H. L. A. Hart (1907-1992), publicado no mesmo volume do Harvard Law Review —, Fuller defende que o “direito” nazista não era problemático “apenas” porque desumanamente injusto, mas também porque os maiores horrores cometidos contra a humanidade pelos oficiais do Terceiro Reich foram cometidos não pela, mas à revelia da lei declarada. Autoridades e membros do Partido Nazista agiam, em alguns casos, em um espaço “supralegal”, para além da normatividade das leis que vigiam na Alemanha antes de 1933, quando um decreto inconstitucional deu a Hitler poderes supremos no país. Esse espaço, chamado pelo jurista judeu alemão Ernst Fraenkel (1898-1975) de “Estado de prerrogativa” (Massnahmenstaat), era o espaço em que essas autoridades exerciam o arbítrio contra as pessoas que perseguiam, mesmo em processos judiciais.
Esse fenômeno é uma patologia jurídica por violar, entre outros princípios, o da congruência: quando um oficial da Schutzstaffel — a SS, organização paramilitar vinculada ao Partido Nazista — condenava um alemão judeu, roma, homossexual ou socialista à prisão (ou pior) sem o cometimento de nenhum crime, esse oficial não podia apontar para uma lei que o autorizasse à prática dessa atrocidade, porque nenhuma lei com esse teor existia. Dessa maneira, o Terceiro Reich e outros regimes ditatoriais eram e são capazes de exercer poder arbitrário sem assumir os riscos envolvidos em publicizar suas intenções nefastas por meio de direito claro e promulgado. Como aconteceu no Brasil, aliás, que, no século XIX, continuou praticando o tráfico de pessoas escravizadas após aprovar uma lei que o proibia, esses regimes fazem leis “para inglês ver”.
Essa é, assim, uma das maneiras pelas quais um sistema jurídico pode ser incongruente. Outras, que Fuller cita, incluem interpretação equivocada, inacessibilidade do sistema de justiça, suborno e preconceitos. Mas e o jeitinho brasileiro de ser incongruente, como é?
Sua Excelência, Doutor Macunaíma
Incongruências entre a lei e o comportamento de autoridades podem ser difíceis de identificar e descrever quando são difundidas por estruturas consolidadas. Acredito que esse seja o caso do Brasil, um país onde a congruência falha em situações tão numerosas que passam despercebidas pelo cotidiano e passam a integrar o funcionamento normal, quase esperado, das instituições. Mas há também instâncias desse defeito que são danosas e gritantes e, por isso, exemplares.
Vamos voltar, para começar, à lei que deu origem à expressão “lei para inglês ver”, mencionada na última seção. Embora a famosa Lei Áurea, que declarou “extinta a escravidão no Brasil”, date de 1888, o século XIX viu serem promulgadas várias outras leis que restringiam — no texto, ainda que não na prática — a escravidão. A mais importante delas é a lei de 7 de novembro de 1831, que declara livres as pessoas escravizadas que ingressam no território nacional e determina a punição penal de seus traficantes. Seu efeito prático provavelmente teria sido a gradual extinção da escravidão de seres humanos no país, já que essa forma de exploração dependia de um influxo constante de pessoas sequestradas e trazidas do continente africano para trabalhar nas Américas.
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A lei, entretanto, foi muito pouco observada. O tráfico brasileiro de pessoas escravizadas não só perdurou como seguiu crescendo até o final da década de 1840. Em 1874, o Conselho de Estado, órgão incumbido de interpretação constitucional no Brasil imperial, reconheceu que a lei não vinha sendo cumprida e que seria “revolucionário” declarar livres as pessoas escravizadas traficadas após sua promulgação. Mesmo na década de 1880, 50 anos após a promulgação da lei, o advogado abolicionista Luís Gama — ele próprio ilegalmente escravizado — a invocava para defender a liberdade de seus clientes ilegalmente traficados, e chegou a publicar um célebre artigo, intitulado “Questão Jurídica”, defendendo a subsistência dos seus efeitos.
Apesar da existência de uma lei vigente, validamente promulgada, apta a ser instrumentalizada como artifício retórico pelo Império em sua diplomacia, juízes e outras autoridades falhavam em cumpri-la, perpetuando, por décadas, a opressão mais nefasta que o direito brasileiro já admitiu. A lei declarava um Brasil menos conivente com a escravidão humana, mas com uma piscadela de quem sabe quem não vai ser muito levado a sério; as autoridades, querendo evitar uma “revolução”, davam o seu melhor para evitar cumpri-la. A “lei para inglês ver” é incongruência da pior espécie.
Embora nossa ditadura civil-militar tenha sido bastante frontal sobre muitas de suas práticas autoritárias — reconhecendo-se como ditadura durante a reunião que resultou na promulgação do AI-5, por exemplo —, uma que nunca foi oficialmente endossada em lei formal foi a da tortura. Apesar disso, militares e alguns civis torturaram quase duas mil pessoas com fins políticos. Os torturadores atuavam sob ordens ou leniência das Forças Armadas e à revelia da lei.
Reconhecer explicitamente a tortura como um instrumento de repressão seria danoso para o regime mesmo no clima geopolítico das décadas de 1960 e 1970, além de uma violação ao direito internacional. A ditadura lançou mão, então, de um jeitinho: fez que não via e contava que quem desse de cara com um torturador teria a esperteza de olhar para o outro lado e sair andando. A aposta deu certo e, como sabemos, torturadores seguem anistiados e impunes, e até homenageados no Congresso Nacional.
Meu terceiro exemplo diz respeito ao sistema carcerário brasileiro, uma fábrica de violações a direitos em relação à qual não temos nenhum distanciamento histórico: elas continuam acontecendo, enquanto este texto é escrito. Algumas dessas violações dizem respeito a direitos fundamentais com alguma abstração — saúde, segurança, integridade física, unidade familiar, educação —, mas outras violam regras muito claras e específicas de leis formais — celas com área mínima de 6 metros quadrados com lavatório e sanitário e acesso a creches para filhos de mães presas, por exemplo (arts. 88 e 89 da Lei de Execução Penal).
A lei não chega a ser generosa, mas procura tratar com humanidade o sujeito encarcerado. A realidade do encarceramento na maior parte dos estabelecimentos prisionais brasileiros, por outro lado, é desoladora. No julgamento de uma ação sobre o tema (ADPF nº 347), o STF comparou-a ao “Inferno de Dante” e reconheceu o que chamou de “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, uma realidade de antijuridicidade tão arraigada e difundida que o único remédio à mão do Judiciário seria declará-lo e determinar mudanças estruturais. Quase uma década depois dessa decisão, a iniciativa do Supremo não funcionou. Autoridades penitenciárias, governadores e polícias seguem custodiando um sistema dantesco, incongruente com o mínimo de humanidade que a lei promete aos detentos.
Não é difícil pensar em outros casos: o recebimento generalizado de supersalários pela elite jurídica do funcionalismo público, o jogo do bicho, a prática de molhar a mão de guardas de trânsito. Em todos eles, o Estado e suas autoridades se valem de uma malandragem digna do anti-herói Macunaíma para fingir que está tudo certo quando as promessas que ele faz a seus cidadãos por meio do direito são ignoradas e descumpridas. Os exemplos que dei nesta seção, porém, são ainda mais graves, por terem em comum consequências particularmente nefastas da incongruência entre lei e comportamento de autoridades. Neles, a malandragem jurídica foi um instrumento para que o Estado perpetrasse horrores contra sujeitos que tiveram suas vidas arruinadas, mesmo diante de uma lei que afirmava protegê-los. Isso nos leva a um terceiro ponto: o que a incongruência faz com a justiça e a juridicidade de nosso direito?
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Do jeitinho ao horror
Comecei este texto dizendo que Fuller fazia uma afirmação forte ao conectar o direito a princípios necessários de juridicidade. Sua afirmação, porém, era ainda mais forte do que isso. Fuller afirmava que um sistema de regras que atende a esses princípios — ou seja, um sistema jurídico — é, por isso, melhor do que um sistema que não os atende, que um despotismo puramente arbitrário. O direito é algo bom. Ele traz algo de moralmente benéfico à vida em sociedade, algo que permite a convivência pacífica entre sujeitos com ambições e valores distintos ao regrá-la à luz de um sistema inteligível.
Esse valor dos sistemas jurídicos é, para Fuller, uma moralidade interna. O adjetivo se contrapõe, aqui, à moralidade, digamos, externa, ou seja, à própria justiça de um sistema normativo. Esse ponto é complicado e tem sido a causa de maior controvérsia sobre a obra de Fuller, despertando a veemente discordância de outros luminares da filosofia jurídica no último século e meio, como o já mencionado H. L. A. Hart e seu discípulo Joseph Raz (1939-2022). Mas o que ele quer dizer, em suma, é que — claro — o governo pelo direito não assegura que cada lei individual será justa, ou mesmo que o sistema atenderá a critérios de moralidade extrajurídicos. No entanto, há um valor a ser alcançado por meio do império da lei, e esse valor é moralmente bom. Que valor é esse?
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Os exemplos da seção anterior ilustram, novamente por contraste, qual é esse valor. Ao falharem em seu dever jurídico de congruência, as instituições brasileiras quebraram a confiança de seus cidadãos ao violarem promessas que essas mesmas instituições fizeram: a de não ser sequestrado na África para trabalhar como escravo no Brasil; de não ser torturado por se opor ao regime; de ser tratado com alguma dignidade no encarceramento das penitenciárias. Um sistema jurídico tem a virtude fomentar essa confiança e permitir que as instituições sejam cobradas, inclusive internacionalmente, pela promessa que fazem. O jeitinho, a malandragem e conivência criam um descompasso entre promessa e realidade, que não pode ser remediado pelas vias institucionais porque é extra-institucional e extrajurídico. A incongruência do jeitinho é o que torna o guarda da esquina — para parafrasear Pedro Aleixo em seu famoso comentário sobre o AI-5 — a instituição mais perigosa do Brasil. Bastam uma piscadela e um aperto de mãos entre malandros para que o que diz a lei seja deixado de lado ele escape de qualquer enrascada.
Dito isso, não acredito nem que defeitos de congruência sejam apenas brasileiros, nem que o “jeitinho” seja inequivocamente um problema para as instituições políticas e sociais. Acho, porém, que há um jeitinho especificamente brasileiro de se ser incongruente, que gera tensões com um sistema jurídico que, mesmo entre nós, tem matriz eurocêntrica e liberal. Os atritos produzidos pela sua importação para esta nossa semiperiferia tropical podem indicar que o que precisa mudar é o nosso modo de ordenação social, não nosso jeitinho. Se nossa torta ficou ruim com jabuticabas em vez de morangos, talvez seja melhor mudar a receita de doce do que o ingrediente autóctone.
Mas algo precisa mudar. O resultado de nossa malandragem jurídica às vezes é só incômodo, quase cômico, mas às vezes é grotesco. A falta de congruência nas instituições de nosso Estado aflige nosso direito de uma patologia. Nos extremos, essa doença esgarça da juridicidade até seus limites e, talvez, para além deles, e para dentro do terreno do autoritarismo e do arbítrio.
Arthur Cristóvão Prado é graduado, mestre e doutor em direito pela USP, com passagens pela Freie Universität Berlin e pela University of Toronto. É advogado da União desde 2017. Publicou o livro Herança, desigualdade e tributação: o que há de errado com a transmissão hereditária de grandes patrimônios? (Editora RT, 2022).