Você já imaginou como seria viver em uma sociedade ideal, perfeitamente justa, onde todas as pessoas são livres, sadias, educadas, virtuosas, generosas, cada uma agindo conforme as suas capacidades, cada uma recebendo conforme as suas necessidades? Seria como emergir das cavidades e penumbras de uma caverna vitalícia, deslumbrando-se com as cores, os movimentos, a densidade e a vida do mundo real. Mas é desconcertante que quem entra na Cidade Ideal de Platão parece percorrer o caminho inverso. Nossa sensibilidade moderna se choca com visões contra-intuitivas – como o regime do comunismo austero das elites, sem família, nem posses – ou mesmo perturbadoras – como o controle da poesia e das artes em nome da moral, a eugenia e a compartimentação por castas, ou, sobretudo, o repúdio à democracia eleitoral como antessala da anarquia e da tirania. Como conciliar essa estrutura estreita e rígida com lampejos visionários, como a abolição da escravidão ou o igualitarismo total entre homens e mulheres?

Não surpreendem os 2.400 anos de controvérsias inflamadas entre quem adora a República como uma utopia luminosa – o prenúncio do Reino dos Céus – e quem a detesta como uma distopia tenebrosa – a mãe de todos os totalitarismos.
Mas ninguém negará que Platão alicerça a construção de sua cidade “bela e boa” nas questões essenciais: o que é a justiça? o que é a felicidade? é possível ser injusto e feliz – ou justo e infeliz? E mesmo as críticas mais densas dos críticos mais ardentes não deixam de ser uma homenagem ao tour de force de Platão em busca do equilíbrio e da hierarquia entre a dimensão religiosa, a política e a econômica que compõem toda a sociedade humana, assim como entre a razão, a vontade e a emoção que movem toda alma humana.
Nenhuma outra obra platônica ilustra tão completamente o dito de Alfred North Whitehead de que a história da filosofia não passa de “uma série de notas de rodapé a Platão”. Em sua busca pelo Estado ideal, o protagonista Sócrates extrapola a política, investigando a ética, a estética, a metafísica, a epistemologia, a pedagogia, a psicologia e até a física para oferecer uma síntese audaciosa entre a arquitetura do universo e a anatomia da alma. Seu anseio pela fusão do saber e do poder produziu algumas das alegorias poéticas mais fecundas da história do pensamento – o mito da caverna, o sol como imagem do Bem, o Estado como um navio, a odisseia da alma no além-mundo.
E aprove-se ou não os caminhos e estratagemas de Platão para responder à pergunta crucial sobre a Justiça, a resposta – medida pelas grandes lideranças morais e religiosas da humanidade – segue impecável: o vigor de uma civilização é antes de tudo uma questão de ordem interior, e é sempre preferível ser justo, mesmo sofrendo as mais cruéis injustiças, do que gozar de prazeres, riquezas e glória praticando injustiças.
Ame ou odeie a República, o certo é que nenhum pensador jamais ficou indiferente a ela. Hoje, como sempre foi e, previsivelmente, sempre será, a República é uma poderosa fonte de inspiração para pensarmos quem somos – e o que poderíamos ser –; e para investigar como construir uma sociedade justa – e como sermos justos em um mundo injusto.
Convidados
Gabriele Cornelli: professor de Filosofia Antiga da Universidade de Brasília e ex-presidente da International Plato Society.
Luca Pitteloud: Professor de Filosofia Antiga na Universidade Federal do ABC e Pesquisador pela Universidade Autónoma de Madri.
Maria do Céu Fialho: professora de Línguas e Literaturas Clássicas da Universidade de Coimbra.
Referências
- Paidéia. A formação do homem grego (Paideia), de Werner Jaeger
- Ordem e História. Volume III. Platão e Aristóteles (Order & History), de Eric Voegelin.
- Platão. História da Filosofia Grega e Romana Vol. III. (Storia della Filosofia Greca e Romana), de Giovanni Reale.
- “Platão”, em História da Civilização. Vol. II. A Vida na Grécia (The Story of Civilization), de Will Durant.
- “Platão”, em História da Literatura Grega (Geschichte der griechischen Literatur), de Albin Lesky.
- Plato’s Republic, episódio do programa In Our Time, da Radio BBC 4.
- The Cambridge Companion to Plato, ed. por R. Kraut e The Cambridge Companion to Plato’s Republic, ed. por G.R.F Ferrari.
- “Platone”, na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
- “Plato”, na Stanford Encyclopedia of Philosophy.
- Plato. The Man and His Work, de Alfred Taylor.
- Platon: Logos und Mythos, de Kurt Hildebrandt.
- Plato’s Theory of Man, de John Wild.
- Platon, de Paul Friedländer.
Ilustração: A Apoteose de Homero, de Jean-Auguste-Dominique Ingres, 1827 (Louvre, Paris. Wikicommons).