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.por Gilberto Morbach
Imaginemos por um momento uma mãe, a quem chamaremos de M. Embora não a odeie, é seguro dizer que M não gosta tanto assim de N, sua nora. M é sempre muito educada com N, porque imagina que os bons costumes assim exigem, mas não consegue deixar de pensar que seu filho merecia alguém melhor. Aos olhos de M, N é uma jovem inculta, sem qualquer sofisticação ou refinamento. Uma jovem barulhenta que fala alto demais, ri alto demais. M não gosta do sotaque, não gosta das roupas de N, a quem julga infantil e simplória.
Imaginemos agora que, por uma fatalidade, N acabe morrendo. Passados alguns meses, talvez um ano, a distância temporal permite que M reconsidere seus juízos e passe a pensar que, talvez, afinal, tenha sido injusta. M pensa que seu julgamento possa ter sido motivado por preconceitos irrefletidos, por ciúmes do filho, por algo que, em verdade, estivesse muito mais nela própria do que de fato em algo que N realmente fosse.
M reflete, reexamina, delibera e, então, altera sua visão sobre N. A jovem que ela antes via como simplória era, em verdade, uma jovem humilde. O riso de N não era falta de boas maneiras, mas expressão de alegria e espontaneidade. N era uma pessoa de espírito jovem e alegre.
N, lembremos, estava morta. Isso significa que o que quer que tenha acontecido deu-se exclusivamente na mente de M. Nem N mudou quem era, nem mudou o comportamento externo de M para com ela.
O que mudou?
M passou a buscar uma visão mais precisa de N. Ao buscá-la, passou a enxergar N com justiça e benevolência.
O exemplo que abre este ensaio é uma das passagens mais marcantes da obra filosófica de Iris Murdoch. Não apenas por ter sido repetido e referenciado inúmeras vezes após sua publicação em The Ideia of Perfection (1964), publicado na Yale Law Review; a passagem é paradigmática porque expressa conceitos fundamentais que constituem o pensamento moral de Murdoch.
O primeiro aspecto, a primeira razão pela qual é oportuno iniciar por uma ilustração de deliberação moral está exatamente no fato de tratar-se de uma ilustração. Para Iris Murdoch, articular-se por meio de alegorias, metáforas, imagens, é algo que faz parte da condição humana. “O homem”, afinal, “é uma criatura que cria imagens de si mesmo e então vem a se assemelhar à imagem criada”.[1] É pela contemplação (e confrontação) das imagens que criamos que chegamos a nós mesmos.
Mais do que isso: descrições pictóricas, com Murdoch, são tentativas de descrição da natureza própria da realidade. É nesse sentido que a metafísica pode ser uma atividade figurativa, criativa, com pretensões realistas: criando mitos e metáforas, aproximamo-nos da verdadeira natureza de nossa existência moral. A boa arte é aquela cujo realismo revela um mundo que, embora ainda não descoberto, já estava lá. (O realismo de um grande artista não é um realismo fotográfico, mas um realismo que reconhece a existência de algo para além do próprio ego. Daí a observação de Rilke sobre Cézanne, que não pintava “I like it”, mas “There it is”.)
Imagens, assim, podem ser interpretações construtivas de uma realidade que já existe. M tinha uma imagem fixa de N, e essa imagem foi alterada após um exercício, um esforço de M para ver melhor. Isso acaba por revelar outros dois conceitos fundamentais na filosofia de Murdoch: a visão e a consciência.
Contrariando algumas das correntes filosóficas dominantes à época — de um lado, a filosofia da linguagem ordinária e, de outro, o existencialismo (tal como articulado por Sartre) —, Murdoch propõe uma reorientação no centro de gravidade da vida moral do indivíduo. O foco não está mais na escolha, na vontade do agente, mas em uma instância muito maior que envolve seu intelecto, sua imaginação, sua consciência e visão da realidade. É só a partir dessa esfera que a escolha torna-se então possível.
Assim, em contraste às noções behavioristas — para as quais conteúdos mentais nada significariam enquanto não externamente expressados (ou enquanto não verificados por critérios externos) —, Murdoch reivindica a autoconsciência reflexiva do agente como uma importante esfera de atividade moral, ainda que nenhuma ação propriamente dita ocorra. A atividade moral não é (apenas) uma ação externa, mas (também) algo que acontece de forma anterior a (meras) escolhas morais explícitas. Essa atividade está diretamente relacionada ao bem.
Isso é bem explicado por Maria Antonaccio: “enquanto tanto o behaviorismo linguístico e o existencialismo sartreano tratam o bem como uma ‘caixa vazia’ a ter seu conteúdo preenchido por o que quer que a vontade escolha, Murdoch entende o bem como um background antecedente, que constitui internamente a consciência moral”.[2]
Daí que não é sem razão que a mais célebre obra de Murdoch tenha como título The Sovereignty of Good. A soberania do bem.
O bem não é uma questão de escolha de um agente que exerce livremente a sua vontade em um vácuo moral; é, ao contrário, algo que existe na realidade e antecede a escolha do agente, servindo inclusive de condição de possibilidade a essa escolha.
Mas o que é o bem?
Notoriamente, o célebre G. E. Moore, em Principia Ethica, argumentou em favor justamente da indefinibilidade do bem. O bem é indefinível porque o próprio conceito, sui generis, não permite sua definição. A famosa falácia naturalista de Moore, então, é o erro que caracteriza a tentativa de definir e explicar — unindo fato e valor — a ideia de bem, aquilo que é bom, em termos de propriedades naturais (como felicidade ou prazer). O bem é… o bem. Iris Murdoch, em alguma medida, também entende o bem como indefinível — mas não no “sentido vulgar”[3] dado por Moore e seus seguidores.
O primeiro ponto é que Murdoch rejeita uma epistemologia baseada em uma dicotomia rígida entre fato e valor. Para ela, os seres humanos apreendemos os fatos já baseados desde sempre em pressupostos valorativos: a cognição é moral, a moralidade é cognitiva. Existe algo de moral já no processo por meio do qual selecionamos os fatos que nos parecem relevantes. (Com a palavra, Iris: “A conexão entre ética e epistemologia é algo que compreendemos intuitivamente o tempo todo em nossas vidas não filosóficas”. As pessoas sabem a diferença entre o bem e o mal, sabem que a verdade existe, e “é preciso muita teorização pra convencê-las do contrário.)[4]
O segundo ponto: o bem é indefinível, certo. Mas não porque o bem é o bem e pronto, fim da história. O bem é indefinível porque a realidade, mediada por nossos conceitos morais, transcende nossa imperfeita capacidade de cognição e compreensão. O bem está sempre mais além. O curioso, talvez surpreendente, é que é exatamente esse além que indica sua existência e sua autoridade.
O conceito de bem, misterioso e distante, remete sempre a uma ideia de perfeição. E o que ocorre é que muito embora pouco, talvez nada que faça parte de nosso mundo seja perfeito, é a ideia de perfeição que, em maior ou menor grau, nos move. É precisamente porque a perfeição está sempre além que somos capazes de dizer que, embora se pareçam um com o outro, A é melhor que B. É só porque temos uma concepção de perfeição que conseguimos identificar diferentes níveis de excelência; é porque o bem existe, porque ele está lá, que podemos ver diferenças, graus, níveis, nuances.
O bem, mesmo que distante — justamente porque distante —, é a instância que regula nossa existência; é nosso senso de direção. É por isso que o comando “Sede perfeitos” faz sentido a nós. É verdade, faz parte da condição humana que essa tarefa nunca seja plenamente atingível; mas é a ideia de bem que proíbe que sejamos complacentes com nossas próprias limitações. Guiar-se pela autoridade do bem significa não ceder a nossos impulsos mais degradados; implica em não capitular diante de uma natureza de vaidade e egoísmo, de ignorância e ilusão.
O bem é misterioso e não representável. É indefinível. Mas, exatamente por ele estar sempre mais além, por ser perfeito, sabemos que ele existe e que seu ideal é magnético.
E não é só isso. Por mais além que esteja; por mais misterioso, por mais inatingível, conhecer o bem não é (como talvez diria Moore) mera questão de intuição. É uma questão de um progressivo esforço de autodisciplina, de atenção; uma atenção que, desvinculada das tendências egoístas de nosso eu empírico, permite que, gradativamente, nos aproximemos de uma visão do mundo tal como ele realmente é.
É porque o bem existe, e porque constitui nossa consciência, que o esforço de M possibilitou uma visão melhor de N. Uma visão que, exatamente porque benevolente, é também mais real.
Mas Murdoch, então, pergunta o seguinte: será que isso é tudo que podemos dizer? Em face da indefinibilidade do bem, será que não há mais nada de concreto ou relevante que se possa dizer sobre ele? Será que não há algum outro conceito com o qual o bem guarde uma relação especial?
Embora não seja idêntico ao bem — e embora tenha sido, segundo Murdoch, negligenciado durante boa parte da história da filosofia —, esse conceito existe. O esforço de M para ver melhor ajuda a explicá-lo: não podemos dizer que M passou a ver N com olhos de amor?
Bem e amor, é verdade, não são exatamente a mesma coisa. Mas um amor refinado, em seu sentido mais autêntico, é algo muito próximo da bondade. O amor é “a tensão entre a alma imperfeita e a perfeição magnética”. Quando tentamos amar com perfeição aquilo que é imperfeito, “nosso amor vai até seu objeto por meio do bem para ser, assim, purificado e convertido em altruísta e justo”.[5]
Ver com amor, então, é desvincular-se de nossos impulsos egoístas para, à luz do bem, descobrir a realidade independente de nós que antes não conhecíamos. “O amor que traz a resposta certa é um exercício de justiça e realismo, e de realmente olhar”.[6] Ver bem é ver com amor, sendo o amor — como a arte, e como a própria moral — “a descoberta da realidade”.[7]
Se viva estivesse, Iris Murdoch completaria, neste 2019, 100 anos. Se viva estivesse; Murdoch morreu. Porque ela era como nós todos somos: figuras mortais, divididas, ambíguas, pequenas, incompletas; criaturas sujeitas à transitoriedade, à necessidade e às circunstâncias do acaso. Somos, pois, imperfeitos. Nossa condição humana e nossa finitude revelam, de certa maneira, toda a irrelevância de nossas vidas.
Ao mesmo tempo, porém, revelam também sua suprema importância. Da consciência de que somos imperfeitos somos capazes de derivar a própria ideia de perfeição; um ideal que, embora se afaste três passos a cada vez que damos apenas um em sua direção, nos guia e orienta.
À luz do bem, o absurdo de nossa existência em um mundo repleto de mal e miséria revela, dialeticamente, aquilo que importa: a bondade, o amor e a justiça. O bem não é uma questão de propósito. O indivíduo bom é bom para nada.
E é nesse “para nada” que está o legado de Iris Murdoch.
Ela não é a pensadora para quem procura uma descrição da medíocre conduta ordinária de nossas vidas cotidianas; sua filosofia sempre buscou um ideal digno na tentativa de responder à tão difícil questão sobre como podemos nos tornar pessoas melhores. Para nada.
Iris Murdoch morreu. Uma morte difícil, sofrida. Uma morte causada pelo Alzheimer que, roubando-lhe a capacidade de escrever, lhe acompanhou até o fim da vida — uma morte real. Acontece que, como ela própria dizia, a morte real deve ser aceita; porque “é só contra o fundo dessa aceitação, psicologicamente tão difícil, que podemos entender o que é a virtude em sua plena extensão. A aceitação da morte é uma aceitação de nossa própria nulidade, uma pontada automática em nossa preocupação com aquilo que não somos”.[8]
Iris Murdoch não era perfeita. Mas era livre e humilde, e nos sentidos mais autênticos que liberdade e humildade podem ter. Afinal, “a liberdade não é o deslocamento inconsequente de nosso peso por aí”; é, sim, “o domínio disciplinado do eu”. A humildade não é o “hábito peculiar de autoaniquilação” de quem tem “uma voz inaudível”; é ter “um respeito altruísta pela realidade”.[9]
A pessoa livre e humilde não é necessariamente capaz de olhar diretamente para o sol, mas é a que melhor sente os reflexos de seu calor e seu brilho. É a que consegue ver nosso tão escuro mundo sob sua luz.
Com atenção, justiça e amor. Para nada.
Notas
[1] Murdoch, Iris. Metaphysics and Ethics. Em The Nature of Metaphysics, editado por D. F. Pears. McMillan, 1960, p. 122.
[2] Antonaccio, Maria. Picturing the Human: The Moral Thought of Iris Murdoch. Oxford University Press, 2000, p. 90.
[3] Murdoch, Iris. A Soberania do Bem. Unesp, 2013, p. 87.
[4] Murdoch, Iris. Metaphysics as a Guide to Morals. Allen Lane, 1992, pp. 177, 497.
[5] Murdoch, Iris. A Soberania do Bem. Unesp, 2013, p. 139.
[6] Murdoch, Iris. A Soberania do Bem. Unesp, 2013, p. 125.
[7] Murdoch, Iris. The Sublime and the Good. Chicago Review, vol. 13, n. 03, 1959, p. 51.
[8] Murdoch, Iris. A Soberania do Bem. Unesp, 2013, p. 141.
[9] Murdoch, Iris. A Soberania do Bem. Unesp, 2013, p. 130.