por Leandro Bachega
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Santo Agostinho e Pelágio protagonizaram uma disputa teológica que mais tarde ganharia novas interpretações, muito por conta da antropologia envolvida nas leituras antagônicas de ambos os religiosos. Pelágio desdenhava do Pecado Original, acreditando que o homem poderia cumprir os propósitos divinos para a moralidade encontrados nas Escrituras, bastando para isso querer. Já Agostinho entendia que a desobediência de Adão deixara uma mácula na vontade de seus descendentes, o que explicaria o apreço que a humanidade tem pelo mal, e sua repulsa pela santidade. Esta, dizia Agostinho, somente seria possível por um ato da vontade de Deus, que iluminava o pecador e o fazia ver: a graça de Cristo restauraria a vontade caída, o pecador convertido compreenderia finalmente a verdade (Eu sou o caminho, a verdade…[1]) e só assim seria capaz de cumprir as mitzvot divinas.
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Se Agostinho era pessimista em relação ao homem, o mesmo se pode dizer de sua visão a respeito do Estado. A função do poder civil, dizia o bispo de Hipona, era a de manter a ordem social, e por meio da aplicação da lei, poderia apontar ao desordeiro o Deus da paz, que criara o Universo sob uma hierarquia que previa a ascese dos seres, do menor para o maior, e da paz, desde o indivíduo até a sociedade.
A paz perpétua, contudo, Agostinho creditara somente ao fim dos tempos, à Jerusalém celestial, que haverá de ser estabelecida tão somente na volta de Cristo. Enquanto isso não ocorre, a cidade dos homens (os réprobos) e a cidade de Deus (constituída pelos eleitos) convivem misturadas e aguardam o Juízo Final sob o jugo do Estado, que é incapaz de estabelecer a paz, e como se vê, vacila entre pequenos sucessos e grandes fracassos. Diferente das formas clássicas, que viam a polis como formadora de um ideal de homem, Agostinho transforma esse agente de realização humana, localizando-o na religião cristã.
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De que maneira, então, o cristão deveria conviver com o Estado, com a política, enquanto aguarda o seu Salvador? Como se sabe, a Igreja passou de perseguida a parceira do Império Romano e senhora suprema dos reinos medievais; essa aproximação pautou as relações entre o poder civil e o poder religioso na Europa, bem como influenciou a cultura ocidental durante o medievo e além. O Agostinho maduro, ao que parece, não teria apoiado a aproximação política que ocorreu, mas daria assentimento para que as virtudes evangélicas moldassem as instituições sociais.
O historiador inglês Robert Markus afirma que Agostinho, semelhante à maioria dos cristãos de seu tempo, entendeu primeiramente a conversão do Império Romano como o cumprimento das profecias acerca do reconhecimento do senhorio de Cristo por parte dos reis da Terra, e pregava esse triunfo da religião em seus sermões datados do começo do quinto século.[2] Mas a empolgação durou pouco: em sua obra magna, A Cidade de Deus (que teve início em 413), Agostinho parece pensar diferente.
Ele passa a perceber o joio em meio ao trigo, ou seja, pecadores que vivem entre os crentes, e inimigos da fé que um dia seriam convertidos; os homens, santos ou pecadores, haveriam de viver misturados, e a paz constantiniana não era, por uma série de fatores, o sinal de que o Reino de Deus havia chegado (afinal, quanto ao dia e à hora ninguém sabe[3]): o Império se via cada vez mais ameaçado pelas invasões bárbaras, o saque de Roma em 410, a pouca influência dos bispos diante dos poderes civis. Entre a Encarnação e a volta de Cristo, nada se poderia afirmar sobre os rumos da História, apenas que “de fato, estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas”.[4]
Essas orientações, como vimos, indicam à Igreja como viver em um saeculum que nunca conhecerá a paz (todo o mundo está no maligno[5]). A esperança deveria ser dirigida a Deus, à sua volta, e, no mais, a Igreja viveria os preceitos de santidade. Dedicar-se ao Estado com vistas ao bem social é louvável, mas almejar mais do que isso seria converter-se a um pelagianismo político. É curioso que o historiador inglês Michael Oakeshott use exatamente o termo “pelagiano” para referir-se àqueles que nutrem uma expectativa de perfeição humana, baseados na antropologia de Pelágio: o homem pode alcançar a perfeição e nesse caso, com a ajuda do Estado. Aliás, dizem, é exatamente esta a função primordial do poder civil: eis a política da fé.
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Na política da fé, a perfeição humana é buscada, justamente, porque não está presente; além disso, acredita-se que não devemos, nem podemos, depender da providência divina para a salvação da humanidade. A perfeição humana deve ser alcançada pelo esforço humano . . . Justamente por causa dessa crença, torna-se relevante e revelador designar esse estilo de política como “pelagiano”.[6]
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A posição antagônica à política da fé é a política do ceticismo, onde Agostinho possivelmente se encontraria. “Na compreensão cética de governar”, diz Oakeshott ecoando o bispo, “a manutenção da ordem é o primeiro objetivo do governo”.[7] No mais, ao Estado não cabe intrometer-se na vida privada das pessoas. A Igreja, por sua vez, ora et labora pelo anúncio do evangelho, sujeitando-se ao príncipe na esfera pública, esperando uma sociedade terrena mais justa, que permita aos homens, cristãos ou não, viverem suas vidas de forma digna. Entretanto, o cristão estabelece um limite à interferência do governo: sua crença. “Contanto que tudo isso não impeça a religião que nos ensina a adorar o único e supremo Deus verdadeiro”[8]. Encontra-se aqui, portanto, um núcleo interno da vida humana que não diz respeito a César:
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A moeda representa César, e assim tu não deves dá-la a ele, mas ao contrário restituí-la a ele. É a quem pertence. Onde encontrarás, por outro lado, a imagem de Deus? A coisa na qual Deus se representa é a que tens que restituir a Deus. E essa “coisa” é todo o homem: corpo, alma, vontade. A César nada além que o aurum, o tributo que temos de pagar por nossa vida no século.[9]
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A intromissão de César na esfera que pertence a Deus, buscando aperfeiçoá-la, marcaria a expulsão da graça, substituída pela política. Contra esse “pelagianismo de Estado” que é a política da fé, o cético lembraria que “a aprovação ou reprovação moral não fazem parte da função do governo, que não está (ou não deveria estar), de modo algum, preocupado com as almas dos homens”.[10] As utopias modernas, essas “políticas da fé”, contudo, preocuparam-se em demasia com a alma e o corpo dos homens, dando a eles novas doutrinas, uma nova religião e até mesmo um novo deus, quer seja a divindade civil de Robespierre, ou a igreja positivista de Comte; nessa religiosidade política, o otimismo ganhou ares de salvação, e a razão passou a cumprir a função que era da graça. Semelhante a Oakeshott, Cioran também identificou a relação entre pelagianismo e utopia:
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“Dificilmente imaginamos doutrina mais generosa e mais falsa; é uma heresia de tipo utópico, fecunda por seus próprios exageros, por seus absurdos ricos em perspectivas. Não que os autores de utopias tenham se inspirado diretamente nela; mas não se negará que existe no pensamento moderno, hostil ao agostinismo e ao jansenismo, toda uma corrente pelagiana — a idolatria do progresso e as ideologias revolucionárias seriam sua conclusão”.[11]
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Nas tentativas de se criar o Paraíso, os utópicos trouxeram o inferno para aqueles a quem prometeram salvar, conforme se viu desde o terror jacobino, passando pelos governos comunistas, o nazismo e, segundo John Gray em seu Missa Negra, terminaram nas ruas ensanguentadas do Iraque, na tentativa de estabelecimento da democracia no Oriente Médio. O milênio de paz das religiões utópicas nunca chegou, mas o seu culto deixou um saldo de destruição.
Por outro lado, seria possível falar em uma doutrina política agostiniana? O próprio Agostinho não faz isso, e seria arriscado pensar em um projeto político a partir de suas ideias. O fato de o Império Romano ser cristão àquela altura era algo a ser louvado não pelo domínio da Igreja associado ao poder civil, e sim porque a fé cristã poderia ser praticada sem perseguições, e o trabalho de evangelização continuar. Mas Agostinho sabia que esse contexto era contingente: a Igreja havia sofrido perseguições desde a sua origem, e nada indicava que isso não pudesse acontecer novamente.
A Igreja, como peregrina, deveria ser a mesma, independentemente do contexto político. “Peregrina na Terra”, diz Agostinho, “sem se preocupar com o que haja de diferente nos costumes, leis e instituições com que se conquista ou se conserva a paz terrena”.[12] Segundo Robert Markus, ao restringir sua esfera de ação, Agostinho decerto enfatiza sua independência e autonomia dentro dela. Independência da Igreja e relativização das instituições civis: o que mais os leitores contemporâneos de Agostinho poderiam encontrar em seu pensamento, em relação às questões políticas? Markus identifica pelo menos duas vertentes consideradas herdeiras do pensamento agostiniano: uma é a conhecida separação entre religião e Estado, predominante após a modernidade, e a outra é o seu contrário, ou seja, a ideia de que as tradições e mesmo as instituições modernas foram, de um modo ou de outro, influenciadas pelo cristianismo.
Essa herança é justificada por ambas as posições porque, de fato, Agostinho não pensou em uma teocracia cristã: “no que respeita a esta vida mortal, que desliza e acaba em poucos dias, que interessa sob que autoridade vive o homem feito para morrer, se os que mandam não o obrigam a atos ímpios e iníquos?”.[13] Contudo, não negaria que os cristãos deveriam influenciar todas as instituições sociais, pois a verdadeira justiça, acreditava, só se encontrava no conteúdo defendido pela Igreja.
A primeira corrente se concretizou no que Markus chama de liberalismo secular. A completa separação entre Igreja e Estado, laicizando o poder público como forma de garantir sua neutralidade. O historiador afirma que Agostinho seria simpático a uma sociedade religiosamente pluralista. A Igreja não negocia seus valores, pois acredita que estes lhes foram revelados por Deus, a quem deve amar e temer em primeiro lugar. Não obstante, o amor ao próximo também englobaria a tolerância: se entre os da fé, o grego não deveria viver como o judeu,[14] deveria o não crente viver, obrigatoriamente, como cristão? Mais: se, como vimos, o cristão deseja um limite à interferência do Estado, não seria natural que quisesse o mesmo valor observado para os que professam uma religião diferente?
Isso nos leva à segunda posição: o cristianismo não apenas defende esses valores, e, com efeito, influenciou decididamente o Ocidente a esse respeito. Em seu Inventing the Individual: The Origins of Western Liberalism, Larry Siedentop questiona o motivo de, no Ocidente, muitas pessoas se considerarem cristãs, embora não frequentem uma igreja. Isso se deve ao fato de, segundo ele, o cristianismo ser tão presente na sociedade ocidental a ponto de fazer pessoas se conceberem como cristãs. Muitos avanços sociais foram fruto, direta ou indiretamente, da influência cristã: a valorização do indivíduo diante do conceito de igualdade perante Deus (desconhecido pelos povos antigos); nos escritos de Agostinho, encontramos apelos ao poder civil para que julgasse as causas dos pobres com justiça; é no período medieval que encontramos o surgimento das universidades e hospitais, a ideia do amor casto, do dever dos cavaleiros em defender os necessitados; e mesmo os erros cometidos pela cristandade foram, por instituições criadas por ela mesma, combatidos.
No período moderno, a noção de tolerância ganhou força junto ao liberalismo nascente na Inglaterra: o mesmo John Locke que volta da Holanda com o novo rei e apoia a revolução em busca de maior liberdade política e econômica é quem escreve a Carta sobre a tolerância em busca de pacificação e liberdade religiosa em meio ao pluralismo de correntes protestantes existentes nas ilhas britânicas.
Segundo Siedentop, os ocidentais são, em resumo, liberais. É um conceito que abarca todas as nossas instituições e valores. O problema, usando o vocabulário agostiniano, é que a liberdade, como bem finito, tem sido usada como bem último, e o Ocidente sofre por isso uma crise de identidade. Qual será então o saldo civilizacional para uma sociedade que, cada vez mais, recusa suas origens, seus alicerces? A despeito do que foi conquistado, vivemos uma disputa ideológica entre extremos que em nada representam nossos avanços nas concepções de igualdade e liberdade; o recrudescimento das guerras culturais tem, não raro, sido associado à barbárie: como Agostinho, a sociedade padece enquanto os bárbaros a cercam por fora e a implodem por dentro. Como filhos pródigos que usaram de forma equivocada a herança que lhes foi dada, talvez seja hora de voltar atrás.
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Notas:
[1] Jo 14:6
[2] MARKUS, Robert. The End of Ancient Christianity. Cambridge University Press, 1990.
[3] Mt 24:36.
[4] De civitate Dei. I, XXXV.
[5] Jo 5:19.
[6] OAKESHOT, Michael. A Política da Fé e a Política do Ceticismo. Tradução de Daniel Lena Marchiori Neto. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 58.
[7] Idem, p. 71.
[8] De civitate Dei. XIX, XVII.
[9] CACCIARI, Massimo. O poder que Freia. Belo Horizonte: Editora Âyine, 2016, p. 75, 76.
[10] Idem, P. 73.
[11] CIORAN, Emil. História e Utopia. Tradução de José Thomas Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 116, 117.
[12] De civitate Dei. XIX, XVII.
[13] Idem. V, XVII.
[14] Atos 15.
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