por Desidério Murcho
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Quase todo o conhecimento — todo, quando se sai do aqui-e-agora — depende do conhecimento de outras pessoas. Não se trata apenas de dizer o evidente: que só com base nos paleontólogos uma pessoa sabe que os dinossauros se extinguiram há cerca de sessenta e seis milhões de anos. Trata-se de dizer que os próprios paleontólogos só o sabem porque se apoiam noutros especialistas; regra geral, quanto mais especializado for o conhecimento, maior é o número de especialistas em que cada especialista se apoia. Assim, quase todo o conhecimento, sobretudo o mais especializado, é duplamente indireto, porque, além de as provas baseadas nos sentidos e noutras fontes serem indiretas, uma das fontes mais relevantes para o conhecimento de um ser humano são os outros seres humanos.
Além disso, mesmo no caso dos métodos de prova lógico-matemáticos, a procura alheia de erros é fundamental; o que dá segurança epistémica a uma suposta derivação é que se tiver um erro que o autor não viu, os seus colegas facilmente o veem. E o mesmo acontece no caso das outras provas. Não basta que um paleontólogo tenha provas de que os dinossauros se extinguiram há sessenta e seis milhões de anos; é preciso que essas provas sejam cuidadosamente examinadas por outros paleontólogos, para encontrar e eliminar o maior número de erros que se conseguir. Assim, o conhecimento depende dos outros não apenas no sentido de eles terem um acesso menos indireto que nós a várias provas, mas porque é preciso que várias pessoas as examinem cuidadosamente para ver se escondem erros. O erro que uma não viu, encontra-o a outra. Não há crenças bem provadas radicalmente privadas; mesmo no caso da física de Newton, afirma Mill,
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se não se permitisse que fosse questionada, a humanidade não poderia sentir a confiança tão completa na sua verdade que agora sente. As crenças a favor das quais temos mais garantias não têm qualquer salvaguarda em que se apoiar a não ser o convite permanente ao mundo inteiro para provar que são infundadas. (John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, p. 26)
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Devido a estas duas razões, é de importância capital compreender os argumentos de autoridade, cuja forma lógica é muito simples: alguém afirma que A; logo, A. Esse alguém, a autoridade, é um autor, um especialista ou qualquer pessoa. Claro que é raro encontrar argumentos de autoridade formulados desta maneira tão explícita; o mais comum é escrever algo como «Para Glass, Perotin era um compositor inexcedível». A ideia, porém, é a mesma: considera-se que a posição de Glass acerca de Perotin conta a favor da ideia de que aquele compositor medieval realmente era inexcedível. E a primeira armadilha em que se cai por vezes nos argumentos de autoridade é atribuir uma afirmação a quem não a fez. Daí que seja importante provar que a autoridade invocada realmente afirmou o que lhe é atribuído: em que publicação o afirmou ela, e em que página? No contexto em que ela o afirmou, quer dizer o que parece, ou trata-se de uma citação abusiva porque distorce o pensamento do autor?
Presumindo então que a autoridade invocada realmente afirmou o que lhe é atribuído, é preciso compreender bem a estrutura da prova aqui em questão. Considere-se Glass, que está a falar pelo telefone com alguém que está noutro país. Esta pessoa pergunta-lhe como está o tempo, e Glass responde que está nevoeiro. Ele não é meteorologista, mas é uma autoridade epistémica quanto àquela afirmação específica porque tem um acesso simples à prova: olha pela janela e vê. Isto esclarece o aspeto fundamental deste tipo de raciocínio:
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Nos argumentos de autoridade visa-se estabelecer uma cadeia probatória entre as provas que a autoridade tem de uma afirmação específica e a crença de outra pessoa; só são cogentes se essas provas forem boas.
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Ela só é uma autoridade epistémica relevante caso as suas provas sejam boas. Note-se que é irrelevante se Glass é meteorologista ou não; poderia até ser analfabeto. Desde que tenha boas provas do que afirma, ele é uma autoridade epistémica relevante. Inversamente, por mais que alguém tenha muita autoridade seja no que for, e mesmo que tenha autoridade epistémica na área em que se manifesta, se não tiver boas provas daquela afirmação específica, não é uma autoridade epistémica relevante.
As falácias da autoridade deslocada, da qual há três versões, ocorrem quando a autoridade invocada não tem boas provas do que afirma:
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…….Num primeiro tipo de caso, uma pessoa detém muita autoridade institucional, política, económica ou mediática — é um ator famoso — e pronuncia-se sobre a eutanásia sem conhecer quaisquer provas relevantes na área. Dar-lhe crédito é um erro, porque a única autoridade relevante é a epistémica; os outros tipos de autoridade são irrelevantes.
…….Num segundo tipo de caso, uma pessoa tem autoridade epistémica, mas não quanto ao assunto acerca do qual se pronuncia. Uma socióloga é uma autoridade epistémica em sociologia, mas não em medicina, pelo que invocar as suas afirmações sobre vacinas é falacioso caso ela não tenha boas provas do que afirma.
…….Por último, o terceiro tipo de falácia da autoridade deslocada ocorre quando se invoca alguém que é uma autoridade epistémica na área em questão, mas que não tem, apesar disso, boas provas do que afirma. Uma médica é uma autoridade epistémica em medicina, mas se não tem boas provas específicas das suas afirmações acerca das vacinas, é falacioso invocá-la como autoridade.
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Note-se que autoridade epistémica relevante é específica e não é transferível. É específica porque tudo o que conta é a autoridade ter boas provas da afirmação em questão, e não de outras afirmações. E não é transferível porque quem tem autoridade epistémica relevante quanto a uma afirmação não a tem só devido a isso quanto a outra, ainda que seja da mesma área — e menos ainda a tem se for de uma área distinta.
Muitos argumentos de autoridade são falaciosos porque se desconsidera estes dois aspetos e fixa-se a atenção exclusivamente em sinais indiretos enganadores.
Um sinal indireto da verdade de uma afirmação biológica é ter sido feita por uma bióloga, mas isso não garante que seja realmente uma autoridade epistémica com respeito a essa afirmação específica; só o será se tiver boas provas dessa afirmação.
O mesmo acontece com outros sinais indiretos usados como critérios para determinar a cogência dos argumentos de autoridade.
O consenso entre biólogos é um sinal indireto de que uma afirmação biológica de uma bióloga é verdadeira, mas o que é consensual entre especialistas é amiúde não apenas errado, como profundamente errado e sem qualquer apoio em boas provas. Afinal, quase tudo o que os médicos receitavam aos pacientes até meados do século XIX piorava a situação deles, em vez de melhorá-la, e até ao século XVII grande parte do que os mais respeitados especialistas em astronomia afirmavam era falso. Por outro lado, quando Galileu defendeu que a Terra se movia, a sua afirmação não colhia o consenso entre os especialistas, mas era ele que tinha razão, porque era ele que tinha as melhores provas, e não os seus colegas.
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Outro sinal indireto é as autoridades invocadas terem ou não interesses suspeitos na afirmação em questão. Um médico tem um interesse económico em aconselhar as pessoas a fazer exames anuais; mas se tiver boas provas de que isso previne doenças graves, o que é inadequado é rejeitar o seu conselho, e não aceitá-lo. Daí que quanto à questão de se saber se uma pessoa tem razão ou não, seja irrelevante mostrar apenas que ela tem interesses económicos em jogo.
Uma vez que os sinais indiretos estão longe de ser fidedignos, porque o que realmente conta é a autoridade invocada ter boas provas da afirmação específica em questão, surge a dificuldade cimeira: como saber se ela tem ou não boas provas? Afinal, se quem a invoca tivesse acesso a essas provas, não precisaria de usar um argumento de autoridade; bastaria examiná-las. Esta dificuldade resolve-se, pelo menos em parte, tendo em atenção três aspetos.
Em primeiro lugar, para aceitar um argumento de autoridade de maneira epistemicamente responsável é preciso compreender pelo menos genericamente as provas da autoridade. Se uma pessoa ignora completamente como os paleontólogos concluem que os dinossauros se extinguiram há sessenta e cinco milhões de anos, é epistemicamente irresponsável caso aceite argumentos de autoridade sobre esta questão. É por isso que uma publicação epistemicamente responsável não se limita a noticiar uma descoberta científica; explica também quais são as provas em que tal descoberta se apoia. Quem invoca uma autoridade mas é incapaz de explicar de que provas ela dispõe, é epistemicamente irresponsável. Daí as duas perguntas cardinais quanto aos argumentos de autoridade:
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1. Como sabe a autoridade o que afirmou, ou seja, que provas tem ela?
2. E como sei eu que ela sabe, ou seja, como entendo eu essas provas?
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Em segundo lugar, é preciso usar os mesmos processos de procura de erros que são usados também noutros casos; nomeadamente, o contraste de fontes de prova. Tal como se contrasta a memória com a perceção visual, e esta com a medição cuidadosa, é preciso contrastar as provas de diferentes autoridades para tentar determinar quais são as mais fortes. Não se trata de tentar decidir quem tem razão olhando apenas para sinais secundários — quais das autoridades têm mais prestígio académico, por exemplo — mas de comparar o peso relativo das provas por elas invocadas. E tal como se tenta medir com cuidado, em vez de se olhar apenas descontraidamente, é preciso estudar com atenção a bibliografia baseada na investigação especializada; acompanhar apenas as notícias acerca do aquecimento global não é suficiente para ter uma posição epistemicamente responsável sobre o assunto.
Por fim, em terceiro lugar, é importante levar a sério a divisão do trabalho cognitivo especializado e compreender que, do mesmo modo que uma pessoa admite facilmente que não sabe pilotar um avião a jato, deve admitir também facilmente que não tem qualquer opinião epistemicamente responsável sobre vários assuntos que lhe exigiriam um estudo que não está disposta a fazer. Quem tem crenças epistemicamente responsáveis sobre temas de ética aplicada — como o aborto — são os filósofos que estudam esses temas, e não quem desconhece a bibliografia relevante; estas pessoas devem suspender o juízo.
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«Mas», dir-se-á, «sou um homem ocupado; não tenho tempo para os demorados estudos que seriam necessários para me dar alguma competência para avaliar certas questões, ou mesmo para me tornar capaz de compreender a natureza dos argumentos.» Nesse caso, não deveria ter tempo para acreditar. (W. K. Clifford, «A Ética da Crença», p. 109)
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A ideia de que há algo como um «pensamento crítico» epistemicamente responsável na ausência do conhecimento dos factos e da bibliografia relevantes é falsa; não há maneira de ter qualquer opinião abalizada sem o conhecimento factual ou bibliográfico relevante. As pessoas gostam aparentemente de ter opiniões sobre o que desconhecem para exibir cultura e inteligência ou para dar mostras de um compromisso que consideram prestigiante com causas morais e políticas; na verdade, porém, isso só mostra que são epistemicamente irresponsáveis. A suspensão da crença é quase sempre a opção apropriada quando não se conhece os factos nem a bibliografia relevantes.
«Quase sempre», porque há exceções. Quando vamos ao médico e fazemos exames complicados, não sabemos se aqueles exames são fidedignos, mas seria uma má ideia rejeitá-los. Nestes casos, é preciso usar sinais indiretos acerca da idoneidade e competência do médico para ter, nessa base, deferência epistémica por ele: aceitar a hipótese de que ele sabe o que diz. O que é falacioso é usar esses sinais para tomar posição quando não é preciso tomar posição.
Em suma: caso não seja preciso tomar posição sobre o que não se sabe, a responsabilidade epistémica exige a suspensão da crença; nos casos em que é preciso tomar posição, nomeadamente por razões práticas, é preciso ter deferência epistémica por quem se tem sinais admitidamente indiretos — mas tão bons quanto possível — de que sabe o que diz. Note-se, porém, que a deferência epistémica não é uma questão de tudo ou nada, mas de mais ou menos; além disso, é preciso não esquecer que a autoridade epistémica é específica e não é transferível. Por isso, também a deferência epistémica é específica e não-transferível.
Imagine-se agora que discuto astrologia com uma astróloga, apesar de eu quase nada saber sobre o tema. A astróloga deixa-me sem resposta para os seus argumentos, pela simples razão de que há uma disparidade epistémica relevante entre nós: ela deita mão de várias supostas provas que desconheço. Porém, é epistemicamente irresponsável da minha parte aceitá-las, caso se verifiquem duas condições:
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1. Não tenho boas razões para considerar que a astrologia seja digna de deferência epistémica;
2. Tenho boas razões para considerar que a disparidade epistémica entre nós permite que a astróloga consiga enganar-me se quiser.
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Como se vê, uma condição importante da cogência do raciocínio é a paridade epistémica quanto ao assunto em questão. Na sua ausência, e se não houver boas razões para ser epistemicamente deferente, é irresponsável aceitar as provas do interlocutor, por mais que se seja incapaz de dizer onde está exatamente o erro. Este é um limite fundamental dos argumentos de autoridade.
Eis um caso diferente: um funcionário do banco tenta persuadir uma pessoa a fazer uma aplicação financeira, e ela não vê qualquer erro nas suas provas. Porém, sem confiança epistémica naquele funcionário ou na instituição, e se houver disparidade epistémica com respeito a aplicações financeiras, a pessoa será incapaz de ver que foi enganada, e é por isso que é irresponsável da sua parte aceitar as provas invocadas. Quando há disparidade epistémica, quem está em vantagem engana facilmente a outra pessoa; de modo que ou há razões para ser epistemicamente deferente, ou é irresponsável aceitar as suas provas. Este caso é diferente do anterior porque é de admitir que os estudos acerca de aplicações financeiras são dignos de deferência epistémica; a questão aqui não é essa. A questão é a malevolência epistémica daquela instituição ou daquele funcionário. A malevolência epistémica é a atitude predatória de tentar enganar alguém explorando a disparidade epistémica ou as fraquezas cognitivas do interlocutor. Para prejudicar seriamente alguém não é preciso que a prática em si seja epistemicamente irresponsável; basta que o interlocutor seja epistemicamente malévolo.
Em resumo, eis três perguntas orientadoras, que ajudam a lidar melhor com os argumentos de autoridade:
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1. A autoridade tem boas provas do que afirma?
2. Eu compreendo as provas da autoridade?
3. Há outras autoridades com boas provas do contrário?
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Caso a resposta às duas primeiras perguntas seja negativa, o argumento de autoridade não colhe; e não colhe também se a resposta à terceira pergunta for afirmativa.
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