por Gabriel Ferreira da Silva
Em um texto anterior para este Estado da Arte, concluía dizendo que talvez a contribuição mais fundamental da filosofia para o debate público seja explicitar conceitos, apontar distinções importantes, em suma, parodiando Wittgenstein, fazer, por assim dizer, uma terapia dos debates e questões que se apresentam no cenário dos grandes temas. No Brasil, pelo fato de que a imensa parte das discussões importantes ainda está por ser feita, mas também porque, sobretudo em tempos acalorados como os atuais, tentar imprimir um pouco de clareza de pensamento às questões é uma virtude, com raras exceções, praticamente esquecida, o trabalho é ainda mais urgente. O problema grave, portanto, não é a famigerada polarização – que é essencial a qualquer debate, uma vez que sem ela nem debate temos –, mas a falta de rigor no pensar, na explicitação dos temas, das questões e dos conceitos, e a ausência da tentativa cuidadosa de fundamentar em razões minimamente objetivas esta ou aquela posição.
Os motivos desta carência são variados e vão desde a adesão pura, simples e irrefletida a um dos lados até à atrofia pós, hiper, ultra (et caterva) moderna que não quer crer que a razão pode jogar ao menos um mínimo de luz sobre os grandes problemas humanos e que, portanto, para seguir o dito de Aristóteles em sua Metafísica, faz que com nisso seus partidários se assemelhem a vegetais.
Qual dessas razões está por detrás das posições esposadas pelo Ministro do STF Luís Roberto Barroso em seu voto-vista do último dia 29, não é uma questão que cabe aqui. Mas tomar o texto como um objeto privilegiado a ser analisado à luz dessa tarefa de elucidação própria da filosofia é bastante conveniente, uma vez que avança sobre um daqueles grandes temas e confunde, ou ajuda a confundir, uma série de elementos que deveriam ser diferenciados.
Coloco aqui entre parênteses o aspecto estritamente jurídico do caso, do qual não tenho competência para tratar. Entendo que Barroso precisava decidir ali sobre um habeas corpus que, como fato jurídico, simplesmente não pode permanecer sem decisão. No entanto, uma vez que Barroso deve, de algum modo, dar razões pelas quais decide a favor ou contra a concessão do dito habeas corpus, a argumentação fornecida ultrapassa a simples “subsunção de um fato à norma” e abre-se à análise por si mesma. Até porque, não custa lembrar, o que se espera dessa instância suprema é a baliza que justamente indique os elementos a partir dos quais a Constituição deve ser interpretada. É por isso que a estratégia argumentativa do texto não pode ser vista apenas sob o ponto de vista da decisão (jurídica) stricto senso, mas impõe-se como uma série de opções filosófico-conceituais que, na busca de uma compreensão mais acurada do tema e do impacto da decisão, devem ser ponderadas em si mesmas.
1. O problema da distinção dos problemas
A discussão sobre o aborto estende-se por uma grande miríade de problemas que, não raro, são tomados de maneira absolutamente indistinta. O aborto certamente vincula-se com políticas públicas de saúde, do mesmo modo que diz respeito a questões socioeconômicas, psicológicas, jurídicas, mas também científicas, morais e religiosas. No entanto, do fato de que essas múltiplas dimensões do problema se tocam e, por vezes, se recobrem, não se segue de maneira alguma que não possam ou devam ser consideradas, cada uma delas, em suas especificidades. Isso deveria ficar bastante claro inclusive pelo fato de que, até para respondermos à pergunta “Qual – ou quais – dimensão (ou dimensões) deve(m) ser privilegiada(s) nas decisões?”, é imperativo ter em mente suas distinções e diferenças. Não obstante, o debate e as argumentações frequentemente deslizam de um domínio a outro de maneira absolutamente desordenada; não se trata em absoluto de dizer que a solução não pode se dar nos pontos de tangência entre diversos aspectos, mas que, em geral, é comum vermos os vários elementos sendo misturados e, por fim, concluir-se pela precedência de um dos pontos sem que ele tenha sido analisado e sopesado comparativamente com outros de maneira satisfatória. A título de exemplo, é perfeitamente possível que se conclua pela precedência dos direitos da mulher ou da questão da saúde pública sobre os direitos do embrião, mas não sem antes tentar esgotar a reposta à questão “O embrião possui direitos?” e, então, equacioná-los com os anteriores: há algum dos sujeitos cujos direitos devem ter precedência sobre os demais? Barroso mesmo esboça a diferenciação dos problemas para justificar sua decisão e, de fato, opta por conceder a precedência a uma determinada dimensão. Resta ver, todavia, se o ministro esforçou-se por avançar na compreensão das demais.
2. As “escolhas filosóficas” de Barroso
O núcleo da fundamentação de Barroso está exposto na terceira das quatro grandes partes do voto, intitulada “Inconstitucionalidade da criminalização da interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre”, que se estende dos parágrafos 11 ao 48. Ali o ministro funde uma série de razões que vão desde a referência ao já clássico caso norte-americano “Roe vs. Wade”, até a enumeração dos direitos fundamentais da mulher que seriam violados no caso da proibição do aborto, passando pelos motivos que justificariam o aborto até o primeiro trimestre, mas não depois deste.
Aquilo que chamei de estratégia argumentativa do texto dá-se pelo seguinte percurso, que contém elementos notáveis em si mesmos. É possível reconstruí-lo de maneira não-linear: no §21 Barroso insere o problema da dúvida sobre o “status jurídico do embrião durante a fase inicial da gestação” e apresenta as duas grandes posições sobre o tema: há aqueles que sustentam que a vida se inicia na concepção e aqueles que defendem que “antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno”.
Barroso segue então para curiosas afirmações no §22. O ministro começa por dizer que “Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida.” Ora, que não haja solução jurídica para a controvérsia é incontroverso; a questão, tomada em si mesma, não é jurídica. O leitor mais afeito ao âmbito legal poderia aqui inclusive celebrar que Barroso esteja se atendo a seu domínio e àquela sua obrigação de ter, como juiz, de decidir exclusivamente a partir de elementos jurídicos. No entanto, o mesmo parágrafo segue: “Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe.” Some-se a isso o que vai no §47: “Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno.” A partir daí a argumentação segue, por conta do exposto, assumindo a precedência da mãe por sobre o embrião e arrolando, dos parágrafos 23 a 31, as violações aos direitos fundamentais da mãe no caso da obstrução da possibilidade do aborto até o terceiro mês.
Voltando ao §21, ao menos duas coisas chamam a atenção no parágrafo citado. Em primeiro lugar, o argumento de Barroso apresenta uma estrutura no mínimo estranha. Após dizer que não há “solução jurídica” para a questão sobre a vida do embrião, o ministro relega a decisão ao que chama de “escolhas filosóficas ou religiosas de cada um”, indicando que não é possível fiar-se em escolhas de tais tipos para sustentar uma posição pública. O uso feito aí do adjetivo “filosófico” é particularmente intrigante. Junto com o complemento do final da oração, o que está sendo afirmado aí é que posições filosóficas sobre o tema são idênticas a “escolhas […] de cada um”, o que significa dizer que não podem ser reconduzidas a nenhuma esfera objetiva, acessível a outros sujeitos racionais, e que prescinde absolutamente de argumentação que possa ser compreendida e, eventualmente, refutada. É no mínimo curioso que o ministro qualifique o substantivo “escolhas” com o adjetivo “filosófico” para, ao final das contas, significar apenas opções individuais absolutamente relativas ao gosto próprio ou, ainda, escolhas privadas sobre as quais não é necessário dar razões (deixo de lado aqui a questão sobre o dar razões das “escolhas” religiosas; basta mencionar que dificilmente alguém que leva a sério o problema religioso “escolhe” nos moldes do que o ministro parece entender por escolha). De Tales de Mileto a David Chalmers, posições filosóficas caracterizam-se justamente por imporem sobre si mesmas o dever de apresentar razões intersubjetivas passíveis de serem discutidas e não, como denota Barroso, por serem meras expectorações do foro íntimo. Talvez seja por conta desse entendimento particularmente restrito acerca do que seja uma tomada de posição filosófica que, após rechaçar a validade da “escolha” filosófica, Barroso compromete-se com algumas delas sem, absolutamente, fornecer razão alguma. Vejamos apenas uma que, não obstante, já se desdobra consideravelmente.
Barroso aponta que, até o terceiro mês, por não haver condições de o embrião sobreviver fora do corpo da mãe, ele deve estar submetido à vontade e à decisão da mãe pela salvaguarda da “autonomia” desta em “poder controlar o próprio corpo” (§25). Ora, fica absolutamente sem fundamentação alguma que devamos passar de “dependente do corpo da mãe” à “idêntico ao corpo da mãe” de tal modo que a autonomia sobre o próprio corpo justifique a ingerência sobre o embrião. De fato, poder-se-ia até derivar a conclusão oposta: porque dependente, ela teria o dever de zelar pelo embrião até que ele deixe tal estado. O que ocorre, no entanto, é que desde a concepção o embrião possui carga genética irrepetível e diferente daquela da mãe e, mesmo até o terceiro mês, vários de seus órgãos – ou proto-órgãos – já estão funcionando. Ao que parece, a noção de “corpo próprio” pressuposta aí é elástica o suficiente para comportar uma entidade de carga genética distinta, com sistemas orgânicos fisiologicamente independentes. Substitua-se o “embrião” por um “parasita” – que satisfaz as mesmas condições anteriores, com seus processos fisiológicos próprios ainda que dependa do seu hospedeiro – e ver-se-á tal redução ao “próprio corpo” não parece justificável e, de fato, tais “escolhas filosóficas” do ministro não apresentam nenhum tipo de argumento nesse sentido.
3. As três questões
Aqui pode ser interessante explicitar a distinção entre três questões bastante relevantes e que aparecem confusamente mescladas no pensamento do ministro:
1a O embrião é uma vida? Se sim
2a O embrião é uma nova vida, distinta daquela da mãe? Se sim
3a O embrião é uma nova vida humana?
Parece biologicamente difícil não dar uma resposta afirmativa à 1a questão.
Quanto à 2a questão, uma vez que o embrião não é como qualquer outra célula viva dos progenitores (por possuir um código genético diferente daquele dos pais tomados individualmente e sistemas fisiológicos distintos), parece plausível responder afirmativamente também a ela. A noção de “dependência” do embrião para com a mãe parece deslizar injustificavelmente para a de submissão ou possessão (ontológica), a ponto de significar a possibilidade de “disposição” do embrião. Note-se que, nem mesmo após o nascimento, o óbvio reconhecimento de dependência (em suas diversas formas, incluindo a legal) da criança à mãe jamais acarreta a consequência da disposição. Isso deveria bastar para pensarmos agora em outra chave a relevância de argumentos favoráveis ao aborto a partir da autonomia e individualidade da mulher.
Por fim, e quanto à 3a questão? O embrião é uma nova vida humana, sim ou não? Ainda em sendo verdade que o embrião até o terceiro mês não possa viver fora do corpo da mãe, só – e somente só – um embrião humano pode, em todo universo, ser uma nova vida humana. Se ele não o é desde sua concepção, é plausível questionar tanto que tipo de vida não-humana seria a do embrião antes do terceiro mês, quanto o que poderia fazê-lo passar de uma forma de vida não-humana para uma humana; uma “metabasis eis allo genos” (mudança para outro gênero), para usar uma expressão lógica de Aristóteles. A formação do tronco neural ou do “córtex cerebral”, na fórmula de Barroso, não parece ser suficiente. Isso porque há aí uma patente inversão dos elementos: uma estrutura fisiológica que permita que um embrião tenha “sentimentos e racionalidade” (§47) só pode surgir em um embrião humano e não fazê-lo tornar-se tal por força do seu surgimento. O experimento mental do transplante do encéfalo humano de um feto – com toda a sua estrutura – em um macaco, um rato ou um porco, dificilmente faria do organismo resultante um humano (embora possa se conjeturar filosoficamente um híbrido). Em suma, por seus próprios meios, apenas em um embrião humano vivo existe a possibilidade da formação de uma estrutura tal como um tubo neural humano. (Para o que aqui discuto, a formação de estruturas in vitro é irrelevante.)
Duas observações, portanto, à guisa de conclusão.
É notável que Barroso, como vários interlocutores de ambos os lados no debate sobre o aborto, creia não estar se comprometendo em absoluto com posições, teses e pressupostos filosóficos, agora sem aspas. No entanto, mesmo quem acredita apontar exclusivamente para critérios biológicos ou científicos compromete-se ao menos com a tese que assevera que a biologia, a medicina ou a genética – e não a cultura, o costume ou a simples vontade individual (pense aqui nas tribos indígenas que cometem infanticídio) – sejam os paradigmas mais desejáveis. Isso porque as ciências naturais parecem satisfazer melhor o nosso desejo de objetividade que é, ele mesmo, um parâmetro cuidadosamente burilado e aperfeiçoado ao longo do pensamento (filosófico) ocidental.
Por fim, neste ponto, continua sendo possível que se decida por preferir o aborto como resolução dos problemas da saúde pública derivados dos procedimentos ilegais ou, ainda, preferir o aborto como devendo estar submetido aos direitos fundamentais da mãe. Mas não creio ser possível, de forma alguma, abster-se de lidar objetivamente com o problema nuclear de saber se estamos ou não eliminando uma vida humana, sob o pretexto de não haver possibilidade alguma de iluminar racionalmente o problema, como se estivéssemos tão somente confinados às nossas próprias opiniões cuja validade não pode pretender se estender para além de nós mesmos.