por Desidério Murcho
O norte-americano Alvin Plantinga tem 85 anos e é um dos mais influentes filósofos contemporâneos, não apenas na metafísica da modalidade, mas sobretudo na filosofia da religião. O seu pensamento era até há relativamente pouco tempo desconhecido nos países de língua portuguesa, situação que felizmente mudou radicalmente nos últimos anos. A casa editora Vida Nova acaba de publicar a minha tradução da sua obra mais extensa, Crença Cristã Avalizada (originalmente de 2000), que conta com 512 páginas. É uma ocasião propícia para dar a conhecer este importante filósofo ao grande público.
O seu primeiro livro mais influente, na área da metafísica da modalidade, foi publicado em 1974 e tem por título The Nature of Necessity (a natureza da necessidade). Foi um livro pioneiro, se tivermos em conta que as conferências de Kripke que tanto influenciaram a área (e que mais tarde dariam origem ao famoso livro traduzido em Portugal com o título O Nomear e a Necessidade) haviam tido lugar apenas quatro anos antes. O que está em questão é uma ideia simples, mas revolucionária: que o conceito de necessidade, apropriadamente entendido, não diz respeito a maneiras humanas de conhecer as coisas, nem à linguagem, nem a outras coisas humanas, mas antes à própria realidade. Isto é revolucionário porque durante décadas, e talvez desde o século XVIII de Hume, era comum pensar entre os filósofos que a necessidade era de algum modo linguística, ou mental, ou conceptual, ou epistémica — ou seja, que de algum modo era uma projecção das nossas categorias linguísticas ou dos nossos modos de conhecer as coisas. A doutrina linguística da necessidade estava de algum modo presente, mais ou menos inexplicitamente, e os primeiros dois ataques influentes devem-se precisamente a Plantinga e Kripke. Para se compreender o que está em questão aqui considere-se a diferença entre as frases “Sócrates era grego” e “Os quadrados têm quatro lados”. A primeira parece contingente: é verdadeira, mas poderia ser falsa porque parece que Sócrates poderia ter sido egípcio; em contraste, a segunda parece que não poderia ter sido falsa e por isso diz-se que é necessária. Os casos mais óbvios de verdades aparentemente necessárias são as verdades lógicas (no sentido amplo, que inclui quaisquer verdades conceptuais ou analíticas). Daqui a pensar que são contingentes todas as verdades que não sejam lógicas vai um passo — mortal, mas isso não desencorajou a maior parte dos filósofos. O impacto de Plantinga e Kripke foi mostrar que não havia boas razões para pensar que as únicas verdades necessárias são as lógicas; afinal, se acaso a velocidade da luz for necessariamente trezentos mil quilómetros por segundo, isso não é uma verdade lógica, tal como não é uma verdade lógica que a água é H2O, mas isso parece também uma verdade necessária porque se a água não tivesse aquela composição química não seria água.
Nesse mesmo ano, 1974, Plantinga publicou o seu ataque devastador ao argumento lógico do mal, obra essa que traduzi também para a Vida Nova em 2012, com o título Deus, a Liberdade e o Mal. Até à publicação deste livro era comum entre os filósofos pensar que havia um argumento lógico simples, baseado no mal, contra a existência de Deus. Na verdade, diferentes versões eram conhecidas e discutidas desde há séculos, pois é uma ideia muito intuitiva e simples: a existência de uma divindade sumamente boa, omnipotente, omnisciente e criadora parece incompatível com a imensidade de mal que há infelizmente no mundo. Desde o mal moral (homicídios, guerras, roubos, humilhações, racismo, machismo, xenofobia, homofobia) ao natural (doenças, terremotos, cheias, acidentes), o mundo abunda em provas aparentes da inexistência de uma divindade que pode evitar esses males, que sabe que eles existem, que quereria evitá-los porque é boa e que indirectamente os criou porque criou o mundo. Acontece que as aparências iludem e a versão lógica do argumento é muitíssimo difícil de ser adequadamente defendida. Na verdade, isto deveria ser óbvio, mas só se tornou óbvio com Plantinga, que mostrou que a existência da divindade teísta não é logicamente incompatível com a existência de mal. A incompatibilidade lógica é uma coisa muitíssimo exigente, e mais rara do que parece; por exemplo, não é logicamente impossível lançar um dado e este transformar-se num elefante cor-de-rosa. Quando se afirma que A e B não são logicamente compatíveis é preciso ver com cuidado se não se trata de uma certa liberdade de linguagem. É logicamente incompatível que Sócrates seja e não seja grego, mas não é logicamente incompatível que ele seja grego mas também extraterrestre. Tudo o que Plantinga teve de mostrar foi a possibilidade lógica de existir uma divindade teísta e ao mesmo tempo o imenso mal que desde sempre acompanhou a infeliz história da humanidade.
Em 1983 surgiu o volumeFaith and Rationality (fé e racionalidade),co-organizado por Plantinga e Wolterstorff, que assinala a viragem epistemológica do primeiro. Já no seu artigo na Nôus de 1981, “Será a Crença em Deus Apropriadamente Básica?”, Plantinga dava os primeiros passos no caminho imenso que o conduziria ao livro agora dado à estampa no Brasil. O problema em questão é o seguinte: imaginando que a crença religiosa carece do género de provas que há na física ou na biologia, será que daí se conclui correctamente que não é racional, ou que é de algum modo inapropriada? A resposta de Plantinga é que a crença em Deus não precisa do género de provas que há nas ciências, mas que isso não é assim tão surpreendente porque muitas outras crenças humanas carecem também desse género de provas e não são menos apropriadas por isso. Uma pessoa não tem provas científicas de que realmente comeu salmão ao almoço quando se lembra disso no dia seguinte; porém, não está em pecado epistémico por ter essa crença. Por outras palavras, há alguma crenças que são apropriadamente básicas, no sentido em que não se justificam com base noutras, mas antes directamente, por meio de algo como uma convicção interna.
O debate de fundo aqui em questão é bastante antigo, mas ganhou o seu rosto moderno com o influente artigo de W. K. Clifford e que dá nome ao tema: “A Ética da Crença”. Este versátil cientista e pensador do século XIX defendeu o que parece perfeitamente razoável: que “é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes”. O termo “indícios” traduz aqui “evidence”, que em inglês não quer dizer o que é evidente — grande parte das “evidências” arqueológicas não são evidentes — mas antes os dados, indícios ou provas a favor de algo. A resposta não menos influente de William James, “A Vontade de Acreditar”, repõe a ideia algo fideísta de que é apropriado acreditar numa divindade, mesmo sem quaisquer razões adequadas para isso. O volume A Ética da Crença, que organizei em 2010 para a editora portuguesa Bizâncio, reúne estes dois textos, em tradução de Vítor Guerreiro, além do referido artigo de Plantinga. E é por aqui que se começa muitas vezes o estudo deste tema.
Em 1993 surgem os dois volumes de Plantinga sobre o conceito de aval ou garantia: Warrant: the Current Debate (garantia: o debate actual)e Warrant and Proper Function (garantia e função apropriada). O que está em questão aqui é saber em que condições uma crença verdadeira constitui conhecimento, ao invés de se ter apenas acertado por sorte na verdade. Plantinga defende que há uma única maneira adequada de entender essas condições: uma pessoa tem uma crença apropriadamente justificada, ou garantida ou avalizada, quando, além de essa crença ser verdadeira, ela está num contexto epistémico apropriado, os seus sistemas cognitivos foram bem concebidos para produzir crenças verdadeiras, e estão funcionando apropriadamente. Como se vê, este tema é suficientemente independente de questões religiosas, e diz respeito ao cerne da epistemologia, que é a compreensão aprofundada do conceito fundacional de justificação. Para quase qualquer condição que se consiga imaginar, há contra-exemplos imaginativos em que a crença é verdadeira mas está de tal modo tortuosamente justificada que parece pouco razoável considerar que se trata de conhecimento. Eis só um exemplo para se ficar com uma ideia do debate: imagine-se que alguém vê ao longe o que lhe parece um cão-pastor junto a um rebanho distante, enquanto caminha pelo campo. Em muitos casos, isto parece suficiente como justificação para a sua crença de que está um cão-pastor junto ao rebanho, e parece que a pessoa realmente sabe da presença do canino. Porém, imagine-se que ela realmente viu afinal uma representação fotográfica em tamanho real, recortada em cartão, mas que ao mesmo tempo, por detrás dessa representação, dorme um magnífico espécime de pastor-alemão. Assim, a sua crença é verdadeira, e parece bem justificada, mas ela certamente não sabe que está ali um pastor-alemão. E os exemplos deste género nunca mais acabam. Já se vê que para quem é cristão, como Plantinga, a resposta simples é que quando as nossas crenças verdadeiras estão adequadamente justificadas é precisamente porque Deus quer promover o conhecimento humano. Sabemos coisas quando o nosso sistema cognitivo está a funcionar tal como foi concebido por Deus e no contexto epistémico adequado. Um naturalista põe a evolução no lugar de Deus, mas neste ponto as duas respostas não são muito diferentes.
Em 2008 Plantinga publicou um volume em co-autoria com Michael Tooley, que traduzi em 2014 para a Vida Nova: Conhecimento de Deus. Neste volume, Tooley apresenta um poderoso argumento probabilístico contra a existência de Deus, com base no mal, e Plantinga esclarece a sua ideia de que a crença cristã é apropriadamente básica. Trata-se de um livro único porque os dois filósofos discutem sem golpes baixos os seus pontos de vista imensamente diferentes, numa lição de discordância cortês e de probidade epistémica, que tanta falta faz. Plantinga apresenta neste livro outra componente do seu pensamento que se tornaria também bastante influente e que surge nos seus últimos trabalhos originais publicados. Trata-se da ideia de que o naturalismo é incompatível com a ciência — uma posição que soa a brincadeira de mau gosto, mas não é. No artigo “Religião e Ciência”, publicado em 2010 na Stanford Encyclopedia of Philosophy e que em traduzi em 2011 para a Crítica, Plantinga defende que se entendermos o naturalismo como a ideia de que não existem divindades, e que os seres humanos são apenas o produto da selecção das espécies, somos incapazes de explicar como se consegue ter crenças genuinamente verdadeiras, ao invés apenas de crenças que promovem a sobrevivência. No livrinho de 2010, em parceria com Dennett, Science and Religion (ciência e religião), este é precisamente o tema do debate, a que Plantinga dá depois um tratamento alargado em Where the Conflict Really Lies (onde está realmente o conflito), de 2011. Só para efeitos de completude, vale a pena mencionar o seu último livro, Knowledge and Christian Belief (conhecimento e crença cristã), de 2015 (há uma tradução brasileira, mas está esgotada), que é uma síntese da sua obra magna que a Vida Nova agora deu à estampa.
Está pois de parabéns a Vida Nova, pelo esforço notável que tem feito para divulgar entre nós um dos mais fascinantes, profundos, perspicazes e originais filósofos do nosso tempo.
Visite o site Crítica na Rede.