por Augusto de Carvalho
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Nada mais humano do que a luta pela emancipação em relação a tudo aquilo que foi e é incontrolável — a guerra entre a humanidade e os deuses, chamados assim porque habitam e integram o mundo natural. A rebeldia da criatura contra a criadora é o arquétipo dessa relação hostil, da qual nunca foi declarada uma vencedora. Mesmo após o advento da ciência moderna, talvez a arma humana mais eficiente contra os seus declarados adversários, dado que a palavra científica emula os nomes próprios originais daquilo que existe e, dessa forma, controla muito do que antes fora considerado indômito, a mencionada batalha parece se tornar ainda mais impiedosa.
Diante do progresso científico, o mundo natural esteve na retaguarda por muito tempo. Mas os séculos de exploração e cativeiro resultaram, então, numa resposta devastadora. No afã de nossa insubmissão, não percebemos que o que aparentava o domínio humano sobre a natureza era apenas uma miragem. A maquinação tecnológica, executada de maneira imprudente, significa a nossa igual execução, uma vez que somos filhos e filhas dos mesmos deuses e deusas que perseguimos, como Eleuterno Dias nos lembrou:
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Minha mãe é o mar
Meu pai é a montanha
Sou, assim, o mar e a montanha.
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Nascido como saudade e lamento
lançado na profundidade
Sou tormento, nostalgia
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Moro com todos os demônios
aqui, entre a devassidão do infinito mar
e o vício da eterna montanha.
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Montanha e mar. A vida de uma é a vida do outro. E nós, ao invés de nos rebelar contra esse vínculo, podemos cuidar dele se não queremos perecer junto ao que destruímos. Fazemos parte de um mesmo fud?, um mesmo clima, nos termos de Tetsur? Watsuji — o ambiente de determinado espaço, o qual vincula sempre a natureza e a humanidade. As obras do cineasta Hayao Miyazaki evidenciam essa ideia de Watsuji, revelam que essas metáforas poéticas não são somente alegorias imprecisas e obsoletas de nosso elo com o mundo natural, pois encenam exatamente as consequências reais da antiga contenda do gênero humano contra o que ele não domina, chamados, desde o princípio, deuses e deusas. Miyazaki traduz a obstinação humana pelo controle das montanhas e dos mares, do céu e da terra, bem como a conseguinte cólera divina diante de nossa desobediência.
Os deuses e deusas, enfim, são metáforas da autoridade indomesticável do nosso mundo. E elas, as divindades, não são menos reais por serem metáforas. Os nomes próprios dados pela ciência ao que é descoberto pela inteligência humana, a propósito, são tão reais quanto metafóricos. A matemática, a língua pura das ciências que descrevem os nomes mais exatos, é instituída por metáforas básicas, os números e as operações. Não há números nem operações. Eles não existem, são de ordem simbólica, sinais metafóricos sobre alguma medida, quantidade ou arranjo. Para dar uma aparência concreta a um número ou operação, é preciso emprestar um índice material à frase ou ao algoritmo matemático — uma forma geométrica ou um elemento. Em razão disso, ainda que a matemática seja tecnicamente útil, ela representa linguisticamente a realidade de jeitos semelhantes a outras linguagens: ela pode falar tanto a verdade quanto a mentira, escrever história e ficção.
Por tudo isso, sobretudo porque os números e operações são metafóricos, a matemática está igualmente habilitada a dar nomes aos seus deuses e a elaborar os seus mitos. Mas diferentemente da palavra matemática, que dá acesso à ciência física, os deuses, por outro lado, requerem palavras distintas, dado que falam a língua da religião, a qual, guardadas as diferenças, é do mesmo modo metafórica. Não me refiro à religião sociológica e historicamente condicionada, como cultura dogmática e visão de mundo particular; tampouco me refiro ao charlatanismo ordinário; refiro-me à religião como linguagem sincera de comunhão com os aspectos insubordinados do destino humano. A religião, segundo a clássica definição dada por James Frazer em O Ramo de Ouro (1890), em última instância objetiva nossa conciliação com os poderes superiores à humanidade, que desorganizam e organizam o mundo, controlam e direcionam a vida. A resposta de Keiji Nishitani à pergunta O que é a religião? (1961) não é tão diferente, e nos ajuda ainda a compreender do que são feitas as metáforas divinas, a saber, daquilo que é primitivo, tão básico que nos esquecemos de seu papel fundamental e implicações práticas.
Nada disso deve conduzir a uma retórica antitecnológica; ao contrário, ressalta não mais que um limite do progresso da tecnologia, o qual, caso não respeitado, estimula e antecipa o nosso irremediável fim. A palavra científica descobre e explica, mas nunca controla integralmente o nosso destino, por mais que seja essa sua mais controversa ambição. A religião, por sua vez, em seu sentido antropológico e filosófico dado por Frazer e Nishitani, antes de mais nada, abdica do conflito contra os deuses, assume que nunca irá controlá-los por completo e, finalmente, apresenta-nos uma pergunta, preparada sempre por alguma mitologia, qual seja, como reatar o que é continuamente desfeito pelo conflito entre o humano e o divino?
De acordo com Nishitani, a religião e seus mitos são os meios que dispomos para lidar com a guerra perpétua entre nós mesmos e o que nunca vamos de fato governar — algo próximo ao que já havia sido dito por F. W. J. Schelling e por Vicente Ferreira da Silva. Afinal, a ciência, quando se esquece de sua origem metafórica, parece não suportar a ideia de que nenhuma árvore descansa em paz quando o vento sopra, e prefere cortá-la pela raiz a vê-la subordinada aos desejos imprevisíveis da contingência, deusa maior de qualquer panteão. O mito, apesar de teórico, e não técnico, não é menos objetivo. Embora o mito observe a chuva derrubar as folhas de uma árvore e o vento as empurrar facilmente para bem longe, ele também vê que não ocorre o mesmo com uma montanha, quando abraçada pelas brumas imensas de um dia nublado, a qual, aos nossos olhos, permanece imune ao sopro do ar e à força da água. Feito os versos de um poema de Matsuo Bash?, portanto, a mitologia inicia todo diálogo com o mundo ao reconhecer a natureza como sujeito, não só como dócil escrava da técnica, pois que:
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Em pleno mês de junho
as nuvens se reúnem no cume do
monte Arashi.
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