por Augusto de Carvalho
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Os deuses e a humanidade sempre compartilharam a mesma existência. O empenho humanista pelo esquecimento de todas as divindades, ora chamado laicização, ora secularização, a despeito de sua qualidade política salutar, mais encobre que descobre o elo umbilical entre o humano e o divino. Se os deuses não ousam mais dançar à luz do meio-dia, como diz Yukio Mishima, porque se esconderam no interior da noite, é exatamente na escuridão das regiões preteridas da realidade que se asilam, hoje, as potestades que outrora foram iluminadas pelo mesmo sol que orienta os mortais.
Não me refiro aqui aos ídolos fabricados à imagem humana, marcados pelos vícios e ilusões de sua descendência, que tornam até mesmo a mais hábil criatura um mero instrumento de suas vontades—de modo semelhante ao qual Richard B. Onians descreve alguns deuses da Antiguidade, em As Origens do Pensamento Europeu de 1951. Refiro-me ao princípio, ao primeiro verbo que cria; à palavra que nomeia, porque sem ela nada há de haver; à força que nos lança ao nosso destino, que produz e destrói o início; à existência; à Ninguém.
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Ninguém sempre nos molda com terra e barro,
Ninguém conjura nosso pó.
Ninguém.
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Os versos de Paul Celan, louvor à Ninguém, Salmo ao nada, relembram os incrédulos que os deuses, ainda que nas sombras, permanecem imprimindo sua rubrica inequívoca, moldando o ser e conjurando a morte—ou « encantando » nosso pó, a forma elementar do fim e do início, segundo a mais recente tradução de Mauricio M. Cardozo. Nenhuma divindade pede licença para iniciar a vida, sempre sem maiores razões, da mesma maneira que não precisam de permissão para ceifá-la quando a contingência se manifesta como a expressão trivial da passagem do tempo. Para Celan, não é Ninguém quem inicia e finda a vida, não há Ninguém controlando o contingente e o acidental. Ninguém conduz a passagem do transitório. Ninguém terrifica até mesmo o laico e o secular, já que os deuses permanecem temidos pelo gênero humano, precisamente porque existem sem ser alguém, sendo Ninguém.
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Não é por acaso que o epíteto do antigo deus da linhagem abrahâmica—judaica, cristã e islâmica—, embora proibido de ter o nome pronunciado pela tradição, guarda há milênios a essência da deusa inicial, à qual Yeshayahou Leibowitz, numa citação a Mosche ben Maimon, definiu filosoficamente como a existência necessária. YHWH—yod, hê, wav, hê—, o nome próprio desse deus ancestral, abriga a verdade de um mundo abandonado ao oblívio, cujo significado, porém, persevera. De acordo com o biblista Thomas Römer, em A invenção de Deus, obra de 2014, a vocalização deste nome, algo como Yahweh, corresponderia à uma forma causativa da raiz ser do hebraico antigo. Yahweh será então aquele que faz ser, o insólito ser do é. No segundo livro da Bíblia Hebraica—o Êxodo ou Schemot—, uma conhecida passagem narra o raro momento em que Yahweh se apresenta: « ehyeh asher ehyeh », « eu sou, eu sou ». Essa auto-enunciação divina, assim, demonstra que seu nome é ser, uma indeterminação que possibilita a criatividade poética peculiar à fragilidade daquilo que existe. O ser é Ninguém.
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No princípio, o Poema:
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Os deuses despertaram.
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Em qualquer princípio, os primeiros nomes são os primeiros deuses. É o que Dora Ferreira da Silva faz entender em seu Canto V. No vazio que caracteriza a poesia, espaço escuro e oco da imaginação infinita, no início sem forma, encontram-se o ser, a existência, a vida, a morte, a passagem, a transitoriedade, toda palavra aórgica que não foi originada por Ninguém, pois ao contrário, tudo origina. Qualquer potência que não foi tramada por alguém, mas por Ninguém, pertence ao aórgico, para usar o termo cunhado por Hölderlin—a quem, aliás, a poeta dedicou algumas de suas traduções. O aórgico é uma classe de seres indômitos, diz respeito ao que não é maquinado pelo sujeito humano, quer dizer, ao que é de ordem divina, primeiramente poética, porque cria de modo livre da agência e toque humano, ao passo que não é gerado por Ninguém. A propósito do caráter divino-poético do aórgico, Vicente Ferreira da Silva, companheiro de Dora, em Introdução à filosofia da Mitologia de 1955, reitera que não é possível dominá-lo pelo cálculo ou pela medida científica. Conforme o filósofo, reconhecer o aórgico não permite controlá-lo conceitualmente, torná-lo um objeto, mas significa assumir que os deuses não desabitaram o nosso convívio, uma vez que eles ainda desempenham um papel mitológico fundamental sobre a realidade, qual seja advertir que a humanidade não é autônoma como a parte sobremodo antropocêntrica do humanismo supõe. Ninguém existe e se manifesta em todos os deuses que antecedem a nossa errância.
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