por Celina Alcântara Brod
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Henry Louis Mencken, com seu afamado tom ácido e cínico, declarou que “a democracia é a arte e a ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos.” Sua língua afiada jamais dourava a pílula, muito menos quando o assunto era a política. A democracia, segundo ele, apoia-se em proposições “palpavelmente falsas” e promessas infiéis, mas “deliciosamente reconfortantes.” Mas, afinal, o que a democracia, este circo de chefia malfadada, nos promete?
Toda vez que um político deseja vender com sucesso seu apanhado de promessas, irá proferir um conjunto de palavras que compõem a tenda que abriga as democracias: igualdade, liberdade, justiça, mudanças, progresso, prosperidade, segurança, etc. No entanto, ninguém sabe ao certo o que exatamente determinado candidato está propondo quando utiliza tais termos, talvez nem ele mesmo. O fato é que toda propaganda política, na caça pelo voto dos cidadãos, exibe um jogo de linguagem que se transforma rapidamente em jargões vazios. Frases que são capazes de fazer-nos acreditar, em épocas eleitorais, que nossa opinião de fato vale alguma coisa.
Igualdade e liberdade são os conceitos mais concorridos. Mas estamos livres para fazer o quê? Somos iguais de que forma? Igualdade não é o mesmo que identidade, ou seja, dizer que os homens são iguais não é o mesmo que dizer que são idênticos, isto significa que igualdade pressupõe uma correspondência em relação a alguma coisa. E liberdade, sendo diferente de licenciosidade, pressupõe que tal termo exige algumas responsabilidades. Portanto, igual e livre são predicados sempre incompletos. Por ora, tomaremos os termos “livres e iguais” pelo sentido mais popular e difundido: todos estamos sujeitos às mesmas regras e deveres.
Mas, será que somos realmente iguais aqueles que chamamos de agentes governamentais? Será que o sujeito pacato –we, common folk – pode punir alguém, quando esta pessoa desobedece a algum de seus comandos? Podemos coletar dinheiro compulsoriamente para financiar nossas atividades ou a de terceiros? Será que o pequeno e médio empreendedor têm a mesma proteção e os vínculos vantajosos que há entre o Estado e as grandes empresas? O famoso rent-seeking? Podemos proibir nosso vizinho, ameaçando-o com futuras punições, de manter em casa vasos com plantas medicinais? Podemos fazer o alistamento involuntário de jovens para trabalhar na proteção de nossas propriedades? Não, mas o Estado pode. Caso algum indivíduo resolva agir como o Governo, estas ações imediatamente recebem outros nomes: extorsão e sequestro, por exemplo.
Contudo, felizmente, não são os homens que nos governam, mas as leis. “Mas são homens sentados em banquinhos que, no fim das contas, decidem o que a lei é ou o que deve ser”, retrucaria o cinismo de Mencken. A intervenção do falecido jornalista americano irrompe, sem piedade, para sequestrar nossa ilusão de uma suposta verdade objetiva sobre a questão da justificação e legitimidade das leis. Diante dessa constatação, uma inquietante pergunta torna-se inevitável: por que o Estado está eticamente autorizado a matar, extorquir, proibir e impor?
Aí está um argumento libertário que não deve ser ignorado, mesmo por aqueles que chamam tais teóricos de simplistas ou meros apologistas da lógica do mercado, ou ainda aquilo que Russell Kirk estigmatizou de “terríveis simplificadores”. Os libertários parecem estar mais próximos de complicadores, pois eles estão dispostos a levar a questão filosófica sobre a legitimidade da autoridade política (o direito de usar a força física ou a ameaça para governar) até às últimas consequências. O que em termos práticos significa devolver aos teóricos já resignados a seguinte réplica: “porque sim” não é resposta.
O libertário está certo em não se conformar facilmente com a desigualdade de autoridade que existe entre o cidadão comum e os administradores da ordem legal, bem como a desigualdade entre os grupos de interesse privado, que por meio de contratos e lobbies, são beneficiados e muitas vezes participam na construção de novas regras para o jogo democrático. O libertário parte da premissa de que o grande antagonismo entre aquilo que é cobrado moralmente de indivíduos privados em contraste ao que é exigido eticamente do Estado remove da democracia qualquer chance de ser justa, pois lhe faltaria o essencial: igualdade.
Michael Huemer, professor de filosofia na Universidade de Colorado, junto com outros acadêmicos, aponta para a desigualdade e considerável desproporção ética que existe entre os reles mortais e aquilo que chamamos de Governo, ou nos termos de Huemer “instituição coercitiva”. Quando apontamos para esta desigualdade de autoridade e o privilégio moral que agentes governamentais gozam, vem à tona a pergunta política filosófica por excelência: por que, afinal, devemos obedecê-los? Esta não é simplesmente uma provocação que esconde a insurgência de homens anárquicos, com coquetéis molotov nas mãos, ávidos em iniciar uma revolução, muito menos uma iniciativa intelectual que pretende desafiar a ordem aos moldes de Henry David Thoreau. Estes acadêmicos estão longe de usar máscaras pretas, fazer passeatas pelas ruas pedindo a quebra do sistema, muito menos se recusam a pagar tributos como forma de desobediência civil. A questão sobre a autoridade política, do ponto de vista do teórico libertário, está centrada na desigualdade de autoridade, nas palavras de Huemer: “Os governos são considerados eticamente autorizados a fazer coisas que nenhuma pessoa ou organização não governamental pode fazer”.
Certamente a ênfase na igualdade de autoridade, que está naturalmente ligada à liberdade, desagrada os defensores da justiça distributiva, uma vez que os igualitários econômicos estão dispostos a conceder ao Estado licença para um maior controle sobre os bens materiais dos indivíduos. Na busca pela menor desigualdade econômica estes teóricos dispensam, sem muita cerimônia, a velha pergunta política sobre o direito de mandar e o dever de obedecer. Contudo, a questão que deve ser considerada e contém um grande desafio, não apenas filosófico, mas prático, é: a ordem legal operante tem quanto mais de autoridade do que eu, um indivíduo destituído de poder administrativo? Em outras palavras, por que o governo goza de um status moral diferente dos agentes privados? E quais são suas justificativas para tal? E o mais importante, como esta instituição utiliza tal autoridade? Estas perguntas podem servir como régua de medida para avaliarmos quão vantajosa tal desigualdade entre agentes não governamentais e governamentais está sendo.
Em suma, se não é possível uma total simetria entre as ações que um Estado está autorizado a efetuar e as ações dos indivíduos – por inúmeras razões que não teremos tempo de destrinchar aqui – como tomar dinheiro sem consentimento, proibir o uso de substâncias, impedir a entrada de imigrantes e toda a lista de obrigações políticas, e já que somos inevitavelmente forçados a abrir mão de parte desta igualdade e liberdade, logo, o mínimo que nos deve ser oferecido em troca são justificativas razoáveis para a existência desta disparidade de força.
No entanto, o que ocorre constantemente é a perpetuação da má alocação de recursos, péssimas políticas públicas, com gastos de verba desnecessários, obras inacabadas ou mal-acabadas, tributação para cada passo dado, uma segurança ineficiente, uma educação duvidosa; a lista é longa. Será que tais políticas públicas são justificativas aceitáveis para essa porção de igualdade e liberdade que abrimos mão? Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), o brasileiro trabalhou, em 2019, 153 dias para pagar toda a carga tributária, 29 destes dias serviram apenas para pagar desvios de corrupção. Nossos impostos, coletados compulsoriamente, compensam? Eles retornam para a sociedade de que forma? Por que haveríamos de investir em reformas de apartamentos para senadores e não em saneamento básico? Será justo um fundo partidário bilionário em um país cuja educação fundamental é abaixo de uma média aceitável? Por que a classe política, os homens sentados nos banquinhos, têm esse direito? Nessas horas, temos de concordar com o anarquista Benjamin Tucker e seu conceito de Governo: “a sujeição de um indivíduo não-invasivo a uma vontade externa.”
Para tamanha rebeldia anárquica poderá surgir a seguinte tréplica: nossos representantes são escolhidos pelo povo. Será mesmo que sabemos de antemão todas as decisões que serão tomadas por aqueles que iniciam suas campanhas com palavras tão vagas quanto mudança, um país mais justo, oportunidade para todos? Temos de lidar com a verdade, nua e crua, de que a grande maioria sequer lembrar o nome dos deputados que votaram nas últimas eleições. Mesmo que lembrem, será que estudaram e compararam a eficácia e viabilidade de suas propostas? No fundo, preferimos ser ignorantes no assunto, uma ignorância racional, problema levantado pelas teorias da Public Choice. Por que analisaríamos as propostas políticas se as nossas chances de mudar o resultado são pífias? A grande maioria passará mais tempo escolhendo um filme no Netflix do que estudando as propostas políticas de possíveis candidatos.
O economista Bryan Caplan, em sua obra, The Myth of the Rational Voter, aponta para a relação entre os custos e demanda por irracionalidade. Em se tratando de custos, se escolho um filme errado as consequências recaem apenas sobre mim, já os custos dos erros sistemáticos na política recaem sobre todos. Se o custo da irracionalidade é externo e recai sobre os outros, então por que não ser indulgente com escolhas partidárias ou atração pela personalidade carismática de um candidato? É evidente que, se diversas pessoas pensaram da mesma forma, más escolhas ganham por voto popular. Quem garante que a maioria sabe o que faz? Qual é a lógica por trás de uma escolha majoritária? Se a democracia escolhe x, logo, x é bom?
Os fatos também mostram que uma sociedade que não questiona a autoridade política e aposta exclusivamente na economia tampouco possui garantias de prosperar de forma livre e igual. A China, por exemplo, abriu espaço para um mercado eficiente, mas junto a ele aumentou sua tecnologia de vigília e controle das liberdades. Alguns já chamam tal sistema de totalitarismo digital, cujo controle estatal é feito a partir de um sistema de crédito social. Tal sistema promete monitorar o comportamento dos chineses e os pontuar de acordo, punindo e recompensando os cidadãos. Quem irá determinar o bom comportamento? Ao que tudo indica, estaríamos diante de uma nova espécie de governo, um governo híbrido: politicamente autoritário e economicamente livre. Mesmo nas democracias ocidentais mais liberais, encontraremos diversos conflitos entre vontades particulares, vontades majoritárias e o poder representativo. É bastante provável que, quando Mencken escreveu que a democracia é repleta de proposições “palpavelmente falsas”, ele estivesse falando sobre o legado de Rousseau e sua ingênua noção de vontade geral. Contrariando o francês revolucionário, o evidente abismo entre teoria e realidade demonstra que a ideia de um governo que represente uma vontade holística é, no fundo, apenas um fetiche democrático.
Há, contudo, lugar para um certo otimismo, afinal, democracias não mais cometem assassinatos em massa, nem jogam seus cidadãos em campos de trabalho forçado ou enforcam sonegadores. No entanto, satisfazer-se com essa comparação é desdenhar qualquer exigência mais sofisticada de um sistema onde poucos mandam e muitos obedecem. “Dá para encher uma biblioteca inteira com aquilo que os eleitores não sabem”, escreveu Bryan Caplan. É verdade, mas todos facilmente percebem quando estão em clara desvantagem. Há quem prefira ignorar os problemas que os libertários e os estudiosos da Public Choice levantam, mas não é ignorando os fatos que eles irão desaparecer. Resta-nos repetir as palavras de Thoreau, de seu famoso ensaio Desobediência Civil: “não peço o fim imediato do governo, mas, imediatamente por um governo melhor.”
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