Autoridade e razão: o legado de Joseph Raz

Entre autoridade, legitimidade, razão e autonomia, o legado e a riqueza filosófica de Joseph Raz, o gigante gentil que nos deixou recentemente. Um ensaio de Daniel Murata.

por Daniel Peixoto Murata

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Joseph Raz (Steve Pyke/Getty Images)

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Joseph Raz, nascido em 1939 e falecido recentemente, foi um dos mais importantes teóricos políticos e do direito dos últimos cinquenta anos. Correndo o risco de alguma simplificação, podemos dizer que o trabalho de Raz cobriu três grandes tópicos da filosofia: a filosofia do direito (em livros como The Authority of Law e Between Authority and Interpretation), a filosofia política (por exemplo, em The Morality of Freedom e Ethics in the Public Domain) e a filosofia da razão prática, em conjunção com a teoria da ação (como em Practical Reason and Norms e no recente The Roots of Normativity). O engajamento de Raz com esses temas não foi fragmentário. Suas discussões sobre estes três grandes tópicos são conectadas umas com as outras, e apesar de se aproximar ou se afastar de um ou outro destes temas ao longo de sua vida, Raz continuou refletindo sobre eles de uma forma ou de outra. Por exemplo, seu primeiro grande livro, Practical Reason and Norms, de 1975, é sobre razão prática (isto é, sobre como funcionam as razões que temos para fazer alguma coisa). Seu último livro, de fevereiro de 2022, The Roots of Normativity, continua a discutir o mesmo tema, ainda que com outros enfoques. Ambos os livros, de 1975 e de 2022, impactam nosso entendimento sobre como nosso uso da razão se relaciona com o direito.

Neste pequeno texto, pretendo apresentar de maneira resumida a contribuição de Raz para nossa compreensão do fenômeno da autoridade[1]. O que significa dizer que algo ou alguém é uma autoridade? Em nossa vida cotidiana, navegamos em meio à noções rudimentares de autoridade. Dizemos que o agente de trânsito tem autoridade, que os pais tem autoridade, que o Congresso tem autoridade, e assim por diante. O que isso significa? Por trás dessa diversidade de afirmações (sobre agentes de trânsito, pais, Congresso) existe a mesma ideia de autoridade?  Mais importante ainda, essas autoridades são justificáveis? A última pergunta colocada levanta aquilo que Robert Paul Wolff chamou de “conflito entre autoridade e autonomia”[2]. A marca de uma pessoa madura, autônoma, nos diz Wolff, é a capacidade agir de acordo com o que considera correto, com o próprio pensamento. A existência de uma autoridade que nos diz o que fazer conflita com essa marca de maturidade. Caso sigamos a autoridade (e não nossa própria capacidade de julgamento), deixamos de ser autônomos. Eis o que Wolff diz:

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“A marca que define o Estado é a autoridade, o direito de governar. A obrigação primária do homem é a autonomia, a recusa a ser governado. Parece, então, que não pode haver resolução do conflito entre a autonomia do indivíduo e a autoridade putativa do Estado.”[3]

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A estratégia de Raz para enfrentar o tipo de conflito levantado por Wolff tem, a meu ver, duas etapas. Primeiramente, precisamos entender melhor como as razões que temos para agir de um modo ou de outro funcionam. Em nosso caso, como uma diretiva dotada de autoridade funciona em nosso raciocínio prático? Em segundo lugar, precisamos entender quando uma autoridade é justificada em seu exercício. Uma coisa é entender como autoridades funcionam, outra é entender se elas tem o direito de funcionar.

Sobre o primeiro ponto, Raz retoma uma distinção célebre de Thomas Hobbes, a distinção entre ordens, pedidos e conselhos[4]. Quando prestamos atenção à esses diferentes tipos de enunciados, vemos que eles funcionam de maneira distinta em nossas vidas. Conselhos parecem adicionar coisas novas ao nosso processo deliberativo. Caso eu te aconselhe a não sair em uma vizinhança perigosa sozinho, o que estou fazendo é fornecer a você novos elementos em cima dos quais você pode articular o que vai fazer. Pedidos funcionam de maneira parecida, porém mais direta. Quando eu peço algo a você, o que estou comunicando é que eu gostaria que você fizesse esse algo, mas por si só, um pedido não é uma ordem ou comando. Caso eu te peça para trazer algo do mercado e você acabe por se esquecer, é natural que eu fique chateado, mas isso é bastante diferente do tipo de reação envolvida no descumprimento de uma ordem[5].

É na discussão sobre como funcionam ordens que Raz conecta seu trabalho sobre razão prática com seu trabalho sobre autoridade. Quando recebemos uma ordem de alguma autoridade, nós não a tratamos em nossa deliberação da mesma forma que tratamos pedidos. Respostas usuais a pedidos, como “Vou pensar sobre isso” ou “Vou ver o que posso fazer” ficam fora de contexto quando enunciadas em relação a ordens. Basta pensar na reação de um policial ouvindo “Vou pensar sobre isso” a sua ordem para que você encoste o carro. Raz quer chamar a atenção para o fato de ordens terem uma estrutura diferente.

Como assim? Segundo Raz, nem todas as razões que temos funcionam da mesma maneira. Muitas de nossas razões são de “primeira ordem”, ou seja, são razões que nós mobilizamos mais ou menos diretamente em nossas deliberações. Por exemplo, a fome que sinto enquanto escrevo este texto é uma razão para pedir um hamburguer (ou seja, uma razão para ação). Ao mesmo tempo, o fato de ter ganho peso recentemente é uma razão para não pedir um hamburguer (outra razão para ação). Essas razões conflitam de maneira clara. Outras razões, como por exemplo, a ordem de meu chefe para que eu escreva um relatório, funcionam de maneira distinta. Presumivelmente, eu deveria escrever o relatório porque fui comandado de tal forma.

Uma ordem ou comando de autoridade consiste naquilo que Raz chamou de “razão protegida”: além de apontar para um curso de ação, uma razão protegida também demanda que eu não aja de acordo com o que quer que seja que eu ache melhor, mas sim de acordo com a ordem. Nos termos técnicos de Raz, uma razão protegida é composta por uma razão de primeira ordem (para fazer ou não fazer algo) com uma razão de segunda ordem, cuja aplicação não é diretamente sobre nossas ações, mas sim sobre outras razões. No caso, uma razão de segunda ordem que exclui o apelo a outras razões na hora de decidir o que fazer (uma “razão excludente”). Trata-se de uma tese bastante controversa[6], mas note como ela nos ajuda a entender a gramática da autoridade. Quando um soldado obedece uma ordem, ele justifica sua conduta ao se reportar à ordem, e não ao seu próprio balanço de razões. Inclusive, um soldado que trata as ordens que recebe como apenas considerações adicionais sobre o que ele deveria fazer seria considerado um mau soldado (é importante mencionar que Raz introduz uma série de limitações à teoria, como o escopo que uma diretiva dotada de autoridade tem, mas não tenho condições de discuti-las aqui).

Tudo que Raz fez até este ponto no argumento foi mostrar a gramática da autoridade, como a autoridade funciona. Até agora, nada foi dito sobre quando ela é justificada. A justificação da autoridade é a segunda etapa no argumento. Raz elabora uma sofisticada teoria para a justificação da autoridade, a “tese da justificação normal”, discutida extensivamente em The Morality of Freedom, provavelmente seu livro mais importante. Em minha interpretação, a tese da justificação normal é um argumento sobre as condições de legitimidade de uma autoridade, sobre quando ela tem o direito de emitir diretivas dotadas de autoridade como explicamos anteriormente. Segundo Raz:

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“[…] a maneira normal de se estabelecer que uma pessoa tem autoridade sobre outra envolve demonstrar que o sujeito [à autoridade] mais provavelmente irá seguir as razões que se aplicam a ele (razões outras além das diretivas que aspiram ser dotadas de autoridade) se ele aceitar as diretivas da aspirante à autoridade como vinculantes e tentar segui-las, em vez de tentar seguir as razões que se aplicam a ele diretamente.”[7]

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A formulação é bastante abstrata, mas pode ser compreendida em termos mais simples. Todos nós temos uma infinidade de razões atuando em nossas vidas. O exercício de autoridade é justificado se e somente se nos auxilia a agir de acordo com as razões que temos. Eis uma ilustração do que Raz tem em mente. Todos nós temos razões para dirigirmos de maneira segura. Segurança no trânsito, no entanto, não é o tipo de coisa que conseguimos obter sem que existam diretivas dotadas de autoridade. Na medida em que queremos segurança no trânsito e as diretivas da autoridade nos auxiliam a ter essa segurança, essa autoridade é justificada. Nesse cenário simplificado, aquiescer com as diretivas da autoridade é uma forma de agir de acordo com as razões que eu tenho. Outros exemplos são fáceis de pensar. Eu tenho um quadro de rinite alérgica que me causa bastante incômodo e que gostaria de ver controlado. Aquiescer com as diretivas de um médico competente vai me ajudar a servir as razões que eu já tinha. O médico é, portanto, uma autoridade legítima, ainda que limitada a um aspecto muito específico da minha vida (minha saúde respiratória).

O potencial revolucionário da teoria raziana é fácil de ignorar. Ao cabo, uma autoridade só se justifica se for capaz de nos ajudar a agir de acordo com as razões que temos. É um ponto bastante controverso saber que razões (realmente) temos, mas perceba que a tese de Raz significa que nenhuma autoridade tradicional ou já estabelecida faticamente (“de facto”) é legítima se não desempenhar esse papel. É óbvio que em muitas (talvez na maioria) situações vamos acabar obedecendo a autoridades ilegítimas por questões prudenciais, de comodidade e assim por diante, mas disso não se segue que elas são justificadas. De fato, Raz explicitamente nega que exista, por exemplo, um dever geral de obediência ao direito.

De volta ao conflito entre autonomia e autoridade. O que Raz fez? A análise mais nuançada de razões que ele apresentou (com razões de primeira e segunda ordem, razões protegidas, razões excludentes, etc) nos permitiu entender melhor a gramática da autoridade, ou seja, como ela funciona em nossas vidas. A análise das condições de legitimidade da autoridade (a partir da tese da justificação normal) nos permitiu entender quando a autoridade tem direito de emitir diretivas que funcionem da maneira que descrevemos. Essas construções teóricas, por sua vez, permitem que o conflito entre autonomia e autoridade seja compreendido de uma maneira muito mais sútil. Não é que não aconteça nunca de autoridades de facto conflitarem com as demandas de autonomia do indivíduo. No entanto, nos casos nos quais a autoridade é legítima, o conflito não ocorre precisamente porque a autoridade legítima auxilia o indivíduo a seguir as razões que ele tinha. Nesse sentido, autoridades legítimas servem à autonomia do indivíduo.

O legado de Raz para nossa compreensão do fenômeno da autoridade é complexo: de um lado, Raz nos ajuda a superar as dicotomias simplistas entre autonomia e autoridade a partir de uma melhor compreensão de como funcionam as diretivas dotadas de autoridade. De outro, sua teoria nos lega recursos para uma espécie de anarquismo político muito mais rico filosoficamente, afinal, a legitimidade de uma autoridade vai depender de seu relacionamento com as razões que permeiam nossas vidas. Essa autoridade nos auxilia a seguir as razões que temos, ou agimos melhor se a desconsiderarmos? Quando e como devemos obedecer a autoridades não é algo que as próprias autoridades possam decidir. Ironicamente, a melhor teoria disponível sobre o que é e como se justifica a autoridade acaba por concluir que a autoridade nunca tem a palavra final.

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Joseph Raz (Steve Pyke/Getty Images)

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Notas:

[1] O presente texto baseia-se em parte no segundo capítulo de minha dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na Universidade de São Paulo: Em meio a Tempestade: Valoração e Descrição na Teoria do Direito, financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP, proc. Nº 2016/06243-0.

[2] WOLFF, Robert Paul. In Defense of Anarchism. Berkeley: University of Cali­fornia Press, 1998. Eu discuto o desafio de Wolff (e uma potencial resposta a partir de outro pensador, Peter Winch), em “A ideia de autoridade no pensamento de Peter Winch”, publicado na revista Direito, Estado e Sociedade, 2021.

[3] WOLFF, Robert Paul. In Defense of Anarchism. Berkeley: University of Cali­fornia Press, 1998, pp. 18.

[4] RAZ, Joseph. Legitimate Authority. In The authority of law: essays on law and morality. Oxford: Clarendon Press, 1979.

[5] Em termos técnicos, dizemos que um conselho adiciona uma “razão para acreditar” e que um pedido adiciona uma “razão para ação”.

[6] Ver, por exemplo, os seguintes trabalhos críticos ao argumento de Raz: MIAM, Emran. The Curious Case of Exclusionary Reasons. Canadian Journal of Law and Jurisprudence 15, 99-124, 2002; HURD, Heidi. Challenging Authority. Yale Law Journal, Vol. 100: 1611-1677, 1991; Gur, Noam. Legal Directives in the Realm of Practical Reason: A Challenge to the Pre-emption Thesis. The American Journal of Jurisprudence, Vol. 52: 159-228, 2007.

[7] RAZ, Joseph. The Morality of Freedom. Oxford: Clarendon Press, 1986, pp. 53.

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