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Por uma heterobiografia mentirosa de si
Maurice Blanchot e O Instante de Minha Morte.
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por Natália Leon
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A fórmula para escrever uma autobiografia parece bem simples: é preciso que exista um eu, que esse eu saiba escrever e que consiga passar para o papel eventos da própria vida. Basta ter memória, ser alfabetizado e dispor de instrumentos usados para fazer um texto escrito para que a escrita de si seja realizada. Esses três pressupostos formam o tripé do gênero literário utilizado por figuras como Santo Agostinho, Jean-Jacques Rousseau, Michelle Obama, Nelson Mandela, Rita Lee etc. É com eles que começa o relato escrito sobre eventos do passado, frequentemente dispostos em ordem cronológica. Há alguém que viveu, que se lembra do que viveu e que pode falar daquilo com a autoridade de quem usa a primeira pessoa do singular. O autor da autobiografia tem o privilégio de ser dono da voz, do corpo, do passado. Fala do que conhece profundamente porque vivenciou tudo aquilo de forma encarnada, foi protagonista das cenas narradas, tem o privilégio do — assim chamado — lugar de fala. Toda autobiografia é o uso legítimo do seu suposto lugar de fala: sobre mim posso falar com embasamento. Toda autobiografia é, por isso, literatura de testemunho, não porque a vida do autor seja necessariamente parte de alguma grande guerra ou revolução, mas porque toda vida é sequência de acontecimentos, e o escritor que conta sua vida traz esse testemunho singular de quem viveu a história na pele, sem distanciamento, sem recuo, o que pode dar à autobiografia o lugar especial de relato verdadeiro do real. Mas o que aconteceria se parte do tripé que sustenta esse relato fosse derrubado? Como funciona um relato de si quando as ideias do eu e do texto que é capaz registrar a realidade são abaladas? É possível falar de si sem elas? Maurice Blanchot, filósofo e escritor, trabalhou essas questões em alguns de seus livros, e parece escancará-las em Instante de Minha Morte, romance do autor lido como autobiográfico.
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“Eu me lembro de um homem jovem…”[1], é assim que começa o livro, relato conciso do episódio de 1944 em que Blanchot quase foi fuzilado por um oficial nazista em Quain, sua cidade natal. O jovem homem é aquele que será quase fuzilado, aquele que suspeitamos ser Maurice Blanchot, mas que aparece como terceira pessoa. O curto relato da quase morte não se fixa em uma pessoa determinada. Fala do jovem como um outro, muda para a primeira pessoa do singular e chega até mesmo a apresentar, na mesma frase, dois pronomes pessoais diferentes: “Eu estou vivo. Não, você está morto”.[2] Quem fala no livro? O homem de 1996, que vê a si mesmo como um outro: o jovem, aquele que passou pela segunda guerra. Eles não são o mesmo. A voz do livro é fragmentada, e a fragmentação não obedece apenas às divisões temporais. Se o eu do presente vê o eu do passado como um outro, também o eu do presente pode se dividir, ser habitado por duas vozes que se opõem: o eu e o você na mesma linha do livro, um vivo e um morto. O texto parece apontar para a escrita de alguém que, como muitos de sua época, tratou da assim conhecida morte do sujeito. O sujeito auto idêntico é uma ficção. Sua experiência aproxima-se muito mais da fragmentação do que da unidade.
A crítica ao sujeito auto-idêntico feita por Blanchot começa bem antes de O Instante de Minha Morte. Em Conversa Infinita, obra publicada em 1969, Blanchot apresenta suas críticas à dialética hegeliana. Tributário da obra de Hegel, o filósofo não pode aceitar, todavia, muitas noções que o autor de Fenomenologia do Espírito apresenta. Se a dialética hegeliana tem o mérito gigantesco de compreender as contradições próprias da realidade, ela peca, para Blanchot, em ainda utilizar noções como a superação, a identidade, a continuidade, o mesmo. As tensões, os conflitos, as oposições interessam a Blanchot. No entanto, a ideia de um ser que permanece o mesmo e das contradições que são superadas são recusadas pelo filósofo francês. Ao pensar que seu pensamento teria consubstancialidade com a realidade, e ao formular que há um ser que se enriquece e supera suas contradições, Hegel desconsidera, como afirma Blanchot, que talvez a realidade seja a falta, e não o ser. No pensamento totalizante de Hegel, ficaria de fora justamente a experiência da existência mais ligada à fissura e à erosão. A dialética proposta pelo autor alemão se apresenta para Blanchot, por isso, como uma ficção cujas pretensões nada modestas são dar conta de tudo o que há. Mas se o que há é a falta, e não o ser, então o texto hegeliano deixa escapar uma dimensão fundamental da existência. Como falar do vazio, daquilo que falta, do que é fragmentado e descontínuo e não pode ser capturado por um discurso sistemático e totalizante? A aposta que Blanchot faz em Conversa Infinita é a escrita fragmentária: escrita que não amarra diversas partes em um todo, na qual as interrupções e intervalos deixam de ser meras pausas para, curiosamente, falarem. O chamado pensamento da interrupção de Blanchot é ligado às tentativas do autor de construir um texto em que a interrupção deixe de ser fundo para ser figura, como se o silêncio fosse capaz de falar e produzir um efeito que o texto não fragmentário não produziria. Livros como Le pas au délà e L´écriture du Désastre são expressão dessa nova forma literária. Neles, cada parágrafo é um fragmento, um texto que não amarra nem responde às questões do parágrafo anterior. Ao leitor que busca uma grande tese, um livro sistemático, a solução para problema apresentados pelo autor, essas obras produzem estranhamento, certamente ligado à tentativa blanchotiana de se filiar aos filósofos cujas reflexões são mais ligadas às perguntas do que às respostas.
O Instante de minha morte não pode ser classificado como livro de escrita fragmentária, mas certamente carrega as reflexões anteriores de Blanchot. Não há propriamente descontinuidade entre um parágrafo e outro. O que encontramos é uma história com começo, meio e fim: aquele que escreve situa o leitor no espaço e no tempo, narra o quase fuzilamento, a conversa com os soldados do exército alemão que se revelam russos etc. No entanto, a constante troca dos pronomes pessoais não permite que o romance seja lido como relato de um eu que permaneceu o mesmo durante toda sua trajetória. Há uma voz que hesita, oscila, e não dá ao leitor a certeza sobre si mesma. Um ano depois da publicação de Blanchot, Jacques Derrida comentou O Instante de Minha Morte em conferência publicada hoje sob o título Demorar.[3] A fala de Derrida toma o livro de Blanchot como exemplo para falar da indecidibilidade entre testemunho e ficção. Blanchot publicou um testemunho ou uma história inventada? Longe de nos dar a régua para separar essas duas categorias, Derrida consegue embaralhá-las, mostrando que todo testemunho também é ficção e que narrar o passado é sempre inventar. Por quê? Porque todo testemunho é discurso autobiográfico de um sobrevivente. Se conto o que vivi no passado, é porque sobrevivi àquele acontecimento, e se sou testemunha, falo em primeira pessoa de algo que vivi, e por isso o que digo tem caráter autobiográfico. Mas o que acontece quando decido falar do que vivi? Aquilo que ainda não era texto — falado ou escrito — se transforma em texto e é nessa passagem que uma ficção é produzida. Podemos aproximar as palavras da conferência de Derrida às reflexões que Blanchot faz desde os anos 30: escrever é mais ligado à destruição do que à descrição do que é narrado. A escrita afasta, aniquila, dá a ausência do que tentamos fazer presente. Todo testemunho é, de certa forma, falso, mesmo quando se pretende verdadeiro. O que Blanchot e Derrida promovem com essas reflexões não é o silenciamento de vítimas que dão o testemunho do que viveram, tampouco a interdição das autobiografias. Quem vai ao tribunal é uma concepção ainda bastante comum de escrita autobiográfica. Colocados sob suspeita, o eu que é sempre o mesmo e a escrita capaz de ser fiel à realidade podem ser vistos não como aliados da verdade, reveladores do real, mas ficções que sustentam supostas não ficções.
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O que nos diz então Blanchot em O Instante de Minha Morte? É possível ainda classificarmos essa obra como autobiográfica? É possível, afinal, o gênero autobiográfico? Como narrar a própria vida quando o que sustenta esse tipo de narrativa foi estremecido? Blanchot não apresenta ao leitor nenhum tipo solução final aos impasses da escrita autobiográfica. É possível, todavia, arriscarmos algumas reflexões sobre as autobiografias na obra produzida no fim da vida do autor. Se há um sujeito fragmentado apresentado pela escrita, esse processo capaz de produzir estilhaços daquilo que em princípio deveria ser narrado, toda autobiografia é, no fundo, uma heterobiografia mentirosa de si. Mas a voz do texto autobiográfico não funciona como aquela que narra em terceira pessoa a vida de um outro. Há vários outros, e a voz que fala deles às vezes narra imiscuindo-se às personagens que apresenta. Uma vez que a experiência de narrar a si mesmo produz sempre uma ficção, matando aquilo que fora vivido pela testemunha, o instante da morte não é só título possível para relato de quase fuzilamento: toda autobiografia é senão vários, ao menos um instante da morte daquele que fracassa ao tentar falar de si. A história concisa, que entrega pouco ao leitor, também parece produzir o efeito que toda autobiografia, no fundo, tem, ainda que o público se engane quanto a isso: não revelar quase nada da vida do autor. Diante do fracasso dado de partida na tentativa da escrita autobiográfica mais tradicional, a opção feita por Blanchot parece apontar não para o fim de qualquer relato autobiográfico, mas para a ficção que tenta se aproximar do real sem deixar de se assumir como ficção. Se O Instante da Minha Morte diz muito pouco sobre a vida privada de Blanchot, talvez ele nos entregue o segredo de toda autobiografia, que pode ser expresso em caso tão conhecido da lógica: o paradoxo do mentiroso. Quando alguém afirma “eu estou mentindo”, essa frase é uma verdade ou mentira? A autobiografia proposta por Blanchot parece sustentar esse paradoxo. O grande segredo da autobiografia é descoberto: toda autobiografia mente. Mas no momento em que ele é revelado, podemos dizer que lemos uma ficção mentirosa? Não seria a ficção que se assume como ficção o mais verdadeiro dos relatos da realidade? E os relatos extensos, edificantes, coerentes, daqueles que contam o passado com a autoridade de quem viveu tudo em primeira pessoa? Não seriam eles, finalmente, as maiores mentiras de todos os tempos?
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Notas:
[1] Blanchot, Maurice. L’instant de ma Mort. Paris : Gallimard, 2012, p. 9.
[2] Idem, p. 15.
[3] Demorar: Maurice Blanchot/ Jacques Derrida; tradução : Flávia Trocoli e Cala Rodrigues. – FlorianópolIs: Edtora UFSC, 2015.
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