“Busca da Verdade” de Nicolas Malebranche

O Estado da Arte publica o excerto de "Busca da Verdade", obra do filósofo Pe. Nicolas Malebranche (1638-1715)

por Bruna Frascolla

O Pe. Nicolas Malebranche (1638-1715) foi um filósofo de profunda influência sobre o Iluminismo, seja com ideias próprias, seja com divulgação de álgebra. Entusiasta de Descartes e Agostinho, interessado tanto em teologia, matemática, física e política, produziu, entre luz e trevas, uma filosofia verdadeiramente barroca: o mesmo físico que conduzia experimentos óticos era o místico que negava a existência de causas naturais, pois acreditava que todo acontecimento (até mesmo o aparecimento das ideias ao nosso espírito!) era causado por Deus. Neste excerto, o leitor poderá ver esse uso da experiência contra a experiência, com Malebranche mostrando que a visão não serve para o conhecimento.

Busca da Verdade
livro I, capítulo VI, seção 1.

Capítulo vi

  1. Erros da visão acerca da extensão em si. II. Sequência destes erros sobre os objetos invisíveis. III. Erros dos nossos olhos concernentes à extensão considerada por relação.

A visão é o primeiro, o mais nobre, e o mais extenso de todos os sentidos, de modo que, se eles nos tivessem sido dados para conhecer a verdade, ela teria sozinha mais parte nisto do que todos os outros juntos. Assim, bastará arruinar a autoridade que os olhos têm sobre a razão para nos desenganar e levar a uma desconfiança geral de todos os nossos sentidos.

Faremos saber, então, que não devemos nos apoiar sobre o testemunho de nossa visão para julgar acerca da verdade das cousas em si mesmas, mas unicamente para descobrir a relação que têm com a conservação do nosso corpo; que nossos olhos nos enganam geralmente em tudo aquilo que nos representam (na grandeza dos corpos, em suas figuras e em seus movimentos, na luz e nas cores, que são as únicas cousas que vemos); que todas essas cousas não são tal como nos parecem, que todo o mundo se engana quanto a isto, e que isto nos lança ainda em outros erros cujo número é infinito. Comecemos então pela extensão, e eis as provas que nos fazem crer que nossos olhos não no-la fazem ver tal como é:

I. Erros da visão acerca da extensão em si

Veem-se com bastante frequência pelas lunetas animais bem menores que um grão de areia, que é quase invisível: foram vistos até mesmo animais mil vezes menores[1]. Tais átomos vivos caminham do mesmo jeito que os outros animais. Têm, portanto, pernas e pés, ossos nessas pernas para sustentá-las (ou antes sobre essas pernas, pois o osso dos insetos é a pele). Têm músculos para mexê-las, tendões e uma infinidade de fibras em cada músculo; e, ao cabo, sangue ou espíritos animais extremamente sutis e delicados para preencherem ou fazerem mover sucessivamente esses músculos. Não é possível, sem isto, conceber que vivam, que se alimentem e que transportem seu pequeno corpo por diferentes lugares, segundo diferentes impressões dos objetos; ou, antes, não é possível nem mesmo àqueles que empregaram toda a vida na anatomia e na investigação da natureza, representar o número, a diversidade e a delicadeza de todas as partes de que esses pequenos corpos são necessariamente compostos para viver e executar todas as cousas que os vemos fazer.

A imaginação perde-se e perplexa-se à visão de tão estranha pequenez: não pode alcançar nem agarrar-se às partes, que estão fora de sua alçada; e, embora a razão convença-nos disto que acabamos de dizer, os sentidos e a imaginação se lhe opõem e obrigam-nos amiúde a duvidar.

Nossa visão é limitadíssima, mas não deve limitar seu objeto. A ideia que nos dá da extensão tem limites bem estreitos, mas disso não se segue que a extensão os tenha. Esta é, sem dúvida, infinita em certo sentido; e essa pequena matéria que se oculta aos nossos olhos é capaz de conter um mundo onde se encontrariam tantas cousas (posto que proporcionalmente menores) quanto neste grande mundo onde vivemos.

Os pequenos animais dos quais acabamos de falar talvez tenham outros pequenos animais que os devorem, e que lhes sejam imperceptíveis por causa de sua pequenez assombrosa, assim como esses outros nos são imperceptíveis. O que um ácaro é para nós, tais animais são para um ácaro; e talvez haja na natureza ainda menores, e menores ainda até o infinito, nessa proporção tão estranha entre homem e ácaro.

Temos demonstrações evidentes e matemáticas da divisibilidade da matéria ao infinito, e isto basta para nos fazer crer que podem existir animais menores e menores até o infinito, posto que nossa imaginação se apavore com esse pensamento. Deus não fez a matéria senão para nela formar obras admiráveis; e, como estamos certos de não haver partes cuja pequenez seja capaz de limitar a potência divina na formação desses pequenos animais, por que a limitaríamos, diminuindo assim, sem razão, a ideia que temos do artífice infinito, a medir-lhe a potência e o alcance segundo a nossa imaginação, que é finita?

A experiência já nos desenganou em parte, fazendo-nos ver animais mil vezes menores que um ácaro. Por que pretenderíamos que eles fossem os últimos e os menores de todos? Quanto a mim, não vejo por que imaginar isto. É, ao contrário, bem mais verossímil crer que haja muitos menores do que os que foram descobertos, pois os pequenos animais não escapam  aos microscópios tanto quanto os microscópios escapam aos pequenos animais.

Quando examinamos no meio do inverno o germe do bulbo de uma tulipa com uma simples lupa ou um vidro convexo, ou mesmo só com os olhos, descobrimos bem facilmente nesse germe as folhas que devem se tornar verdes, as que devem compor a flor ou a tulipa, a pequena parte triangular que encerra a semente, e as seis pequenas colunas que a rodeiam ao fundo da tulipa. Assim, não podemos duvidar de que o germe de um bulbo de tulipa encerre uma tulipa inteira.

É razoável crer no mesmo acerca do germe de um grão de mostarda, de uma semente de maçã, e geralmente de todas as sortes de árvores e plantas, ainda que isto não se possa ver com os olhos, nem mesmo com o microscópio; e pode-se dizer com certa segurança que todas as árvores existem pequenas no germe de sua semente.

Sequer parece irrazoável pensar que haja infinitas árvores num único germe, porquanto este contém não só a árvore de que é semente, mas também um grandíssimo número doutras sementes que possam todas encerrar em si mesmas novas árvores, as quais conservarão talvez ainda, numa pequenez incompreensível, outras árvores e outras sementes tão fecundas quanto as primeiras, e assim até o infinito. De modo que, segundo este pensamento (que só pode parecer impertinente e bizarro àqueles que meçam as maravilhas do poder infinito de Deus com as ideias de seus sentidos e imaginação), poderíamos dizer que numa única semente de maçã haveria macieiras, maçãs e sementes de macieiras para séculos infinitos ou quase infinitos, na proporção de uma macieira perfeita para uma macieira na semente; que a natureza nada faz senão desenvolver tais pequenas árvores dando-lhes um crescimento sensível àquela que estiver fora da semente, e crescimentos insensíveis, mas bem reais e proporcionais à sua grandeza, àquelas que concebemos estarem nas sementes. Pois não podemos duvidar que possa haver corpos pequenos o bastante para se insinuarem entre as fibras dessas árvores que concebemos nas suas sementes e servir-lhes de nutrição.

O que acabamos de dizer das plantas e de seus germes podemos pensar também dos animais e do gérmen por que são produzidos. Vemos no gérmen do bulbo da tulipa uma tulipa inteira. Vemos também no gérmen do ovo choco que não tenha sido chocado um pinto que está, talvez, inteiramente formado[2]. Vemos rãs nos ovos das rãs[3], e veremos ainda outros animais em seus gérmens quando tivermos bastantes alcance e experiência para os descobrir. Mas não é preciso que o espírito se detenha nos olhos, pois a visão do espírito tem extensão bem maior que a visão do corpo. Devemos então pensar que, além disso, todos os corpos dos homens e dos animais que nascerão até a consumação dos séculos talvez já tenham sido produzidos desde a criação do mundo; isto é, que as fêmeas dos primeiros animais talvez já tenham sido criadas com todos os da mesma espécie que engendraram e que deveriam engendrar-se na sequência dos tempos.

Poderíamos ainda levar adiante este pensamento, e talvez com muita razão e verdade; mas receamos com o assunto querer penetrar demais nas obras de Deus. Nada vemos senão infinidades por toda parte, e não só os nossos sentidos e nossa imaginação são limitados demais para compreendê-las, como até o espírito, todo puro e todo liberto da matéria, é grosseiro e fraco demais para penetrar a menor das obras de Deus. Ele se perde, dissipa, ofusca, se apavora perante aquilo que chamamos de “átomo” segundo a linguagem dos sentidos. Mas o espírito puro tem sobre os sentidos e a imaginação a vantagem de reconhecer sua própria fraqueza e a grandeza de Deus, e de perceber o infinito em que se perde, ao passo que nossa imaginação e nossos sentidos rebaixam as obras de Deus e nos dão uma vil confiança que nos precipita cegamente no erro. Pois os olhos não nos fazem ter ideias de todas essas cousas que descobrimos com os microscópios e pela razão. Nada percebemos com nossa visão que seja menor que um ácaro ou uma traça. A metade de um ácaro não é nada, se acreditarmos na relação que a visão nos faz. Para ela, uma traça é só um ponto matemático; não se pode dividi-la sem aniquilá-la. Nossa visão não nos representa, então, a extensão segundo o que é em si mesma, mas somente segundo o que é em relação ao nosso corpo; e, porque a metade de uma traça não tem relação considerável com o nosso corpo, nem pode conservá-lo ou destruí-lo, nossa visão no-la esconde inteiramente.

Porém, tivéssemos os olhos feitos como que de microscópios, ou, antes, fôssemos tão pequenos quanto os ácaros e as traças, haveríamos de julgar de maneira absolutamente diversa a grandeza dos corpos. Pois, sem dúvida, esses pequenos animais têm os olhos dispostos para ver o que os cerca, e ver seu próprio corpo bem maior (ou composto por um número maior de partes) do que o vemos, porquanto doutra forma não poderiam receber as impressões necessárias à conservação da vida e, então, os olhos que têm haveriam de ser-lhes inteiramente inúteis.

Mas, para melhor persuadir acerca de tudo isto, devemos considerar que nossos próprios olhos, na verdade, nada são senão lunetas naturais, que seus humores fazem o mesmo efeito que os vidros nas lunetas, e que segundo a situação que elas têm entre si, e segundo a figura do cristalino e sua distância da retina[4], vemos os objetos diferentemente. De modo que não podemos assegurar que haja no mundo dous homens que os vejam precisamente do mesmo tamanho, ou compostos de partes assemelhadas, porquanto não podemos assegurar que seus olhos sejam de todo semelhantes.

[Dizemos que t]odos os homens veem os objetos do mesmo tamanho no sentido de que os veem compreendidos nos mesmos limites ou por ângulos iguais, pois verão as extremidades dos objetos como linhas retas e que compõem um ângulo visual sensivelmente igual, se tais forem vistos de igual distância. Mas não é certo que a ideia sensível que os homens têm do tamanho de um mesmo objeto seja igual entre eles, pois não são iguais os meios que têm para julgar a distância, da qual depende a ideia de tamanho. Demais, aqueles cujas fibras do nervo ótico são menores e mais delicadas podem notar num objeto muito mais partes do que  aqueles cujo nervo é de tecido mais grosseiro.

Não há nada tão fácil como demonstrar geometricamente todas essas cousas[5]; e, se elas não fossem assaz conhecidas, deter-nos-íamos em prová-las. Mas, como várias pessoas já trataram deste assunto, rogamos àqueles que se queiram instruir a respeito que as consultem.

Como não é certo que haja no mundo dous homens que vejam os objetos do mesmo tamanho, e às vezes um único homem os vê maiores com o olho esquerdo do que com o direito[6], segundo observações que foram feitas e relatadas no Jornal dos sábios de Roma, do mês de janeiro de 1669, é claramente mister nos não fiarmos nos relatos de nossos olhos para julgá-lo. Mais vale escutar a razão, que nos prova que não saberíamos determinar o tamanho absoluto dos corpos que nos cercam, nem qual ideia devemos ter da extensão de um pé ao quadrado, nem da do nosso próprio corpo, para que essa ideia o represente tal como é. Pois a razão nos ensina que o menor de todos os corpos não seria pequeno se ele fosse o único, porquanto seria composto por um número infinito de partes; partes estas, a partir de cada uma das quais, Deus pode formar uma terra, que nada seria além de um ponto, para as outras partes que estiverem agregadas. Assim, o espírito do homem não é capaz de formar uma ideia assaz grande para compreender e abraçar a mais diminuta extensão que exista no mundo, pois é limitado, e tal ideia deve ser infinita.

É verdade que o espírito pode conhecer aproximadamente as relações que se encontram entre esses infinitos de que o mundo é composto: que um, por exemplo, é o dobro do outro, e que uma vara contenha seis pés. Não obstante, não pode formar uma ideia que represente o que as cousas são em si mesmas.

Quero todavia supor que o espírito seja capaz de ideias que igualem ou meçam a extensão dos corpos que vemos, pois é dificílimo persuadir os homens do contrário. Examinemos então aquilo que se pode concluir com esta suposição: concluir-se-á daí que Deus jamais nos engana, que não nos deu olhos semelhantes a lunetas que aumentem ou diminuam os objetos e que, assim, devemos crer que nossos olhos representam as cousas tal como são.

É verdade que Deus jamais engana, mas nós amiúde nos enganamos a nós mesmos, julgando as cousas com muita precipitação. Pois amiúde julgamos que os objetos cujas ideias temos existem, e até mesmo que são de todo assemelhados a tais ideias: e amiúde acontece de tais objetos não serem semelhantes a nossas ideias, e até que tampouco existam.

De termos a ideia de uma cousa não se segue que ela exista, e menos ainda que ela seja inteiramente semelhante à ideia que temos dela. De Deus nos fazer ter certa ideia sensível do tamanho quando uma vara está diante de nossos olhos não se segue que esta vara tenha a extensão que nos é representada por tal ideia. Pois, em primeiro lugar, nem todos os homens têm precisamente a mesma ideia sensível dessa vara, já que nem todos têm os olhos dispostos da mesma maneira. Em segundo, uma mesma pessoa às vezes não tem a mesma ideia sensível duma vara ao vê-la com o olho direito e em seguida com o esquerdo, como já disséramos. Ao cabo, amiúde acontece de a mesma pessoa ter ideias de todo diferentes do mesmo objeto em tempos diferentes, segundo as quais os crê mais ou menos distanciados, como explicaremos alhures[7].

É portanto um preconceito que não se apoia sobre razão alguma crer que vemos os corpos tal como são em si mesmos. Pois, nossos olhos não nos tendo sido dados senão para a conservação do corpo, cumprem muito bem seu dever fazendo-nos ter ideias dos objetos que sejam proporcionadas àquela que temos do tamanho de nosso corpo, ainda que haja nesses objetos uma infinidade de partes que eles não nos revelem.

Mas, para melhor compreender o que devemos julgar acerca da extensão dos corpos sobre a relação com os nossos olhos, imaginemos que Deus tenha feito em miniatura, e com uma porção de matéria da espessura duma bola de golfe, um céu e uma terra e homens sobre essa terra, com as mesmas proporções que se observam neste grande mundo. Estes pequenos homens ver-se-iam uns aos outros, e às partes de seus corpos, e até aos pequenos animais que seriam capazes de os incomodar, pois doutra forma seus olhos ser-lhe-iam inúteis à conservação. É, então, manifesto nessa suposição que tais pequenos homens teriam ideias do tamanho de seus próprios corpos bem diferentes das que nós temos, porquanto eles olhariam seu pequeno mundo, que nada seria além de uma bolinha aos nossos olhos, como espaços infinitos, mais ou menos como julgamos acerca do mundo no qual estamos.

Ou, se acharmos mais fácil de conceber, pensemos que Deus tenha feito uma terra infinitamente mais vasta do que a que habitamos, de modo que essa nova terra esteja para a nossa como a nossa está para aquela da qual acabamos de falar na suposição precedente. Pensemos além disso que Deus tenha mantido em todas as partes que comporiam esse novo mundo a mesma proporção que a que há entre as que compõem o nosso. É claro que os homens deste último mundo seriam maiores, e é claro que não há espaço entre nossa terra e as estrelas mais distantes que nós vejamos: sendo assim, é visível que, se eles tivessem as mesmas ideias da extensão do corpo que nós, não poderiam distinguir algumas das partes de seus próprios corpos e veriam outras duma espessura enorme. De modo que é ridículo pensar que veriam as cousas do mesmo tamanho que nós as vemos.

É manifesto, nas suposições que acabamos de fazer, que os homens do mundo grande ou pequeno teriam ideias dos tamanhos dos corpos bem diferentes das nossas, supondo que seus olhos os fizessem ter ideias dos objetos que estivessem em torno deles proporcionados ao tamanho de seu próprio corpo. Ora, se tais homens assegurassem firmemente, pelo testemunho de seus olhos, que os corpos sejam tal como os veem, é visível que se enganariam: ninguém pode duvidar disto. Entretanto, é certo que tais homens teriam tanta razão quanto nós de defender sua opinião. Aprendamos então com seu exemplo que estamos incertíssimos quanto ao verdadeiro tamanho dos corpos que vemos, e que tudo o que podemos saber por nossa visão é só a relação que há entre eles e o nosso – relação nada exata. Numa palavra: aprendamos que nossos olhos não nos foram dados para julgar a verdade das cousas, mas somente para nos fazer conhecer aquelas que poderiam nos incomodar ou ser-nos úteis nalguma cousa.

Notas

[1] Journal des savants de 12 de novembro de 1668.
[2] O gérmen do ovo fica sob uma pequena mancha que fica sobre o amarelo. Vede o livro De formatione pulli in ovo, de M. Malpighi.
[3] Vede o Miraculum naturae, de M. Swammerdam.
[4] É o nervo ótico.
[5] 
Vede a Dióptrica do Sr. Descartes.
[6] Um dos meus amigos vê sempre o caractere dum livro maior com o olho direito do que com o esquerdo.
[7] [Falar de Sexto Empírico]

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