Cabala e livre pensar em Pico della Mirandola

O filósofo e humanista italiano queria compartilhar a satisfação de suas descobertas, mostrar aos padres que era possível encontrar, dentro dos livros hebraicos, a confirmação do próprio advento do cristianismo. 

“Quem é Cabala?”, pergunta o interrogador. “Um homem pérfido e diabólico, que escreveu contra Cristo”, responde uma voz na sala. A cena ocorre em 1487, durante o inquérito de Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), e será relatada por Johannes Reuchlin, poucas décadas mais tarde, em seu tratado De Arte Cabalistica. O filósofo estava sendo julgado em razão da publicação não autorizada de sua obra Novecentas Teses (Conclusiones Nongentae), que, entre outros temas incômodos à autoridade eclesiástica, trazia proposições relacionadas à tradição mística judaica — conhecida, em parte, como qabbalah. Diante do que ouvia, o interrogado, então com 23 anos e ainda não temperado pela reclusão vindoura, retrucaria que os padres — seus juízes — padeciam do mal da ignorância e que seria necessário dirigir-se a eles no idioma dos bárbaros, pois “balbuciantes apenas entendem outros balbuciantes”

Seria imprudente, no entanto, concluir que todos na Igreja ignorassem o que fosse a cabala. Alguns anos antes, o papa Sisto IV havia promovido a tradução de alguns textos de conteúdo cabalístico para o latim, com o objetivo de apresentá-los ao mundo cristão. Giovanni Pico narraria em seu De Hominis Dignitate, anos depois, como teria encontrado e adquirido tais livros, “com não pequeno dispêndio de dinheiro”, lendo-os “com suma diligência e incansável estudo”. De toda forma, eram poucos os cristãos que tinham ouvido falar daquelas doutrinas, mesmo no mundo ilustrado. E embora, para esses, quiçá se tratasse de uma bizarrice qualquer, a não ser levada a sério, o intento do papa é sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma no último quarto daquele século, mesmo que de modo bastante tímido — graças a uma conjunção de fatores que propiciaram a difusão de manuscritos hebraicos um tanto sigilosos. 

Cristofano dell’Altissimo, Retrato de Pico della Mirandola, c. 1552-1568.

A tolerância de Lorenzo

No século 15, a península itálica era um refúgio bastante seguro para os numerosos judeus banidos das extensões vizinhas, apesar de algumas regiões do território ainda praticarem ações segregacionistas, como a imposição de uso dos constrangedores círculos amarelos, costurados em mangas, mantos ou chapéus para distingui-los dos demais. Não era o caso da República de Florença. O mundo já conhecera centros nervosos que tinham motivado a convivência das três grandes religiões monoteístas — como a Bagdá do século 10 ou a Toledo do século 13. Agora era a vez da multicultural cidade toscana assistir a um novo estreitar de relações em moldes semelhantes, sobretudo entre intelectuais cristãos e hebreus. Muito por mérito de seu governante, Lorenzo de’ Medici — chamado “il Magnifico” não apenas em razão de seus dotes intelectuais, de sua sensibilidade musical e do “conhecimento das ciências divinas e proféticas” (Joseph Perles, Les savants juifs à Florence), mas também devido à sua tolerância. 

Patrono de personalidades como Michelangelo, além de mecenas do círculo platônico, Lorenzo teve uma especial benevolência com os judeus, dinamizando a tradução de textos hebraicos — sugeridos por rabinos que frequentavam Giovanni Pico — e abrindo novas possibilidades às trocas teológicas. Seguia os passos de seu avô, Cosimo de’ Medici, que havia promovido, pelas mãos de Marsilio Ficino, a tradução da vasta obra de Platão, mudando a direção dos estudos filosóficos nos três séculos seguintes. O mecenato bem encaminhado é capaz, de fato, de dar vida a grandes realizações. Três séculos antes de Cosimo, na rica Andaluzia muçulmana, o califa Abu Ya’qub Yusuf incumbira Averróis de traduzir e comentar Aristóteles, dando o impulso inicial para um longo período de estudos aristotélicos. E agora, graças a Lorenzo, doutrinas que antes eram guardadas a sete chaves, e transmitidas apenas para poucos escolhidos, começavam a ser divulgadas — impactando os estudos ocidentais sobre o judaísmo pelos próximos duzentos anos. 

Tal fato não se deveu somente ao acolhimento de Lorenzo e à receptividade dos humanistas renascentistas: o perigo de aniquilação da cultura judaica estava próximo. Pouco tempo antes, os judeus haviam sido expulsos dos territórios franceses e germânicos e muitos de seus livros sagrados tinham sido queimados; na península ibérica, a situação também se agravava. E eis que, naquele fugidio hiato de paz, algumas repúblicas e ducados italianos lhes davam refúgio. Mas até quando? Era chegado o momento, pois, de expor o coração de suas crenças, mesmo correndo o risco de entregá-lo a mentes despreparadas (inclusive, aos gentios), aproveitando-se da breve liberdade intelectual que lhes era concedida. Uma liberdade maior, deve ser dito, do que a permitida aos cristãos, sempre sob o constante olhar da Igreja. Como era o caso de Giovanni Pico, que se encontrava diretamente sob sua mira: ele, cristão praticante e bem relacionado nos meios letrados, estava difundindo material hebraico para os fiéis e “confundindo” suas crenças.

Giorgio Vasari, Lorenzo, il Magnifico riceve i tributi dagli ambasciatori, c. 1556-1558.

Problemas à vista 

O filósofo de Mirandola não estava disposto a colaborar com seus interrogadores. Os verbais das audiências eclesiásticas, descobertos no final do século 19 por Léon Dorez, revelam a impaciência do jovem diante dos juízes e a relutância em dar um passo atrás — o que irritava ainda mais os seus oponentes. Ele já havia extrapolado ao publicar aquelas novecentas Teses (“uma pretensão desmesurada”), nas quais tratava de temas espinhosos que haviam levado a comissão pontifícia a se colocar de sobreaviso: autores heréticos, questões de domínio exclusivo dos teólogos… e a tal cabala. A insistência obstinada em defender doutrinas e teologias não cristãs tornava a situação do réu quase insustentável. 

A resposta inicial do papa Inocêncio VIII (um tipo não muito benquisto, o que, segundo vozes, teria levado o beato padre Ficino a recorrer à feitiçaria numa vã tentativa de precipitar-lhe o fim) viria por meio da publicação de um Breve deixando claro que “algumas teses desviam do caminho da ortodoxia da fé, outras são obscuras, confusas e intrincadas, enquanto outras emanam ar de heresia” (Dorez-Thuasne, Pic de la Mirandole en France). Enquanto isso, o bispo de Tournai, condutor das investigações, impunha que todos que possuíssem cópias das Teses as entregassem às autoridades para serem “anuladas pelo fogo”. Não era suficiente. Para tratar dos excessos do rapaz, seria preciso recorrer ao temível Torquemada, então à frente da Inquisição espanhola e responsável por liderar a conversão forçada dos judeus. Os fatos eram preocupantes: o acusado tinha amigos judeus, possuía mais manuscritos hebraicos do que qualquer outro naquelas plagas e, como se não bastasse, pretendia tornar público tudo aquilo que deveria ser mantido longe de olhos e ouvidos. Giovanni Pico não podia ser perdoado. 

Sua última tentativa — a de colocar por escrito as explicações de suas ideias, com justificativas pontuais dos temas considerados heréticos — daria origem à obra Apologia. Todavia, ao não alcançar o resultado esperado, restava-lhe como opção fugir para a França. Ao fazê-lo, tornava-se um herege declaradamente reincidente, um relapsus. Os professores da Sorbonne decidem acolher aquele italiano — tão brilhante e inteligente quanto desventurado — e clamar em sua defesa. O apelo funciona: desde que fosse mantido sob vigilância e reclusão no mosteiro de San Marco, o proscrito poderia regressar a Florença, sob o escudo de um perdão parcial da Igreja. E o futuro mostraria que aqueles anos, vividos entre os claustros florentinos, seriam os de maior fervor criativo. A solidão do corpo pode realizar verdadeiros milagres na mente. 

Uma cabala cristã? 

Transmitir ao mundo cristão tudo o que sabia sobre a cabala havia se tornado central para Giovanni Pico. Ele queria compartilhar a satisfação de suas descobertas, mostrar aos padres que era possível encontrar, dentro dos livros hebraicos, a confirmação do próprio advento do cristianismo. Tinha passado os últimos anos mergulhado em todos os textos cabalísticos, talmúdicos e midráshicos que lhe caíam em mãos, fossem comprados, emprestados ou achados. E alternava as leituras dos grandes rabinos medievais, como Nachmânides, Avicebron e Maimônides, com as instruções de seus mentores de carne e osso — como um certo judeu siciliano, que, embora convertido e passado a se chamar Flavio Mitridate, viria a ser seu principal guia por entre os difíceis caminhos da mística judaica.

O intento de tudo aquilo, das horas de sono perdidas, era motivar um debate, trocar informações, proclamar em voz alta que naquelas antigas doutrinas, “recebidas por meio de sucessivas revelações e transmitidas de um ao outro” (De Hominis Dignitate), estariam guardadas explicações sobre a estrutura hierárquica do universo, suas correspondências e seus diferentes níveis; tudo com uma riqueza de detalhes digna de causar inveja a Pseudo-Dionísio Areopagita — o estimado filósofo cristão, cuja obra Hierarquia Celeste (De Coelesti Hierarchia), após quase mil anos de sua publicação, ainda inspirava os teólogos da Igreja. Além disso, os manuscritos cabalísticos tratavam de experiências práticas de aproximação às esferas divinas, por intermédio de atos de união consumados em graus cada vez mais elevados das realidades inteligíveis. Circunstâncias essas que já haviam sido buscadas e vividas — ele não deixaria de notar a semelhança — por alguns padres singulares que, muitos séculos antes, tinham passado a viver no deserto. 

E havia algo a mais. A cosmologia cabalista, descrita em obras fundamentais como o Sêfer Yetsirá e o Zohar, concebia um universo formado por letras prenhes de informação, letras-nomos, com potência de criar, normatizar, formatar. Letras que, por meio de procedimentos matemáticos adequados, permitiam a decodificação de segredos muito bem guardados e a consequente revelação de verdades sobre a existência. Foi assim que, do interior das páginas das Escrituras, Giovanni Pico conseguiu extrair as letras corretas e, com uma acurada interpolação, compor orações destinadas a afirmar alguns dos principais fundamentos da teologia cristã, como a questão da Trindade. Essa descoberta, talvez a mais significativa de seus últimos anos, seria registrada com entusiasmo nas páginas finais de sua obra derradeira, o Heptaplus — e lançaria as bases do que viria a ser chamado de “cabala cristã” nos dois séculos seguintes.

Obra derradeira de Giovanni Pico em tradução para o toscano por Antonio Buonagrazia (Florença, 1555)

A unidade como liberdade

Os argumentos fundados na Apologia — o texto redigido às pressas para se defender das acusações lançadas durante o julgamento — acabariam por se infiltrar nos grandes debates dos Reformadores, vindo a atravessar os séculos. Talvez porque, mais do que meros esclarecimentos sobre as prováveis sínteses entre a mística judaica e a teologia cristã, movia-se, nas entrelinhas daquela obra, um princípio arriscado: a defesa do livre pensamento. E esse não era um eco circunstancial de defesa. Pelo contrário, tratava-se de um pressuposto presente em todo o conjunto da obra do autor. Como um sopro carregando a semente da libertas credendi — a liberdade de crença. E seus frutos não tardariam a brotar: poucas décadas mais tarde, as Teses condenadas seriam pregadas, por Martinho Lutero, à porta de uma pequena igreja de Wittenberg, abrindo uma fissura irreversível na cristandade.

Mas Giovanni Pico não pretendia revolucionar os alicerces da fé; seu coração permanecia fiel à Igreja e a seus princípios. Em suas veias, contudo, pulsava a certeza de que todos os campos do real confluem. Uma percepção confirmada por uma longa cadeia de pensadores que teimavam em sobreviver ao tempo, desafiando silenciamentos e condenações. Eles lhe mostravam que nos pontos mais elevados das especulações filosóficas e teológicas as diferenças se dissolvem, as religiões dialogam, a verdade se revela una. E somente o pensamento liberto poderia se alçar a esse ponto, em que todas as hipóteses convergem no não-hipotético. Era sobre essa comunhão que ele queria falar aos padres.


Anna M. Padoa Casoretti é filósofa. Doutora e Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Autora do livro Pico della Mirandola, o esoterismo como categoria filosófica (Edições Loyola). A tese de mesmo nome recebeu o prêmio de melhor tese brasileira (biênio 2019-2020) da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof).

COMPARTILHE: